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Sociologia

versão impressa ISSN 0872-3419

Sociologia vol.25  Porto jun. 2013

 

Trabalho, Qualificação, Poder e Precariedade: Uma abordagem dinâmica à estruturação dos modelos produtivos, a partir de um estudo de caso da profissão científica

Work, Qualification, Power and Precariousness: A dynamic approach to the structuration of production models, from a case study of the scientific profession

Travail, Précarité, Qualification et Pouvoir : Une approche dynamique sur la structuration des modèles de production, à partir d’une étude de cas de la profession scientifique

Trabajo, Precariedad, Cualificación y Poder: Un enfoque dinámico sobre la estructuración de los modelos de producción, basado en un estudio de caso de la profesión científica

Alfredo Campos1

Universidade de Coimbra


 

RESUMO
O artigo analisa teoricamente como a precarização do trabalho e do emprego não se limita ao menos qualificado e se alarga, progressivamente, ao trabalho qualificado, propondo uma abordagem dinâmica centrada no poder. Seguidamente, apresenta os resultados de um estudo assente nesta abordagem, junto de uma profissão altamente qualificada, os profissionais da ciência.

Palavras-chave: Precariedade; Qualificação; Poder.


ABSTRACT
The article theoretically analyzes how precariousness of work and employment isn’t limited to unskilled labor and progressively extends to skilled work, proposing a dynamic approach centered on power. The results of a study based on this approach, among a highly skilled profession – the science professionals – are presented.

Keywords: Precariousness; Qualification; Power.


RÉSUMÉ
L'article analyse théoriquement la façon comme la précarité du travail et de l'emploi ne se limite pas au moins qualifié et s'élargit progressivement au travail qualifié, en proposant une approche dynamique centrée sur le pouvoir. Les résultats d'une étude basée sur cette approche, sur une profession hautement qualifiée, les professions scientifiques, sont presents.

Mots-clés: Précarité; Qualification; Pouvoir.


RESUMEN
El artículo analiza teóricamente como la precariedad del trabajo e del empleo no se limita al menos cualificado y se alarga progresivamente al trabajo cualificado, proponiendo un enfoque dinámico centrado en el poder. Basado en este enfoque, se presentan los resultados de un estudio sobre una profesión altamente cualificada: los profesionales de la ciencia.

Palabras-clave: Precariedad; Cualificación; Poder.


 

1. Modelos produtivos, flexibilização, precariedade, qualificação e integração social

Na primeira parte deste artigo, abordam-se as transformações sociais e económicas que se foram dando nas últimas décadas, e o impacto destas nos modelos produtivos. Neste âmbito, dá-se destaque aos tipos de flexibilização e à precariedade que podem propiciar, salientando a estratificação do emprego que pode decorrer da qualificação. Finalmente, analisa-se como a precariedade afeta a integração social do indivíduo.

1.1 Das transformações sociais e económicas às transformações dos modelos produtivos

Até aos anos 70 imperava um modelo social de estabilidade no emprego, com crescimento dos salários próximo do aumento do custo de vida e da melhoria das condições de trabalho, com predomínio para uma relação de trabalho por “tempo indeterminado, com horário de trabalho completo, um local de trabalho bem circunscrito, (…) o emprego para toda a vida era o modelo que inscrevia o direito do trabalho, as instituições sociais e organizava a relação social” (Cerdeira, 2005: 94-95). Esta relação de trabalho era regulada pelo Estado, que regulava, igualmente, a economia e os conflitos de classe, favorecendo a negociação coletiva e a representação coletiva dos trabalhadores (Casaca, 2005: 35).
Ao fim e ao cabo, o fordismo de então não era, somente, uma forma dominante de organização do trabalho a partir da mecanização do taylorismo, mas, igualmente, um modelo macroeconómico no qual os aumentos de produtividade e lucro contemplavam também o trabalho, mediante o aumento do seu poder de compra, bem como um efetivo contrato social que garantia a regulação de longo prazo e a negociação coletiva do trabalho, promovendo a integração e coesão social (Costa, 2008: 23-25).
A crise deste modelo teve início com os conflitos laborais dos anos 60, seguindo-se a crise económica e o choque petrolífero dos anos 70, bem como a disseminação de novas propostas de modelos produtivos a partir dos anos 80 (Kovács, Casaca, Ferreira e Sousa, 2006: 29). Mais concretamente a partir da crise económica dos anos 70, a crise do capitalismo foi encarada como uma crise dos próprios modelos produtivos (Boltanski e Chiapello, 2007: 218). Tal deveu-se a diversos fatores: no contexto da globalização económica, as condições da concorrência empresarial alteraram-se e intensificaram-se radicalmente, a produção em massa fordista entrou em crise, devido ao decréscimo dos ganhos de produtividade, fruto dos próprios limites técnicos do fordismo, a concorrência à escala global com países de custo de mão de obra muito inferior, os processos de terciarização nos países ocidentais, o desenvolvimento tecnológico e a massificação da tecnologia de informação nas empresas (Casaca, 2005:21-23). Além disso, as alterações nos hábitos de consumo, exigindo uma maior diversificação e qualidade da produção, tornaram os mercados instáveis e imprevisíveis, inviabilizando os sistemas produtivos cuja essência era a estabilidade e previsibilidade, fazendo, portanto, depender a competitividade da capacidade de passar da produção em massa para a produção flexível (Kovács e Castillo, 1998: 6; Kovács, 2002: 44-45).
Se, conceptualmente, o emprego no âmbito do contrato social do período fordista assentava na regulação contratual e do tempo de trabalho, na regulação coletiva do trabalho, na concentração do espaço produtivo no interior da empresa, na linearidade dos ciclos de vida e no contrato tradicional de género, a renegociação do contrato social em torno de novos paradigmas produtivos aponta, precisamente, para o oposto daquelas dimensões (Casaca, 2005:37). Com a crise económica da década de 70, e com a crescente abertura de mercados e liberalização do comércio mundial, hoje é a própria fluidez da concorrência e do consumo que exige uma crescente flexibilidade da produção e consequentemente também da organização do trabalho (Estanque, Ferreira, Costa e Lima, 2005: 7), com uma pressão crescente para a eliminação da regulação estatal dos mercados de trabalho (Casaca, 2005: 22). Como salienta Kovács estas formas de emprego não são novas, mas sim um regresso a antigas formas de trabalho pré-fordistas, propiciando portanto o retorno às vulnerabilidades de então (2005: 12).

1.2 A estruturação social dos modelos produtivos e a estratificação do trabalho segundo a qualificação

Se, no passado, o taylorismo e fordismo se afirmaram como modelos produtivos dominantes, na complexidade económica das sociedades contemporâneas encontraremos, antes, combinações diversas de modelos, por vezes mesmo aparentemente contraditórias, sendo, para Kovács e Castillo (1998), limitador conceber a existência de um modelo dominante. Verifica-se uma diversidade de modelos de produção flexível, bem como diversas articulações destes, inclusive mantendo características fordistas e tayloristas. Tais articulações podem dar-se e coexistir distintamente num país, setor ou empresa.
Coexistindo diferentes modelos produtivos em simultâneo, tais estruturações são socialmente construídas, a partir de fatores como “a comunidade local, os valores sociais e a cultura industrial predominante, as características e a sociogénese da empresarialidade, a constituição e o jogo dos atores sociais, as relações sociais, as formas institucionalizadas de cooperação”, etc. (Kovács e Castillo, 1998: 43). Além disso, contribuem, igualmente, outros fatores como as necessidades das empresas e os mercados existentes, a legislação laboral vigente, o poder de negociação dos trabalhadores e a tradição negocial da sociedade (Kovács, 2002: 129).
Se, para Castells (in Toni, 2003), Estanque, Ferreira, Costa e Lima (2005) e Kovács (2002: 125-126), a flexibilização da organização empresarial não acarreta, necessariamente, a precarização das relações laborais do trabalho, os autores assinalam que o rumo seguido por empresas e governos tem privilegiado a flexibilização assente na redução de custos, que encontra na insegurança do emprego um dos seus alicerces, mediante sucessivos processos de downsizing e outsourcing. Os empresários optam, assim, por relações precárias, com salários irregulares, aproveitando oportunidades como o uso de estágios, subcontratando e recorrendo a empresas de trabalho temporário (Boltanski e Chiapello, 2007: 226).
Kovács e Castillo tipificam dois caminhos para a flexibilização da produção. Uma via alta (qualitativa) e uma baixa ( quantitativa) para a flexibilidade: uma qualitativa apostada na qualificação, novos perfis profissionais, práticas de gestão participativas e compromisso de longo prazo entre empregadores e empregados; e uma quantitativa alicerçada em baixos salários e mercado de trabalho desregulado, sendo os trabalhadores periféricos tratados como simples instrumentos de produção facilmente removíveis quando deixam de ser necessários (Kovács e Castillo, 1998; Kovács, Casaca, Ferreira e Sousa, 2006). A aplicação real dos modelos consiste na combinação de diferentes estratégias, nomeadamente procedendo a uma flexibilização quantitativa dos recursos humanos no geral – buscando a redução dos custos de mão de obra pela precarização do emprego e exteriorização de setores da produção – e reservando a flexibilização qualitativa somente aos trabalhadores nucleares, gerando uma segmentação dos trabalhadores entre os centrais e mais qualificados, por um lado, e os menos qualificados, por outro, periféricos ou exteriores à empresa (Kovács, 2002: 69-70, 83-85).
Assim, numa organização por coroas, a empresa flexível deterá um núcleo central, constituído pelos trabalhadores permanentes que desempenham as funções de maior valor; em torno deste núcleo existe uma primeira coroa, composta pelos trabalhadores temporários da empresa, aqueles cujas tarefas são mais desqualificadas e face aos quais é operada a flexibilização numérica; uma segunda coroa exterior representa as atividades exteriorizadas mediante outsourcing e os trabalhadores sem vínculo à empresa (Bernard Hughes Consultants in Casaca, 2005).
À valorização do trabalho qualificado corresponderá a desvalorização do desqualificado (Costa, 2008: 28), numa nova segmentação do mercado de emprego, potenciando formas trabalho precárias e inseguras. As qualificações tornam-se cada vez mais um fator de estratificação social: os recursos humanos nucleares, essenciais às atividades de forte valor acrescentado são valorizados, enquanto os ligados às de baixo valor acrescentado são contratados, despedidos ou externalizados em função das necessidades de flexibilização das empresas face aos mercados (Kovács, Casaca, Ferreira e Sousa, 2006: 41-42).
Recorde-se, no entanto, as teorizações apresentadas por Beck e Reich, no qual o primeiro caracteriza os trabalhadores precários qualificados, detentores de qualificações mas sem vínculos efetivos e trabalhando intensivamente, e o segundo define ostrabalhadores qualificados dos serviços interpessoais, qualificados mas precários, bem como os trabalhadores dos serviços analítico-simbólicos, com elevadas competências e qualificações mas com relações de trabalho individualizadas (Casaca, 2005: 56-61, 64-68). De facto, estudos recentes apontam para o desempenho de trabalho qualificado em condições de emprego precário, sobretudo entre jovens (Marques e Alves, 2010; Silva, 2007).

1.3 Precariedade, identidade, integração e ação coletiva

Castells e Castel (in Toni, 2003) consideram que, nesta nova era do capitalismo, o trabalho não constitui somente uma fonte de rendimento, mas perpetua o seu papel na integração social, na definição de estatutos sociais e como fonte de identificação.
Deste modo, se o trabalho nos sistemas produtivos fordistas constituía um fator de integração social e de pertença coletiva, hoje as formas de flexibilidade nas empresas conduzem, muitas vezes, a formas de diversificação das relações laborais muitas vezes altamente precárias, gerando uma insegurança enformada num tipo de individualismo que situa o indivíduo separado de pertenças coletivas, “a exclusão do emprego e da empresa implica isolamento, significa não ter identidade social e não ter palavra para defender os seus interesses” (Kovács, 2002: 133).
Para Castel (1998), esta dinâmica de flexibilização produtiva leva, precisamente, ao desemprego, à precariedade e à individualização, considerando que quaisquer destes fatores influenciarão a integração social, na medida em que geram uma vulnerabilidade em massa. Esta é uma vulnerabilidade pós-proteções, não propiciadora de laços de solidariedade que potenciem coletivos que forneçam identificação e segurança, mas sim impulsionadora de um tipo de individualismo negativo e desfiliação social do indivíduo, porque subtraído à pertença coletiva (1998: 609-610).
Além disso, se o sistema económico das sociedades contemporâneas promove uma individualização das relações laborais, também o seu sistema simbólico promove uma individualização das relações sociais, uma “formatação pela socialização num caldo de cultura próprio em que a concorrência entre as pessoas (…) prevalece e destrói as solidariedades” (Silva, 2007: 122).
Assim, conjuga-se uma vivência objetiva e subjetiva de precariedade, traduzidas na impotência e no medo; na aceitação e resignação (Estanque, Ferreira, Costa e Lima, 2005: 39); um individualismo negativo e a desfiliação social que promove (Castel, 1998); e uma ideologia individualizante que emerge do modo de produção do capitalismo contemporâneo. Tal resulta numa massa de trabalhadores ocupada em individualmente assegurar a sua existência social, mas desvinculada de quaisquer formas coletivas de o fazer. Portanto, para agrupamentos crescentes, a ação coletiva – primordialmente a sindical – não mais surge como um meio privilegiado de garantir os direitos no trabalho e a melhoria das suas condições.
Conclui-se, portanto, que a precariedade constitui, por si mesma, uma barreira à capacidade de resistência dos trabalhadores, ao generalizar a insegurança a partir da instabilidade do emprego e da individualização das relações de trabalho.

2. As profissões entre a flexibilidade e a precariedade: qualificação, poder e coesão

Friedson considera que o poder de uma profissão reside na construção de um monopólio profissional no âmbito da divisão social do trabalho, mediante a monopolização da qualificação necessária ao exercício da profissão e ao controlo do acesso à mesma pela definição dos moldes em que é possível, conferindo, assim, a essência do poder profissional, a sua autonomia e o controlo sobre o seu trabalho (Rodrigues, 1997: 50-57). Já Larson considera que o poder profissional assenta na capacidade de uma profissão criar um monopólio profissional sobre o mercado de trabalho, fechado a outros grupos e controlando o acesso à profissão, assim lhe garantindo determinados recursos e benefícios, sendo o controlo sobre o mercado a fonte de poder (Larson, 1977: 40-52). É necessário que um grupo profissional se organize em associação profissional, para que seja capaz de negociar com o Estado a possibilidade de definir as condições de acesso à profissão e controlo sobre esse acesso, o grau de autonomia no exercício da profissão e, portanto, o seu poder profissional (Freire, 2006: 322-324).
Saliente-se que Friedson considera que, ainda que exteriormente homogéneos, os grupos profissionais se segmentam internamente (Rodrigues, 1997: 50-57), pelo que se poderá considerar que também o poder profissional se estratificará internamente. O desenvolvimento da sociedade tem levado a uma massiva passagem dos profissionais independentes a especialistas assalariados em organizações burocratizadas, contribuindo para a estratificação interna das profissões (Larson, 1977: 178-207) e para a sua perda de autonomia e controlo sobre o trabalho (Oppenheimer in Freire, 2006: 328-329).
Sinteticamente, da análise exposta, o poder profissional consiste no poder de dada profissão garantir aos seus membros elevadas condições de trabalho e emprego, pelo controlo das qualificações necessárias ao acesso à profissão e pela monopolização de um espaço no mercado de emprego, a partir da sua relação com o Estado e de uma organização profissional forte e coesa.
Posto que, no contexto das transformações dos sistemas produtivos e da introdução de formas flexíveis de gestão das empresas, se assiste a uma flexibilização por via alta ou baixa, qualificante ou precarizante, então poder-se-á considerar que o tipo de flexibilização que incidirá sobre determinada profissão, e seus segmentos internos, derivará do poder dessa profissão em negociar dado tipo de flexibilização, particularmente para as profissões assalariadas.
Assim, uma profissão com elevado poder profissional, com uma organização profissional forte e eventualmente também sindical, capaz de controlar o acesso à profissão e daí o número de profissionais no mercado, terá uma maior capacidade para assegurar que se inserirá num processo de flexibilização qualificante. Pelo contrário, uma profissão com um poder reduzido, sem ou com uma fraca organização profissional, incapaz de garantir um monopólio sobre o mercado de trabalho, pouco coesa e sem apoio sindical, terá dificuldade em resistir a uma flexibilização precarizante. Acresce a isto, o facto de muitas das novas ocupações qualificadas não se terem profissionalizado, não dispondo de associações profissionais. Ademais, se as próprias profissões se estratificam internamente, poder-se-á considerar que o poder para resistir a uma flexibilização precarizante ou garantir uma qualificante, variará conforme os segmentos da profissão, sendo mais elevado para os patamares superiores da hierarquia profissional e menor para os inferiores, possivelmente inseridos em relações de emprego mais individualizadas e menos organizados e/ou sindicalizados.
Retornando ao modelo de empresa flexível dividido em coroas, poder-se-ia, então, considerar que, sendo altamente qualificadas, as profissões tenderiam a inserir-se no núcleo central das empresas. No entanto, dados os estudos indicando a precariedade no trabalho qualificado, também os trabalhadores qualificados se poderão integrar nas coroas periférica e exterior. Poder-se-á, então, considerar que, por um lado, tais trabalhadores provirão de profissões já inteiramente desprofissionalizadas, ou, por outro lado, que serão novas ocupações qualificadas que ainda não percorreram o seu percurso de profissionalização.
À luz da reflexão prévia, o núcleo central das empresas poderá estar reservado a profissões que, pelo seu grau de organização e importância das suas qualificações, controlo do mercado de trabalho e poder profissional, assegurem para si a inserção num processo de flexibilização por via alta. Seguindo este raciocínio, outras profissões de menor poder, menos organizadas, com qualificações de menor relevância e menor controlo sobre o acesso à sua profissão, acabarão remetidas para as coroas periférica e exterior. Por último, também os diferentes segmentos da hierarquia de uma mesma profissão, conforme o seu poder no interior da profissão, poderão ser remetidos para distintos lugares da empresa: o topo da hierarquia profissional poderá ser capaz de assegurar a sua inserção no núcleo central, mas os níveis inferiores da profissão poderão não ter poder suficiente para garantir o mesmo processo, não resistindo à flexibilização precarizante e sendo, assim, inseridos na periferia e exterior da empresa.

3. Tipologias de flexibilidade e precariedade

Existem diversas definições de flexibilidade e precariedade, mas entende-se que a tipologia proposta por Kovács (2002: 85-88) é o quadro teórico mais desenvolvido e adequado à análise concreta da realidade social nas relações flexíveis e precárias no trabalho e no emprego. Este permite dar conta de uma panóplia de situações, refletindo distintos potenciais de empregabilidade em função das qualificações e da possibilidade de aprendizagem, em combinação com um conjunto de outras dimensões2.
Deste modo, os indivíduos na situação de precariedade continuada são trabalhadores pouco qualificados e inseridos em relações de emprego precárias de trabalho periférico ou externo às empresas, com percurso profissional de frequente mobilidade lateral, entre empregos do mesmo tipo e, eventualmente, alternando com períodos de desemprego. Os indivíduos na situação de estabilidade ameaçada são trabalhadores igualmente pouco qualificados em trabalhos desqualificados, ainda algo protegidos por uma relação de emprego estável, correndo, no entanto, riscos em caso de falência ou despedimento. As duas situações partilham, igualmente, uma reduzida capacidade de negociação individual e coletiva.
Pelo contrário, os trabalhadores em situação de estabilidade continuada são os que ocupam lugares centrais na empresa, qualificados e ricos em conteúdo. Fruto da sua importância na produção e na competitividade, as empresas procuram garantir a sua permanência, acedendo a melhores remunerações e condições de trabalho, também fruto de uma maior capacidade negocial. Também entre os trabalhadores centrais às empresas se situam os trabalhadores em situação de flexibilidade qualificante, cuja ténue ligação às empresas é uma opção pessoal. Fruto da sua elevada qualificação e do trabalho rico em conteúdo que realizam, proporcionando uma aprendizagem continuada, estes trabalhadores são fundamentais à competitividade das empresas, pelo que detêm uma capacidade negocial, mesmo a nível individual, que lhes permite garantir condições de trabalho adequadas, inserindo-se em percursos de forte mobilidade lateral entre empregos qualificados e frequentemente ascendentes.
Finalmente, nas situações de flexibilidade precária transitória encontrar-se-ão, essencialmente, jovens qualificados, correspondendo a sua situação à entrada no mercado de emprego, em trabalhos pobres em conteúdo que, sendo-o, não permitem o uso das suas qualificações nem aprendizagem acrescida. E, dada a sua condição precária, também a sua capacidade de negociação é reduzida. Ao fim e ao cabo, esta situação reflete a lógica das novas contratações, tornando regra que o(s) primeiro(s) emprego(s) seja(m) precário(s), mesmo para jovens com elevadas qualificações.
Considera-se de assinalável interesse teórico e empírico a conjugação da tipologia de Kovács com a proposta de Natália Alves (2010). Assim, ainserção rápida num emprego estável definida por Alves corresponderá à estabilidade continuada de Kovács. Já a trajetória deinserção diferida num emprego estável da segunda autora corresponderá a um novo patamar entre a estabilidade ameaçada e a estabilidade continuada da primeira. As trajetórias de estabilidade na precariedade e inserção precária de Alves constituirão um novo patamar com dois níveis, situando-se a primeira trajetória no superior e a segunda no inferior, entre as categorias de flexibilidade qualificante e flexibilidade precarizante de Kovács. A situação de exclusão, por último, corresponderá à flexibilidade precária continuada.

4. Um estudo de caso da profissão científica

Apresenta-se, em seguida, um estudo de caso assente nas anteriores noções teóricas, junto da profissão científica. Inicia-se com uma exposição das características da profissão, seguindo-se a apresentação da metodologia e resultados encontrados.

4.1 Estratificação, qualificação e precariedade na profissão científica

Para Carapinheiro e Amâncio (1998), a profissão científica é estratificada, logo à partida, pela posse ou não de doutoramento, bem como pelo grau de internacionalização da sua atividade. Para além disso, consideram que a diversidade de áreas científicas e distintas culturas profissionais, identidades e conceções científicas, contribuem para uma heterogeneidade que assinala um processo de consolidação profissional ainda em curso.
No que respeita às categorias principais de cientistas, os da carreira docente e os da carreira de investigação, Stoleroff e Patrício (1998) procedem à análise das suas atividades e da forma como estas configuram uma estratificação entre duas carreiras, bem como no interior de cada.
Num registo algo diferente, Machado, Ávila e Costa (1998) analisam a estratificação dos cientistas numa perspetiva a montante, reportando-se às suas origens de classe. O fenómeno mais relevante é o efeito que os autores detetam da classe de origem sobre a estratificação dos cientistas, numa das suas dimensões mais relevantes, a posse ou não de doutoramento.
Verificando a multiplicidade de fatores que contribuem para a estratificação interna da profissão científica, Ávila (1997) considera, igualmente, que é profundamente heterogénea. Deste modo, propõe um Índice de Capital Científico (ICC), que agregue os principais fatores de diferenciação e permita, a partir de um único indicador, avaliar o posicionamento individual e comparativo de um cientista na hierarquia profissional.
Dado os bolseiros serem considerados pessoal em formação, não seria à partida possível analisar a sua relação de emprego. Mas Perista (2004) assinala que a maioria dos bolseiros mantém essa condição por longos períodos de tempo, passando de uns projetos para outros, claramente demonstrando que assumem necessidades permanentes dos serviços e que a sua atividade não é apenas formativa. Levy e Carvalho (2007) consideram que deve ser considerado investigador qualquer profissional envolvido em atividades de investigação, concluindo que muitos bolseiros são considerados estudantes quando deveriam ser tidos como trabalhadores de pleno direito, o que os remete para uma situação precária sem quaisquer direitos laborais. Também Natália Alves (2010) considera as bolsas como uma forma de trabalho precário.
Importará, agora, retirar algumas conclusões quanto à profissão científica e à sua situação entre a flexibilidade, estabilidade e precariedade. A profissão científica detém elevadas qualificações e o poder de controlar, por si mesma, o progresso na carreira, sendo os cientistas avaliados pelos seus pares. No entanto, se tem uma estreita relação com o Estado, ainda assim a regulação da profissão é, em larga medida, efetuada por este e não pela própria profissão. Além disso, tem uma elevada autonomia na execução do seu trabalho, mas está dependente de financiamento para o desenvolver e da produtividade que lhe é exigida, pelo que o grau de autonomia é relativo (Enders, 2007). Pelo mesmo motivo, o seu poder de constituição de um monopólio profissional é algo reduzido, posto que se são os próprios cientistas a decidir quem acede à profissão, via júris de concursos, é, no entanto, o Estado o principal financiador da investigação, portanto regulador do número de projetos, bolsas e vagas.
Para além disso, viu-se já que a existência de organizações profissionais e sindicais é uma das principais fontes de poder profissional, mas encontramos na ciência uma diversidade de instituições: sindicais, associativas profissionais e associativas académicas.
Finalmente, explanou-se como o poder profissional depende da sua coesão interna e homogeneidade externa. Ora, do exposto, encontramos uma profissão cuja heterogeneidade é inclusive externa, com distintas carreiras, além dos bolseiros. Deste modo, a sua estratificação não remete somente para uma hierarquia profissional interna, mas para toda uma outra multiplicidade de fatores, dos quais se consideram mais relevantes as três carreiras – docente, de investigação e bolseiros – a atividade desenvolvida e o capital científico, ao qual se adicionam as características do trabalho e emprego.
Dado grande parte da investigação científica se integrar no sistema público, importará proceder a uma analogia entre o Estado e a flexibilização das empresas. Assim, se estas procuram flexibilizar a sua gestão e produção, muitas vezes por uma via baixa e precarizante, assente no modelo das três coroas, também o Estado poderá, assim, ser concebido (Pérez-Castro e Adler, 2009; Yuasa, 2009). Assim, o Estado procura uma estruturação do Sistema Científico e Tecnológico Nacional (SCTN), mediante uma flexibilização quantitativa de redução de custos, limitando a um núcleo central os investigadores mais bem posicionados na hierarquia de cada carreira, de maior capital científico e cujas atividades são mais centrais à produção de ciência, remetendo para uma coroa periférica os restantes investigadores. Os bolseiros integrar- se-ão na coroa exterior ao sistema pela ausência de contrato, sendo este o caso em que a estratégia de redução de custos é mais evidente.
Concluindo, considera-se que a ciência é uma profissão ainda em processo de profissionalização, desorganizada profissionalmente e altamente estratificada externa e internamente, logo com um reduzido poder profissional. Portanto, pouco capacitada para resistir às tendências precarizantes em curso e com uma capacidade de resistência segmentada de acordo com a sua estratificação, a partir dos fatores antes expostos.

4.2 Metodologia, amostra e hipóteses de trabalho

A metodologia baseou-se no inquérito por questionário, de aplicação online. Foi selecionada como população os investigadores da Universidade de Coimbra, tendo sido enviado a um total de 2569 investigadores, obtendo-se 563 inquéritos válidos.
Determinados fatores desdobram-se em várias dimensões, tornando-se útil a construção de índices que permitam que esses fatores sejam analisados a partir de um único indicador. Assim, foram construídos índices para a mobilidade, a autonomia, o uso da qualificação, a capacidade de negociação e as condições de trabalho, agregando os diversos indicadores de cada um destes fatores3. A hipótese central em análise é que as relações de trabalho e emprego, mais estáveis, precárias ou flexíveis, se estratificarão de acordo com um conjunto de fatores já explicitados, além dos índices referidos.

4.3 Caracterização do trabalho e emprego dos cientistas

No que respeita à mobilidade profissional, verifica-se um padrão diferenciador desta, existindo diferenças significativas consoante a situação na investigação. Somente se verifica uma mobilidade muito ascendente entre os docentes a termo e os investigadores a contrato, sendo a ascendente assinalável entre os docentes sem termo e bolseiros de doutoramento e pós-doutoramento. Já a mobilidade lateral é mais predominante para os docentes sem termo e bolseiros de investigação, sendo também estes que acumulam maiores situações de mobilidade descendente e muito descendente, com a descendente a assumir, também, uma dimensão nos docentes a termo, investigadores contratados e bolseiros de doutoramento e pós-doutoramento.
Quanto ao uso da qualificação no trabalho, regista-se para todas as situações uma maior proporção de uso elevado e de muito elevado para os docentes e bolseiros de doutoramento e pós-doutoramento. Já entre os investigadores contratados e bolseiros de investigação encontra-se um menor peso do uso muito elevado e algum peso de uso reduzido da qualificação, mais grave para os bolseiros de investigação, nos quais se verifica também uma pequena proporção de uso muito reduzido, embora sem diferenças significativas.
Acerca da autonomia profissional, constata-se que a maioria tem uma autonomia elevada, particularmente os docentes sem termo, com estes, os a termo e os bolseiros de doutoramento a assumir maior proporção de autonomia muito elevada. Pelo contrário, os investigadores contratados apresentam uma proporção assinalável de autonomia reduzida, proporção ainda mais elevada para os bolseiros de investigação, significando que a autonomia é estratificada pelas diferentes situações na investigação.
Já quanto às condições de trabalho, encontram-se resultados complexos. Verifica-se que os investigadores docentes sem termo têm a melhor situação, com 78,3% com condições de trabalho elevadas ou muito elevadas. Nos investigadores docentes a termo regista-se uma situação paradoxal, verificando-se uma proporção elevada, quer com condições elevadas, quer reduzidas de trabalho, o que remeterá para a proporção dos que trabalham mais de 40 horas, estendem o horário para a noite e fins de semana e classificam o ambiente de trabalho como hostil. Já os investigadores contratados têm, também, elevadas condições de trabalho e, em proporção razoável, condições intermédias. Os bolseiros de doutoramento e de pós-doutoramento distribuem-se quase igualmente entre as condições intermédias e elevadas, mas também com uma percentagem assinalável de condições reduzidas. Finalmente, é entre os bolseiros de investigação que se encontra um padrão de condições nos graus inferiores, com elevada proporção nas condições intermédias, bem como nas reduzidas, evidenciando diferenças significativas, o que significa que as condições de trabalho se estratificam de acordo com a situação na investigação.
Relativamente à capacidade de negociação, destacam-se entre os que não têm qualquer capacidade de negociação os docentes a termo e sem termo e bolseiros de investigação, enquanto os investigadores contratados e bolseiros em geral declaram, maioritariamente, ter alguma capacidade. A proporção dos que declaram ter muita capacidade é homogénea para as várias situações à exceção dos bolseiros de investigação, enquanto a capacidade absoluta é exclusiva dos docentes sem termo e investigadores, mas em proporções muito reduzidas. Não se verificam, no entanto, diferenças significativas.
Sobre a existência de períodos de inatividade, verifica-se que é entre os docentes que a suspensão de atividade menos ocorreu, observando-se que foi para os investigadores contratados e bolseiros em geral que a suspensão mais ocorreu de forma involuntária. No entanto, foram, igualmente, os bolseiros de investigação que, em maior proporção, interromperam voluntariamente a sua atividade, verificando-se diferenças significativas, pelo que a suspensão da atividade é estratificada pelas várias categorias.

4.4 Atitudes dos cientistas quanto à carreira e satisfação no trabalho

A opção de abandonar a carreira estratifica-se de acordo com a situação na investigação. Constata-se que são os docentes sem termo e investigadores contratados que mais dificilmente abandonariam a carreira, mas também com proporções consideráveis que pensariam seriamente em o fazer ou, e em menor grau, que o fariam certamente. Já os docentes a termo teriam, maioritariamente, muitas dúvidas na sua decisão, mas percentagem assinalável considerá-lo-ia seriamente. Entre os bolseiros, é maior a proporção dos que pensariam seriamente na mudança ou que o fariam certamente, com um maior peso destas situações nos bolseiros de investigação.
Quando à avaliação da relação de emprego como estável ou precária, constata-se uma divisão clara, conforme o vínculo laboral, embora seja interessante notar as diferenças entre as duas formas de ver a estabilidade e as duas de ver a precariedade. Assim, enquanto os docentes sem termo esmagadoramente ligam a sua estabilidade ao seu contrato sem termo, já os docentes a termo consideram-se estáveis pela possibilidade de o renovar ou conseguir outro, mas um número razoável considera-se precário por ter dificuldade em conseguir outra investigação. Os investigadores contratados consideram-se, essencialmente, precários, sobretudo pela dificuldade em conseguirem outra investigação, mas também em conseguirem outra profissão, embora haja, igualmente, uma proporção que se considera estável, apesar do seu contrato a termo, por considerar que o renovará ou conseguirá outro. Quanto aos bolseiros, a maioria descreve a sua situação como precária, os de doutoramento e pós-doutoramento mais por considerarem não encontrar outra profissão qualificada, os de investigação principalmente por não conseguirem outra investigação. Verificam-se, evidentemente, diferenças significativas, o que demonstra que a avaliação da situação de emprego se estratifica conforme a situação na investigação.
Finalmente, regista-se um padrão entre o grau de satisfação e a situação na investigação. A satisfação é maior entre os docentes e investigadores contratados, assumindo um peso algo menor entre os que se declaram nem satisfeitos nem insatisfeitos. Pelo contrário, nesta categoria é mais elevado o peso dos bolseiros, mas são também estes os que assinalam maior insatisfação e menor satisfação.

5. Conclusões

Apresentam-se, em seguida, as conclusões deste artigo. Inicialmente, no que respeita às conclusões do estudo de caso sobre a profissão científica e, em seguida, as conclusões finais de caráter teórico sobre o tema em estudo.

5.1 Estabilidade, flexibilidade e precariedade na ciência

Apenas os docentes sem termo apresentam relações menos complexas, sendo que a esmagadora maioria dos docentes sem termo, apesar de 71,4% ter nenhuma ou apenas alguma capacidade de negociação, situam-se numa relação de estabilidade continuada. Apenas uma pequena percentagem de 7,3%, correspondendo aos docentes mais jovens, se situará numa relação de inserção diferida num emprego estável, quando tenham existido experiências de mobilidade lateral e suspensão involuntária da atividade, ou numa relação de inserção rápida num emprego estável, na ausência de suspensão e mobilidade sempre ascendente.
Entre os docentes a termo, os mais jovens – com más condições de trabalho, apesar de elevada autonomia, fraca capacidade de negociação, situações de mobilidade lateral, mas sem suspensão da atividade, e que abandonariam a carreira ou pensariam seriamente em fazê-lo – situar-se-ão numa relação deestabilidade na precariedade qualificada. Já aqueles na mesma situação, mas com experiências de suspensão de atividade encontrar-se-ão numa relação de inserção precária qualificada. No entanto, um outro conjunto, menos jovem – com mobilidade ascendente ou muito ascendente, elevadas ou muito elevadas condições de trabalho, muita capacidade de negociação e que dificilmente abandonaria a carreira ou não o faria de todo – estará numa situação de flexibilidade qualificante, mesmo que trabalhe numa única instituição.
Relativamente aos investigadores contratados, um grupo mais jovem – com experiências de suspensão da atividade, autonomia reduzida, mobilidade lateral ou mesmo descendente e que abandonariam a carreira ou pensariam seriamente nisso, ainda que com condições de trabalho intermédias e alguma capacidade de negociação – estará numa relação de inserção precária qualificada. Outros, com condições semelhantes, mas sem experiências de suspensão da atividade e sem mobilidade descendente, situar-se-ão na estabilidade na precariedade qualificada. Mas existe, igualmente, um grupo de mobilidade ascendente e muito ascendente – com elevada autonomia e condições de trabalho e muita capacidade de negociação e que não abandonaria a carreira ou dificilmente o faria, ainda que tenha tido períodos de suspensão involuntária da atividade e possa laborar numa única instituição – e que se enquadrará numa relação de flexibilidade qualificante.
Encontram-se relações semelhantes entre os bolseiros de doutoramento e pós- doutoramento. Assim, um conjunto destes bolseiros – com mobilidade lateral ou descendente, reduzida autonomia e condições de trabalho, sem experiências de suspensão de atividade, mas que abandonariam a carreira ou seriam o considerariam – insere-se numa relação de estabilidade na precariedade qualificada. Já um grupo com as mesmas características, mas com assinaláveis experiências de suspensão da atividade encontra-se numa situação de inserção precária qualificada. Encontra-se, no entanto, também bolseiros de doutoramento e pós-doutoramento – com mobilidade ascendente, autonomia elevada ou muito elevada, condições de trabalho muito elevadas e muita capacidade de negociação e que, apesar da existência de suspensão involuntária da atividade, dificilmente abandonariam a carreira ou não o fariam – que se enquadrarão numa relação de flexibilidade qualificante.
Finalmente, quanto aos bolseiros de investigação, encontra-se um grupo com mobilidade lateral ou descendente, autonomia reduzida, mas com um uso médio ou elevado da qualificação, com médias ou reduzidas condições de trabalho e capacidade de negociação e que, sem experiências de suspensão da atividade, numa relação de estabilidade na precariedade qualificada. Já um segundo grupo, com características semelhantes, mas com experiências de suspensão da atividade, situar-se-á numa relação de inserção precária qualificada. No entanto, encontra-se entre os bolseiros de investigação um pequeno grupo que, além das anteriores características, lhes soma um uso reduzido ou muito reduzido da qualificação. Conforme a duração da sua situação, se reduzida enquadrar-se-ão numa relação de flexibilidade precária transitória, ou de flexibilidade precária continuada se a sua situação se prolongar no tempo.

5.2 Conclusões finais: a estruturação dos modelos produtivos e o poder

Propõe-se que se poderá estar a assistir a uma tendência em crescendo das relações precárias de emprego, inclusive para o trabalho qualificado, iniciada com os jovens qualificados, mas que, a prazo, poderá vir a manter-se e alastrar à generalidade do trabalho até agora protegido pela qualificação, inclusive dos trabalhadores há mais tempo no mercado de emprego.
Kovács e Castillo (1998) sugeriram que alguns dos fatores que influenciam o seguimento de vias altas ou baixas de flexibilização serão a cultura ideológica neoliberal das elites empresariais, a cultura empresarial dominante, as características das empresas e a sua história de tendencial garantia de competitividade pela redução de custos, as condições de concertação social e poder de negociação dos trabalhadores, a legislação laboral e o papel do Estado. Analisou-se como a precarização das relações de trabalho e emprego fragilizam o indivíduo, desfiliando-o socialmente e promovendo a sua individualização, e o impacto que estes fatores conjugados têm sobre a ação coletiva, sindical ou associativa. Finalmente, abordou-se a forma como as profissões estruturam o seu poder profissional, de modo a garantir aos seus um posicionamento seguro no mercado de trabalho, negociado com o Estado, e a forma como as tendências de desprofissionalização ou não profissionalização de profissões qualificadas, nomeadamente com o enfraquecimento das suas organizações profissionais, corrói o seu poder profissional, podendo perder ou ver reduzido os seus privilégios face ao Estado e às empresas e ver-se remetidas, na totalidade ou parte dos seus segmentos, para círculos periféricos ou exteriores das empresas.
Propõe-se que, no quadro de dado regime de acumulação, a tendência para a flexibilização precarizante – a nível de apenas uma parte de uma empresa, de toda uma empresa, de um setor de atividade ou à escala nacional – salvaguardado os trabalhadores qualificados ou a todos incluindo, resulte da articulação de todos estes fatores, mas tomando como eixo central a correlação de poderes entre empresários, Estado e trabalhadores. Aqui, inclui-se na noção de poder dos trabalhadores, o conceito de poder profissional, adstrito às profissões efetivamente constituídas e alargando-se ao poder sindical e associativo, quer das profissões, quer das ocupações profissionais em geral, relacionando-se estes com a capacidade de resistência à individualização e vulnerabilização do trabalhador, embora desta tendência deva, também, ser considerado o poder individual de negociação.
Deste modo, em dado momento histórico, para cada empresa e suas divisões, para cada setor de atividade, para cada profissão ou ocupação, qualificada ou não, encontrar-se-á uma multiplicidade de equilíbrios na estruturação de cada modelo produtivo específico, combinando características de modelos similares ou distintos. Tal pode resultar: na manutenção estável ou flexível qualificante de todos os trabalhadores; de somente um núcleo central estável e precarizando uma coroa periférica e uma exterior de trabalhadores desqualificados; precarizando estas coroas, distintas, mas ambas constituídas por trabalhadores qualificados; ou precarizando todo o trabalho em geral. Tal dependerá das relações de força entre capital e trabalho, ou seja, do poder económico da empresa, da cultura empresarial e do poder sobre o Estado, versus o poder do trabalho: da capacidade da resistência dos trabalhadores qualificados, desqualificados e profissionalizados, portanto do seu nível de coesão interna e orientação coletiva, e grau de organização em sindicatos, associações e organizações profissionais.

Concluindo, considera-se, adicionalmente, numa perspetiva do desenvolvimento do sistema capitalista, que, num quadro de globalização neoliberal, de desregulação estatal e de crise económica, de enfraquecimento e estratificação das profissões, de ascensão de novas profissões qualificadas mas não organizadas, de dificuldades do movimento sindical e de individualização e fragilização do indivíduo, a tendência global será a da flexibilização mediante a progressiva precarização de todo o trabalho. Esta é, naturalmente, uma proposta que exige, ainda, desenvolvimento teórico e estudo empírico.

 

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Notas

1 Investigador Júnior no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra – Laboratório Associado, licenciado em Sociologia pela Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Coimbra, Portugal) e mestre em “Relações de Trabalho, Desigualdades Sociais e Sindicalismo” pela mesma instituição. E- mail: alfredopcampos@hotmail.com e alfredo@ces.uc.pt

2A obra referenciada inclui uma tabela com as várias tipologias e características de cada uma.

3O autor poderá ser contactado para esclarecimento quanto à metodologia de construção de cada índice e quais os indicadores que o compõem.

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