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Sociologia

versão impressa ISSN 0872-3419

Sociologia vol.25  Porto jun. 2013

 

Uma proposta multidisciplinar para o entendimento da centralidade urbana como facto social total

A multidisciplinary proposal to understand the urban center as a total social fact

Une proposition multidisciplinaire pour l’entendement de la centralité urbaine en tant que fait social total

Un enfoque multidisciplinario para el entendimiento de la centralidad urbana como hecho social total

Adriano Zilhão1

Instituto Superior de Serviço Social do Porto


 

RESUMO
Os processos de transformação dos centros tradicionais das cidades assumiram, recentemente, particular importância, expressa na alteração do seu perfil funcional, na perca de importância desses centros enquanto lugares de referência para a leitura simbólica da cidade e para a sua imagem coletiva e projetada. Ao longo deste artigo, apresentar-se-ão diferentes aproximações disciplinares indispensáveis à construção do caminho teórico e metodológico para a análise da centralidade urbana enquanto “facto social total”, isto é, um conceito totalizante, entendido como realidade complexa, onde cada componente integrante só é significante face a todas as outras e à realidade que integram, realidade essa, unicamente, separável por convenção.

Palavras-chave: Facto social total; Multidisciplinaridade; Centralidade urbana.


ABSTRACT
A multidisciplinary proposal to understand the urban center as a total social fact The transformation processes of the cities' traditional centres have recently assumed a unique importance expressed in the change of their functional profile, in the loss of importance of those centres as reference locations for the symbolic reading of the city and for its collective and projected image. Through this text, different disciplinary approaches will be exposed indispensable for the building of the theoretical and methodological path for the analysis of the urban centrality as a "total social fact", i.e. a totalizing concept, understood as a complex reality where each integral feature will only be significant when compared with all others and the reality they are part of, which reality is only separable by convention.

Keywords: Total social fact; Multy-disciplinarity; Urban centrality.


RÉSUMÉ
Récemment, les procès de transformation des centres traditionnels des villes ont assumé une importance particulière, exprimée par l'altération de leur profile fonctionnel, la perte d'importance de ces centres en tant que sites de référence pour la lecture symbolique de la ville et pour son image collective et projetée. Au long de tout cet article, seront présentées des approches disciplinaires diversifiées, indispensables pour la construction de la voie théorique et méthodologique pour l'analyse de la centralité urbaine en tant que "fait social total", soit, un concept totalisant, entendu comme réalité complexe où chaque component intégrant devient significatif seulement vis-à-vis les autres et la `réalité qu'ils intègrent, une réalité uniquement séparable par convention.

Mots-clés: Fait social total; Multidisciplinarité; Centralité urbaine.


RESUMEN
Los processos de transformación de los centros tradicionales de las ciudades han asumido, recientemente, gran importancia, traducida en la alteración de su perfil funcional, en la pérdida de importancia de esos centros como lugares de referencia para la lectura simbólica de la ciudad y para su imagen colectivo y proyectado.En este trabajo se defiende la posibilidad del abordaje a esta cuestión desarrollando una construcción teórica y metodològica de carácter multidisciplinario, en la cual la centralidad urbana ha sido percibida como hecho social total, o sea, una realidad compleja adonde cada dimensión solamente tiene significación en la relación con las demás dimensiones de la realidad que integra, formando un conjunto solo separable por convención.

Palabras-clave: Hecho social total; Multidisciplinaridad; Centralidad urbana.


 

1. A Centralidade Urbana

A centralidade urbana, condição característica dos espaços urbanos centrais, lugares privilegiados de “controle efetivo e simbólico da vida coletiva da cidade” (Rémy e Voyé, 1994: 133) é fruto do processo industrial capitalista, que alterou, no plano civilizacional e no plano quotidiano, o quadro de vida dos indivíduos e dos grupos e alterou, irreversivelmente, a forma e a estrutura da cidade medieval.
De facto, num período histórico relativamente curto, as sociedades europeias assistiram ao fim da organização social tradicional, através do desenvolvimento do processo industrial capitalista entre os séculos XVII, XVIII e XIX, que transformou economias domésticas e corporativas em economias manufatureiras e industriais, concentrou populações, alargou mercados, separou os trabalhadores dos seus instrumentos e dos conhecimentos globais do processo de trabalho, afastou a residência do local de trabalho, desarticulou a família alargada e institucionalizou a família nuclear, num quadro de crescente divisão técnica do trabalho e crescente especialização social e funcional destas sociedades.
Esta progressiva dominação do Modo de Produção Capitalista submeteu, assim, a cidade histórica medieval, a um processo de transformação irreversível. O acelerado processo de urbanização que, associado à primeira revolução industrial, exprimia este desenvolvimento acelerado das forças produtivas e o reforço da mobilidade do capital, determinou uma nova relação com o espaço e determinou, também, uma nova estruturação da vida social e quotidiana. De facto, a organização social industrial capitalista origina e exige uma progressiva separação das atividades sociais: as atividades produtivas desenvolvem-se em tempos e espaços fixos distintos dos tempos e espaços afetos a outras atividades sociais, no quadro de uma progressiva separação e divisão funcional do espaço urbano industrial.
Por isso, através, dos mecanismos de formação dos preços do solo, determinados pela divisão social e espacial capitalista do trabalho, os rendimentos fundiários capitalistas urbanos influenciam um desenvolvimento urbano onde a cidade histórica medieval compacta, plurifuncional e socialmente heterogénea evoluiu, tornando-se centro alargado de uma realidade urbano-industrial em expansão, com crescente segregação urbana, através da progressiva valorização fundiária do espaço central e da valorização fundiária das áreas cada vez mais especializadas, social e funcionalmente.
A atualidade deste tema decorre da inequívoca importância e visibilidade que os processos de transformação dos centros tradicionais das cidades assumiram, traduzidos na alteração do seu perfil funcional, na perca de importância desses centros enquanto lugares de referência para a leitura simbólica da cidade e para a sua imagem coletiva e projetada. Esta “crise” dos centros, crise de transformação, está, naturalmente, inserida num novo ciclo de mudança e renovação, no quadro do tempo longo das cidades, que terá que ser cumprido, para que os centros se possam adaptar às novas condições urbanas emergentes.
Foi neste quadro que, a partir do princípio do século XX e no interior de diversas ciências sociais, o fenómeno da centralidade urbana foi sendo promovido ao estatuto de objeto teórico relativamente autónomo no interior dessas diversas disciplinas cientificamente institucionalizadas. Neste artigo apresenta-se, por isso, uma proposta téorica para a construção do conceito de centralidade urbana como facto social total, onde os diversos contributos teóricos configuram, também, um caráter metodológico multidisciplinar à construção conceptual desenvolvida.

2. O facto social total

O conceito de facto social total foi construído por Marcel Mauss para análise do potlatch, prática social observada em determinadas regiões do Mundo, como a Melanésia, que consiste numa cerimónia festiva durante a qual dois clãs ou dois chefes de clã se desafiam, distribuindo ou destruindo bens materiais e obrigando o adversário a distribuir ou a destruir igual quantidade de riqueza material, sob pena de ficar penalizado na hierarquia de poder e de prestígio social. Assim, para Marcel Mauss, esta troca e esbanjamento material de bens, constitui um importante mecanismo de regulação social do prestígio e consubstancia o que Mauss designa como um tipo de facto social “total”, isto é, um facto social que põe “em movimento, em certos casos, a totalidade da sociedade e de suas instituições (potlatch, clãs enfrentados, tribos que se visitam, etc.) e, em outros casos, somente um grande número de instituições” (Mauss, 1974: 179). Este “facto social total” é, então, um conceito totalizante, entendido como realidade complexa, onde cada componente integrante só é significante face a todas as outras e à realidade que integram, realidade essa unicamente separável por convenção.
Igualmente para Gurvitch, a dinâmica de relacionamento pluridimensional do fenómeno social total é uma relação dialética que pode assumir “o carácter de complementaridade, de implicação mútua, de ambiguidade, de polarização ou de reciprocidade de perspetivas; mas não se trata aqui senão de aspetos diferentes essenciais do ponto de vista metodológico, da primazia ontológica dos fenómenos sociais totais, as separações relativas não fazem senão lembrar a trama complexa da realidade social, que consiste precisamente no drama que se representa no interior desta e ao qual se acrescentam os conflitos e os antagonismos entre fenómenos sociais totais do mesmo género (antagonismos de classes ou de nações, por exemplo).” (Gurvitch, 1979: 28).

3. O conceito económico de centralidade

O conceito de centralidade na reflexão urbana, aplicando a perspetiva económica neo-clássica à análise das relações espaciais, surgiu no princípio do século XX, nos anos 30, com os trabalhos de Walter Christaller. Tendo em conta que toda a atividade económica se desenrola no espaço, Walter Christaller procurou explicar como, na organização económica das sociedades modernas, determinados bens e services “are, as a rule, offered centrally in towns, or at other central places, because it is most advantageous from an economic standpoint” (Christaller, 1966: 20). Christaller debruça-se sobre a espacialização dos serviços, integrando, “first of all, trade, which is center-oriented almost exclusively (…), then banking, many handicraft industries (repair shops), state administration, cultural and spiritual offerings (church, school, theatre), professional and business organizations, transportations, and sanitation” (Christaller, 1966: 20).
Este bens e serviços são, portanto, hierarquizáveis de acordo com o critério da frequência com que são procurados (sendo de ordem mais elevada os bens e serviços menos frequentemente necessários), o que significa que a ordem de importância de cada lugar, a medida da sua “centralidade”, está associada à ordem de importância e hierarquia dos bens e serviços oferecidos nesse centro. Os lugares que têm “central functions that extend over a larger region, in which other central places of less importance exist, are called central places of a higher order. Those which have only local central importance for the immediate vicinity are called, correspondingly, central places of a lower and of the lowest order” (Christaller, 1966: 17). A hierarquização e medida da centralidade de um lugar resultam da importância relativa desse lugar face à região que o rodeia, avaliada pelo grau com que são exercidas funções centrais ou de maior raridade nesse lugar que, ao desempenhar funções de ordem superior, assegura, no entanto, simultaneamente, funções de ordem inferior.
Elaborado quando a separação, nomeadamente funcional, entre a cidade e o campo era muito distinta, com os meios de transporte pouco eficazes e em que cada cidade se apresentava como uma entidade significativamente delimitada e separada das restantes, este modelo não incorpora processos endógenos de mudança, pelo seu caráter fechado e estático. No entanto, apesar das suas dificuldades de aplicação em situações reais, a teoria dos lugares centrais, entendida como uma forma de enunciar regularidades e não como enunciadora de princípios determinísticos relativos à localização, dimensionamento e distribuição de lugares considerados centrais à escala interurbana, constituiu um marco na teorização do processo de constituição e distribuição hierarquizada de lugares (centrais) prestadores de diferentes tipos de comércio e serviços, no quadro de determinadas opções de compra dos consumidores. Foi, precisamente, este conceito de lugar central que, generalizando-se, se estendeu, ainda, à caracterização de todo o lugar com oferta de serviços, capaz de polarizar áreas e populações à escala intraurbana (“central place is not equivalent to town, because it refers to only one important characterisitc of a settlement, namely, its possession of a central function” – Christaller, 1966: 139), através da disponibilização, espacialmente concentrada, de produtos e funções de maior raridade urbana.
Associada a noção de centralidade urbana à raridade na oferta de bens e serviços, herdada da teoria dos lugares centrais de Christaller, torna-se, também, indispensável definir um enquadramento para a compreensão desse processo de concentração espacial de determinados bens e serviços. Esse enquadramento vai ser disponibilizado pela teoria económica urbana, nomeadamente a teoria económica urbana de Alonso, que apresentou um modelo fundamental para situar, explicitamente, a compreensão dos processos de localização espacial intraurbana de atividades, em que a ocupação do solo resulta do desejo de realizar a afetação ótima dos recursos de cada um, em função da acessibilidade ao centro da cidade.
Neste modelo teórico de Alonso em que a ocupação do solo urbano visa a afetação ótima dos recursos individuais e empresariais, em função da acessibilidade ao centro da cidade, a maior proximidade residencial a esse centro, significando menores custos de transporte, implica, simultaneamente, custos fundiários mais elevados. Se o indivíduo escolhe habitar no local que lhe oferece a maior satisfação possível, para as empresas industriais, comerciais ou de serviços, por sua vez, trata-se de maximizar o lucro, considerando o volume de negócios, a área ocupada e a distância ao centro.
Para além de pressupostos específicos deste e de outros modelos desenvolvidos pela economia urbana, importa, finalmente, salientar que todos esses modelos assentam, genericamente, num pressuposto base: o pressuposto de que as empresas e os agentes económicos procuram, pelas suas decisões, produzir a um determinado nível ótimo, no qual o lucro é maximizado pela escolha da melhor combinação de fatores, em função de determinadas alternativas e possibilidades técnicas. É, portanto, neste pressuposto-base da teoria económica marginalista neoclássica segundo o qual a maximização dos lucros – ou da satisfação, no caso do consumidor – resultam da racionalidade económica dos comportamentos dos agentes (económicos), em contexto concorrencial de livre mercado, que a teoria económica urbana explica, no quadro das relações entre espaço (urbano) e atividades económicas, os mecanismos e as estratégias locativas empresariais, em regime concorrencial de mercado.
Importa, assim, reter, a partir destas perspetivas, a sua virtualidade explicativa para o fenómeno da centralidade urbana, enquanto contributos que, articuladamente, permitem compreender as estratégias locativas, num quadro de determinada acessibilidade e custos fundiários. Esta referida necessidade de articulação de perspetivas é reforçada, na atualidade, pelo incremento do protagonismo das componentes da mobilidade e acessibilidades na vida das cidades. Mas as virtualidades explicativas destas perspetivas em articulação só reforçam, também, por sua vez, a constatação da necessidade de avançarmos para um entendimento ainda mais alargado do fenómeno da centralidade, na busca, cada vez mais atual e necessária, de um conceito transdisciplinar do fenómeno da centralidade urbana.

4. A perspetiva sociológica da Escola de Chicago

O entendimento do centro das cidades como realidade construída, no quadro de um processo de competição pelo espaço urbano, foi desenvolvido, no princípio do século XX, em Chicago (cidade norte-americana, onde, nesse período, o crescimento industrial e demográfico era mais acentuado), no contexto de uma escola de pensamento, onde pontificavam os nomes de Park e Burguess, e que marcou a análise urbana do princípio do século XX.
Considerando uma ordem social que se explica por mecanismos característicos do mundo vegetal e animal, e concebendo a cidade como um mosaico de comunidades naturais, na medida em que respondem às necessidades gregárias fundamentais da espécie humana, a Escola de Chicago vai considerar que, da mesma maneira que são os animais mais fortes quem consegue apropriar-se dos lugares mais interessantes, são, também, as atividades e os indivíduos mais poderosos quem conseguirá ocupar as zonas urbanas mais caras.
Os grupos económicos industriais e comerciais, os grupos mais fortes, apoderam-se, por isso, da zona (pré-existente) mais valorizada em termos fundiários da cidade, o CBD (“Central Business District” na designação anglo-saxónica), num contexto de competição e de sucessivos processos de ajustamento, em que a cada zona da cidade acaba por ser definida uma função própria no tecido urbano, numa organização espacial urbana em anéis concêntricos, a partir do CBD (“Central Business District”). Esta diferenciação em “natural economic and cultural groupings gives form and character to the city. For segregation offers the group, and thereby (…), a place and a rôle in the total organization of city life” (Park e Burguess, 1984 (1925): 56)
O CBD é, assim, a área da cidade em que os preços do solo “afford one of the most sensitive indexes of mobility. The highest land values in Chicago are at the point of greatest mobility in the city, (…). (…) variations in land values, (…) offer perhaps the best single measure of mobility” (Park e Burguess, 1984 (1925): 61). Por isso, o CBD é o centro económico da cidade, onde se localizam sedes de grandes empresas, atividades comerciais orientadas para o consumo, instituições financeiras, teatros e hotéis. No entanto, para atividades económicas consumidoras de muito solo urbano, o seu poder concorrencial reduz-se e será para localizações mais afastadas que vão competir locativamente. Só admitindo, então, a homogeneidade do espaço e a não- diferenciação nas facilidades de transporte, a organização do espaço urbano pode ser estruturado com base em anéis concêntricos, definidos pelos pontos de indiferença determinados pelas curvas de renda de “licitação” próprias de cada uso.
Quer a teoria dos lugares centrais, quer o modelo radiocêntrico são, assim, próprios da vida urbana anterior ao incremento da acessibilidade. Com o desenvolvimento da mobilidade e acessibilidade, a cidade não pode deixar de crescer segundo as linhas de comunicação que se vão estabelecendo, alterando as estratégias locativas relativas à ocupação do espaço urbano. É, justamente, esta constatação que leva Hoyt a considerar uma proposta, segundo a qual “central growth is the result of forms of transportation that tend to be of approximately equal speed from the center of the city in all directions toward the periphery. It is not a question of absolute but of relative speed” (Hoyt, 1939: 101).
Por isso, a ocupação do solo urbano a partir do centro, ao seguir, frequentemente, as principais vias de transporte e comunicação, tem como consequência que “the retail shopping center, and not the financial center, is (...) central (...) in most cities” (idem: 17, 19), porque os compradores “tend to go to centers where they can find a large assortment of goods in close compass, so they can make all their purchases with a minimum expenditure of time and effort” (idem).
Para além da indispensabilidade de contemplar, na análise do processo de construção da centralidade urbana e de crescimento da cidade, a variável acessibilidade, outros fatores, enunciados, de resto, na teoria económica urbana, devem ser considerados, nomeadamente a reorganização funcional de atividades na busca de sinergias (economias de aglomeração) ou o reagrupamento residencial na busca de comunidades de interesses para as zonas residenciais. Por isso, a teoria dos núcleos múltiplos de crescimento de Chauncy Harris e Edward Ullman veio defender que o crescimento de uma cidade se faz com o desenvolvimento de padrões de uso à volta de núcleos independentes originais. As cidades têm, então, uma estrutura essencialmente celular, na qual os diferentes tipos de utilização do solo se desenvolvem à volta de certos núcleos de crescimento, situados no interior da área urbana. O agrupamento e a junção destes núcleos vai-se fazendo debaixo da influência de fatores morfológicos ou humanos que permitem que certos núcleos se fundam, originando, através deste mecanismo associativo (vantajoso para determinadas atividades industriais, enquanto outras atividades se afastam porque se prejudicam mutuamente, como a indústria e residência), o centro da cidade, nomeadamente o CBD.
A Escola de Chicago permite-nos, assim, incorporar, na compreensão da dinâmica da centralidade e da estruturação do espaço urbano, a importância dos processos de competição pela apropriação do espaço, recurso disputado e objeto de intensa concorrência, particularmente a área administrativa e comercial das aglomerações urbanas.
A organização espacial urbana será, assim, o resultado de um processo de concorrência entre pessoas e atividades pela localização (pré-existente) de maior acessibilidade na cidade (simultaneamente a localização com custos fundiários mais elevados), medida pela distância ao CBD, ponto de acessibilidade máxima dentro da cidade. Se admitirmos, então, que os diferentes usos vão concorrer para a obtenção de solo dotado de certo nível de acessibilidade, devemos tomar em consideração os preços ou rendas de licitação (referidas por Alonso) que o comércio a retalho, outras atividades comerciais e de serviços, a indústria, a habitação em prédio, a habitação em moradia e a agricultura podem propôr.
Enquanto, na perspetiva da economia, os centros se constroem na base da concorrência de mercado pelo princípio das economias de aglomeração com determinada densidade de ocupação urbana (nomeadamente através da concentração territorial de determinadas funções e atividades), para Christaller, os centros distribuem-se numa base hierárquica, em que os mais importantes são aqueles onde há funções de consumo de bens de maior raridade, concentrados em função da afetação ótima dos recursos e da acessibilidade urbana. Para a sociologia urbana de Chicago, por sua vez, os centros constroem-se num processo de luta pela apropriação dos espaços urbanos de maior valorização fundiária.
Todas estas reflexões disciplinares especializadas partem, no entanto, de um pressuposto: preocupando-se em analisar, com conceitos e metodologias disciplinares próprias, o desenvolvimento, afirmação e relação dos centros com as cidades respetivas, todas as reflexões consideram, no entanto, que o centro é uma realidade urbana estática, adquirida, pré-existente. A explicação da centralidade urbana, exige, por isso, o contributo de outras perspetivas, nomeadamente perspetivas relativas à importância da construção coletiva de determinados fenómenos designáveis de representações sociais que, originários na interação social quotidiana, contribuem para a construção de realidades coletivamente significantes, como os centros das cidades.
Com efeito, a conotação significante da cidade é produzida pela ação concreta dos cidadãos que deixam traços materiais (edifícios, monumentos) e imateriais (usos e costumes), tanto na sua vivência passada como na sua vivência presente, apoderando-se, ativamente, do património herdado, interpretando-o e modificando-o continuamente. Esta interação entre símbolos e referências urbanas e a ação dos habitantes contribui para a definição de uma identidade da cidade e para a construção dos seus significados urbanos, integrando contributos explicativos a desenvolver em pontos seguintes deste capítulo que, articulando e relacionando estruturas espaciais e sociais, concebam as sociedades humanas como fenómenos espaciais, no sentido em que é pela sua realização no espaço que, desde logo, uma sociedade adquire visibilidade.

5. A centralidade urbana como representação social

Foi a partir de princípios dos anos 60, particularmente através dos contributos de Moscovici, que, progressivamente, se foi construindo o conceito de representação social, no pressuposto de que os indivíduos são também construtores de significados, não se limitando a receber informação. Moscovici superou, assim, nos anos 60 do século XX, o conceito positivista de consciência coletiva que é, para Durkheim, uma realidade objetiva, exterior e anterior aos indivíduos, na medida em que os precedeu e os transcende e onde, por isso, a consciência e a representação coletivas não podem “explicar-se por factores puramente psicológicos, quer dizer, por estados da consciência individual (...). Com efeito, o que as representações colectivas traduzem é a maneira como o grupo se pensa nas suas relações com os objectos que o afectam” (Durkheim, 1895: 306-307).
O conceito de representação social de Moscovici, articulando na sua constituição elementos cognitivos, comunicacionais e até afetivos, distancia-se, por isso, da linha de pensamento positivista, reafirmando grande importância, na construção das representações sociais, à interatividade entre o indivíduo e o “outro”, pela partilha de determinadas imagens na interação quotidiana.
As representações sociais revestem, assim, a forma de princípios reguladores dos processos de conhecimento e significação desenvolvidos nas relações sociais para lá da diversidade de opiniões existentes. Na medida em que é socialmente elaborado, contribui para a construção de uma realidade comum a um conjunto social, orientando as práticas quotidianas às quais dá um sentido e a partir das quais pode ser modificada, porque a vida quotidiana seria “impossível se os indivíduos não deitassem mão de signos pré-estabelecidos, se não compartilhassem determinadas representações sociais, significados ou regras de comportamento” (Pais, 2002: 132) conformando-se ou não, através das suas condutas “às representações, gerindo ou rejeitando, alimentando, no dia a dia, a sua vigência” (Pais, 2002: 134, 135).
Sendo explicações socialmente partilhadas e construídas pela comunicação interindividual no quotidiano, nomeadamente no quotidiano de uma cidade, permitem, então, compreender o processo de construção de significados urbanos, porque são uma modalidade de conhecimento vocacionado para a prática. Assim, se a informação que as pessoas têm sobre a cidade é o resultado da sua interação com essa cidade, e se os significados sociais são uma parte importante da representação da cidade, a cidade pode, então, ser estudada como uma representação social.
Ora, nos processos de representação social, há dois mecanismos essenciais: a objetivação e a ancoragem, em que a “ancoragem precede a objetivação, por um lado, e (...), por outro, se situa na sequência da objetivação” (Vala, 2002: 472). A objetivação diz respeito à “forma como se organizam os elementos constituintes da representação” (Vala, 2002: 465) para formação de um todo coerente, através da contextualização do objeto e da constituição de um esquema organizador dos principais elementos do objeto de representação e sua naturalização como categorias descritivas: “objectification saturates the idea of unfamiliarity with reality, turns it into the very essence of reality.
Perceived at first in a purely intellectual, remote universe, it then appears before our eyes, physical and accessible” (Moscovici, 2000: 49).
A ancoragem consiste em integrar novas informações em categorias que o sujeito já possui, fruto de experiências anteriores, atribuindo sentido a acontecimentos sociais, precedendo, neste caso, a objetivação, na medida em que se refere ao facto de “qualquer construção ou tratamento de informação exigir pontos de referência” (Vala, 2002: 472). Neste processo, a ancoragem associa-se a um processo de tornar familiar o que não o é. Estabelecida a representação, a ancoragem, posterior à objetivação, associa-se, também, aos processos em que funciona como organizador das relações sociais atribuindo, por sua vez, sentido a acontecimentos e comportamentos. Assim, “to anchor is thus to classify and to name something. (…). By classifying what is unclassifiable, naming what is unnameable, we are able to imagine it, to represent it. (…) In short, classifying and naming are two aspects of this anchoring of representations” (Moscovici, 2000: 42, 47).
Se considerarmos que a cidade pode ser estudada como uma representação social, o centro de uma cidade pode, então, por sua vez, ser estudado como âncora da representação social cidade, elemento fundamental dos processos de objetivação e ancoragem. Enquanto âncora da representação social cidade, o centro é, também, anterior e posterior à objetivação da representação social cidade. É anterior à objetivação da representação social cidade, na medida em que, no processo de constituição dos centros das cidades industriais, a evolução histórica urbana criou condições para a construção dos centros enquanto elementos âncora, através do reforço, espacialmente referenciado, de práticas sociais, que, como referem Alvarez Mora e Fernando Roch, “se concentran en aquellos lugares contenedores de elementos que generan convocatoria ciudadana (...) que van desde edificios construidos como las propias entidades religiosas, civiles, estatales (...) hasta los espacios libres de construcciones, como calles y plazas)” (Alvarez Mora e Roch, 1980: 103).
Neste sentido, estes espaços urbanos vão adquirindo determinado sentido e natureza pela dinâmica urbana do seu uso coletivo quotidiano, público, livre, central porque acessível, construída em função, nomeadamente, das características “físicas” desse espaço, da qualidade formal do seu desenho e dos seus materiais. Estabeleceram- se, assim, nas cidades industriais, espaços que o ambiente físico e as práticas de sociabilidade quotidiana construíram e institucionalizaram como espaços públicos urbanos. Estes espaços públicos urbanos, que se tinham construído através da institucionalização do seu valor de uso pelas práticas sociais quotidianas, acompanhando a industrialização das sociedades, assumiram, então, em determinados casos, o estatuto urbano de espaços particularmente vocacionados para essas referidas práticas de sociabilidade e demais manifestações cívicas.
Esta dinâmica sofre, por sua vez, um processo histórico de reapropriação, reorientando as tendências existentes para um tipo de consumo comercial. É “precisamente bajo el efecto de estas operaciones (...) que (...) la ciudad pierde ese valor de uso (...) convirtiéndose en un valor de cambio (...). Toda atividade de mercado (...) se localiza allí donde previamente existen elementos com poder de convocatoria ciudadana. Es precisamente el conocimiento de estas atividades, de carácter extraeconómico, lo que nos ofrecerá una explicación al hecho de las tendencias coletivas que aglutina el centro de la ciudad” (Alvarez Mora e Roch, 1980: 102, 106).
No entanto, estabelecido o centro da cidade enquanto elemento âncora da construção da representação social da cidade, este elemento âncora centro influencia, também, o processo posterior à objetivação dessa representação social, na medida em que, depois de constituídas, as representações sociais passam a impregnar a realidade, ultrapassando o estatuto de mera representação ao induzirem, nos indivíduos, a criação da realidade que valide as explicações contidas nas suas representações. Podemos, assim, considerar que é, nomeadamente pela comunicação interindividual no quotidiano urbano, que todos os indivíduos partilham ideias, conhecimentos, atitudes e explicações socialmente construídas acerca da cidade. Investindo no seu espaço através do uso prático e da interação permanente com elementos físicos dessa cidade como ruas, praças e monumentos, estes elementos são, também, ativa e quotidianamente apropriados pelos cidadãos através de rituais, celebrações, comportamentos estandardizados ou discursos sobre a cidade que, reforçando o significado social desses elementos, contribuem para o ordenamento identitário do espaço urbano, rotulando determinados lugares como lugares adequados para tais atividades, que adquirem, assim, os significados associados a essas atividades.
Neste processo, o centro é um lugar urbano em que a capacidade social dos atores para atribuir e partilhar significações comunica e reproduz, nesse lugar, um sentido e um significado reforçados: o centro resulta, não só de atributos físicos e funcionais intrínsecos, mas resulta, também, de qualidades atribuídas e reforçadas pelos mecanismos do processo de representação social da cidade. A perceção do centro e a representação da cidade, resultam, então, da dinâmica de relacionamento e interdependência quotidiana, onde a repetição sistemática de percursos, usos e apropriações determinadas do espaço urbano fornecem informações e imprimem sulcos que, acumuladamente, contribuem para cartografar mentalmente o espaço vivido. Esse mapa mental é a cidade de cada um territorializada, em que o centro adquire e reforça certas características, de acordo com os significados e a informação que as pessoas têm e constroem sobre esse lugar da cidade, no quadro de determinada interação quotidiana assente na memória das diferentes experiências associadas a esse local e que permite associar, ao centro, determinados significados sociais urbanos socialmente construídos e partilhados.

6. Centralidade urbana e produção do espaço

Em “Theory of the city as object” (Hillier, 2002), a centralidade é apresentada como um processo que se desenvolve através do impacto e influência da configuração espacial no desenvolvimento da atratividade para localização de determinadas atividades funcionais urbanas. Esta contribuição da morfologia urbana ou padrão do espaço público desenvolve-se através de determinada lógica de configuração desse espaço que, influenciando a ocupação funcional do território, contribui para a concentração e densificação espacial de atividades também produtoras de centralidade. Neste processo de interação, o padrão de espaço público, construído através da ligação dos edifícios de uma cidade, origina, então, determinada morfologia do espaço que atrai determinados usos para locais com elevado movimento e afasta localizações como a atividade residencial.
Este processo é explicitado pela análise de um mapa axial, entendido como “the least set of longest lines of direct movement that pass through all the public space of a settlement and make all connections” (Hillier, 2002: 153), em que se calcula, para cada linha ou eixo de via, a mínima quantidade de linhas que devem ser usadas, no todo ou em parte, para se ir de uma linha até outra, tendo em conta todas as outras linhas do sistema. Obtém-se, assim, o valor da integração de cada linha relativamente a todas as outras, traduzido, quantitativamente, em determinado valor de “integração global”, medida de acessibilidade do referido sistema.
A centralidade urbana é, por isso, um fenómeno que resulta destes fatores espaciais que mediatizam a construção social do espaço urbano num contínuo processo, em que a vida social e económica urbanas, sofrem, inicialmente, os efeitos da organização morfológica do espaço e consequente acessibilidade instalada para, posteriormente, a dinâmica socioeconómica concorrencial instalada desempenhar um papel decisivo na constituição e na localização das atividades económicas para, posteriormente, os referidos fatores espaciais voltarem a desempenhar um novo papel decisivo no desenvolvimento e na sustentação desta centralidade intraurbana. A centralidade urbana vai-se, assim, constituindo como um “product both of the overall configuration of the grid, which decides where the centre should be, and the kind of local process of grid adaptation” (Hillier, 1999: 120).
Trata-se de uma perspetiva que reorienta a dinâmica relacional entre o social e a noção física de espaço, ao identificar o mecanismo através do qual o espaço é produtor social: a configuração urbana através do seu efeito no movimento. De facto, como resultado do estímulo inicial provocado pela acessibilidade da configuração espacial (determinado cruzamento inicial de ruas onde, posteriormente, se possa desenvolver um mercado), desenvolve-se uma crescente concentração de usos do solo que, provocando um efeito multiplicador, origina um determinado padrão de áreas urbanas funcionalmente densificadas.
Este modelo teórico relativo à análise da centralidade urbana enquanto processo de configuração espacial permite, portanto, abordar o tema da centralidade urbana a partir de um processo espacial em que a atratividade de cada elemento do sistema urbano está relacionada com a configuração da rede e com o seu desenvolvimento correlacionado com determinados usos do solo e atividades concorrenciais em mercado. A centralidade não é, assim, uma situação estática, mas um processo em que os elementos interdependentes, sócio-económicos e espaciais, atraem e produzem, interativamente, o reforço da diferenciação espacial e da especialização funcional.
Os fatores físicos mediatizam a construção do espaço urbano num contínuo processo socioespacial em que a configuração morfológica instalada (em regime de livre concorrência) desempenha, inicialmente, um papel decisivo na dinamização da constituição e localização dos centros para, posteriormente, os fatores sócio-económicos concorrenciais desempenharem um papel decisivo no desenvolvimento e na sustentação do centro intraurbano. É neste quadro de interação com elementos sócio-económicos que este modelo teórico pode, aliás, ser adequadamente mobilizado para a análise empírica do fenómeno da centralidade. Este quadro de múltiplas interações tem, ainda, uma virtualidade: é através destas dinâmicas de interação múltiplas que o caráter excessivamente positivista a que esta proposta de Hillier é, por vezes, acusada, se pode controlar. Este “facto social total”, concentrando uma dinâmica de relacionamento entre dimensões mentais e psicológicas, normativas e económicas da vida social, é um conceito totalizante, entendido como realidade complexa onde cada componente integrante só é significante face a todas as outras e à realidade que integram, realidade essa unicamente separável por convenção.

Conclusões

Foi no processo de expansão da cidade em industrialização, e inerente processo de divisão funcional da ocupação do solo urbano, que nasceu e se desenvolveu uma dinâmica de centralidade urbana que, enquanto processo de produção dos centros das cidades, é lugar de articulação dos processos de produção e de consumo da cidade industrial capitalista e, simultaneamente, produto e produtor de diversas configurações urbanas. A progressiva separação das atividades sociais, inerente à organização social industrial capitalista, nomeadamente a progressiva divisão funcional do espaço urbano, origina a localização, no mesmo lugar urbano, de atividades complementares em busca de “economias de aglomeração”, pela redução dos custos de produção através da utilização das infraestruturas existentes, que induzem a localização de novas atividades e específicos serviços urbanos de tipo político, de tipo administrativo ou de tipo comercial ou cultural.
Este processo de construção e de desenvolvimento da centralidade urbana, através da concentração e sedimentação de uma certa localização específica de atividades e serviços urbanos, desenvolve-se, também, na construção social de determinados significados ao espaço urbano, nomeadamente na construção da significação social de lugares centrais, pela interação permanente com determinados espaços, nomeadamente determinados espaços públicos que adquiriram o referido estatuto de lugares particularmente vocacionados para práticas de sociabilidade e manifestações cívicas da vida social urbana, através da contínua e quotidianamente repetida comunicação e partilha de um conjunto de informações sobre a cidade, que configuram, assim, determinada representação social do espaço urbano.
Originárias, nomeadamente, na interação social quotidiana urbana, as representações sociais contribuem, então, para a construção de realidades coletivamente significantes, como os centros das cidades, no entendimento do espaço (social) urbano como produtor e produto do próprio espaço, onde a atividade social e respetiva interação com esse espaço urbano, contribui para construir, reproduzir e modificar, continuamente, a leitura simbólica e espacial dessa cidade.
A formação de um conjunto de imagens principais sobre esse lugar, no quadro da construção das perceções territoriais dos lugares e da nossa relação com eles, é o resultado de uma produção histórica sempre em transformação e consubstancia um processo de espacialização social dos significados urbanos. Esta capacidade social dos indivíduos para se apropriarem de elementos físicos e simbólicos, atribuindo significações determinadas a lugares determinados, pode conferir a esses lugares do espaço urbano uma identidade de lugares centrais para a sociabilidade urbana, que o processo de construção das economias de aglomeração, através da densificação de atividades e serviços nesses lugares centrais da sociabilidade urbana, reconverte em determinado padrão de configuração do espaço.
Este padrão e esta estrutura da rede e da morfologia do espaço urbano assim construída, ligando os edifícios construídos de uma cidade, suscitam determinados usos de ocupação funcional do espaço urbano, atraindo, nomeadamente, atividades concorrenciais em mercado livre. Este processo de diferenciação espacial e especialização funcional que determinada configuração e morfologia urbana acentuam, aprofunda-se com o urbanismo corbusiano que, aplicando, nas suas políticas urbanas monofuncionais, a centralização espacial da gestão das atividades produtivas e a centralização espacial de certas atividades de serviços, viabiliza a constituição de uma área administrativa e comercial nas grandes aglomerações urbanas, que se torna objeto de intensa disputa territorial, no quadro de determinada dinâmica de ocupação funcional do espaço urbano e de determinada dinâmica de organização ecológica do espaço urbano.
Esta área administrativa e comercial, originada pela dinâmica do fenómeno centralidade urbana, integra um sistema de lugares que, no plano da oferta de bens e serviços, encontra, na ordem de importância dos bens e serviços oferecidos nesses centros (em que os lugares de hierarquia mais elevada são os lugares onde se localizam os bens de maior raridade no ponto de máxima acessibilidade intraurbana), a medida da sua centralidade. Assim, a centralidade é um fenómeno social total de incidência urbana, um fenómeno dinâmico onde se cruzam as diversas dimensões da vida social, é o produto da ação conjugada de diferentes estruturas numa determinada sociedade e suas determinações numa determinada época histórica.

No entanto, analisar a centralidade urbana enquanto totalidade não significa analisar todas as suas dimensões e aspetos relacionais. De facto, só nas circunstâncias em que as unidades sociais de análise têm dimensões restritas é possível, como refere Raymond Boudon, “ter como ideal atingir a ‘totalidade’ da realidade social, no sentido de inventariar esta realidade de uma maneira exaustiva” (Boudon, s/d: 38), porque “existe um conjunto de investigações onde a ideia de totalidade pode ter um significado relativamente preciso, seja porque o objeto possa ser considerado como exaustivamente inventariável, seja por ser concebido como um sistema, mas existem outras onde a ideia de totalidade não desempenha manifestamente nenhum papel, nem tem utilidade alguma” (Boudon, s/d: 40). A noção de centralidade, enquanto facto social total num processo de mudança historicamente determinado, constitui, assim, uma proposta de abordagem deste fenómeno social urbano, que determinada escolha seletiva de diferentes perspetivas disciplinares permite operacionalizar.
Compreender o processo da centralidade intraurbana nas cidades industriais capitalistas modernas, implica, então, teoricamente, uma reflexão no contexto dos contributos provenientes de diversas perspetivas disciplinares indispensáveis para a compreensão da organização e do ordenamento dos espaços urbanos e implica, também, num entendimento teórico-metodológico racionalista da investigação científica, o desenvolvimento de procedimentos de caráter multidisciplinar, através da sobreposição dessa heterogeneidade de perspetivas (que mantêm a sua especificidade e as suas próprias conclusões) sobre o mesmo objeto de estudo: a centralidade urbana definida, enquanto fenómeno social total, pela diversidade e densidade das relações sociais e pela aglomeração de recursos culturais, políticos ou do conhecimento da cidade moderna.
Apesar da significativa diversidade da dinâmica da centralidade, em termos da natureza concreta dos processos de constituição e de afirmação dos centros e dos específicos momentos temporais em que esses processos ocorreram, foi, essencialmente, no quadro dos processos de construção das modernas cidades industriais que essas realidades urbanas se constituíram, nomeadamente ao longo do século XIX. Era o período do capitalismo liberal de concorrência, com um regime de acumulação extensivo até sensivelmente meados do século XIX, que correspondeu ao grande desenvolvimento da indústria têxtil e da energia a vapor, que alterou radicalmente a fisionomia tradicional dos territórios e que construiu a cidade industrial moderna, pela destruição da cidade pré-industrial, plurifuncional e socialmente heterogénea.
Posteriormente, na transição do século XIX para o século XX e com a substituição do capitalismo industrial pelo capitalismo financeiro, assiste-se a um outro ciclo de desenvolvimento. De facto, se na estratégia de localização de atividades da época fordista assumiam particular importância as economias de escala (vantagens derivadas das reduções de custo ligadas à ampla dimensão das unidades produtivas) e as economias de aglomeração (vantagens dependentes da vizinhança espacial de uma multiplicidade de atividades), no pós-fordismo perdem importância as economias de escala, porque as estratégias de localização se apoiam numa nova realidade, as economias de diversificação: vantagens que decorrem da capacidade de uma empresa produzir uma gama diversificada de bens e serviços ou da capacidade de coordenar a sua produção de forma eficaz, independentemente da localização das unidades produtivas – situação própria das multinacionais, capazes de definir, à escala internacional, a localização das suas empresas.
Enquanto na época fordista assistimos, por isso, a uma tendência geral para a concentração das atividades produtivas em grandes polos urbanos, no período pós- fordista assistimos, não só a tendências centrípetas, mas também à manifestação de acentuadas tendências centrífugas. Estas tendências centrífugas referem-se, nomeadamente, ao desenvolvimento de atividades de produção industrial de bens de largo consumo, em unidades mais pequenas, que, preferencialmente localizadas no exterior das áreas metropolitanas, buscam aí custos de produção inferiores, nomeadamente em termos dos custos fundiários do solo urbano. Este processo de desindustrialização urbana viabilizou, no entanto, por outro lado, uma certa reafirmação das economias de aglomeração com a deslocação, para esses subúrbios, de empregos de caráter terciário, nomeadamente grandes superfícies comerciais viabilizadoras de novos quotidianos, com novas vivências culturais e urbanas.
As tendências centrípetas, por sua vez, referem-se, sobretudo, às atividades designáveis de processamento de informação, atividades terciárias mais qualificadas: serviços financeiros, serviços de consultadoria, atividades de pesquisa, atividades culturais. Para estas atividades, a localização nos centros direcionais das cidades e das metrópoles apresenta-se determinante, pela proximidade dos centros de decisão política e dos centros de pesquisa tecnológica.
Assim, sobretudo ao longo da segunda metade do século XX, os subúrbios metropolitanos foram sendo, progressivamente, transformados, obrigando a uma reconceptualização do fenómeno metropolitano (agora transformado em pós-metropolitano) e, também, a uma reconceptualização (Soja, 2000) do anterior fenómeno suburbano, para traduzir o princípio do fim do ciclo urbano associado a uma organização particular do habitat humano, a metrópole moderna “fordista”.
Encerrar-se-ia, assim, desta forma, a partir de princípios dos anos 70, o ciclo do desenvolvimento da produção e consumo de massas e o ciclo do desenvolvimento urbano moderno de tipo fordista-corbusiano, representado pelo modelo monocêntrico em que a cidade original, consolidada, se constituía como referência identitária para a maioria dos cidadãos, dominando económica e culturalmente toda a área urbana, que integrava, também, os seus arredores suburbanos e periféricos. No seu lugar, vai surgindo uma nova entidade “that is still difficult to grasp and that as been variously defined (…) an open network with no central places, or with a plurality of ‘nodes’, not necessarily arranged in a clear hierarchical order. (...) For the sake of classificatory completeness we can call this new metropolis, (…), the third generation (or late) metropolis” (Martinotti, 1994: 7, 9 e 11).
Recentemente, a evolução na dinâmica da centralidade no período de fim de século confronta-nos com a afirmação de uma policentralidade urbana em desenvolvimento através do protagonismo das grandes cadeias de distribuição e através da difusão de novas práticas de consumo e de lazer, indissociáveis da acessibilidade automóvel familiar e individual. O aparecimento de novos centros de comércio e serviços fornece aos consumidores, não só alguns serviços e produtos de raridade que se podem encontrar no centro tradicional, mas também espaços de consumo mais adaptados à concorrência setorial, às estratégias do capital internacional e à evolução das técnicas de marketing, bem como à evolução da acessibilidade automóvel como modo dominante da mobilidade urbana.
Emergindo novas centralidades e novas acessibilidades no conjunto do espaço urbano, os Centros tradicionais das cidades perdem importância como lugar de referência para a leitura e vivência cívica da cidade, e deixam de ser, justamente, o lugar mais facilmente acessível da cidade e o único espaço integrador das funções comercial, financeira, político-administrativa e de lazer.
No Porto, o processo de (re)estruturação urbana, nomeadamente ao longo dos anos 80, configurou uma aglomeração urbana complexa, que assenta num processo de terciarização em que, se por um lado, acompanha o evoluir da retícula urbana do modelo difuso de urbanização e industrialização, por outro, acentua o efeito aglomerativo do núcleo duro da AMP e, em especial, da Boavista e do centro tradicional. Igualmente relevante neste período iniciado com os anos 80, para o movimento de descentralização metropolitana do terciário, é a deslocação e a rápida expansão, para a periferia imediata do Porto, de estruturas comerciais de grandes dimensões, os hipermercados.
Estes centros comerciais suburbanos, substituindo as áreas comerciais dos centros tradicionais e constituindo-se como centros de atividade comercial, constituíram-se, também, como centros de atividade social, embora segregada. O centro comercial vai-se tornando, por isso, central, com tendência a secundarizar a cidade real, ao propor-se como referência ideal do espaço público urbano.
Tendo surgido para imitar as ruas reais da cidade real, reestruturando, constantemente, os produtos e as mercadorias, o centro comercial garante uma eficiente circulação de um grande número de bens, induzindo, no comprador, novas necessidades, distintas das necessidades reais determinadas objetivamente, mas necessidades que, articulando os aspetos materiais e simbólicos da vida social humana, vinculam o consumo e o quotidiano. Na sua condição de espaços privados e segregados, os centros comerciais substituem, assim, a sociabilidade no espaço público da rua e da praça tradicionais.
No caso da cidade do Porto, com a afirmação da nova centralidade de ocupação do solo na Boavista e com a afirmação de outras centralidades na ocupação extensiva do solo em espaços periféricos, instala-se uma dinâmica de centralidade nova, uma dinâmica de centralidade partilhada. O modelo tradicional vai, assim, dando lugar a vários centros e várias periferias, no contexto de uma área urbana inserida num espaço regional difusamente industrializado, em tensão entre a desestruturação e a policentralidade, e em que a nova dinâmica de centralidade, desenvolvida na ocupação extensiva do solo periférico, é, também, consequência de novas dinâmicas de sociabilidade urbana instaladas, nomeadamente nos novos hipermercados que vieram substituir parcialmente (trata-se de espaços de consumo monofuncionais, igualmente importantes para o lazer e o encontro urbanos, embora segregadores, pelo caráter privado do seu estatuto jurídico), o protagonismo do espaço público do centro tradicional.
A confirmação, nas últimas décadas do século XX, da constituição de uma realidade urbana integrando o Porto e os concelhos limítrofes, onde coexistem fenómenos de metropolinização e de progressiva interdependência urbana, confrontou, assim, os investigadores e os decisores, com novas condições urbanas emergentes, indissociáveis de novas práticas de vivência urbana e de consumo, através das novas modalidades de acessibilidade individual e familiar e com a necessidade de definir, para o centro tradicional do Porto, um novo protagonismo no quadro de uma policentralidade urbana supramunicipal, para que este tempo de crise, de transformação, inserido no tempo longo das cidades, pudesse ser, historicamente, cumprido.

 

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Notas

1Sociólogo e Professor Auxiliar do Instituto Superior de Serviço Social do Porto (Porto, Portugal). E-mail: azilhao@sapo.pt.

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