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Sociologia

versão impressa ISSN 0872-3419

Sociologia vol.24  Porto dez. 2012

 

A precariedade como modo de vida? Recensão crítica do livro

Jovens em Transições Precárias. Trabalho, Quotidiano e Futuro.

José Soeiro1

Universidade de Coimbra

 

É provável que, quando Nuno de Almeida Alves e a equipa do Observatório das Desigualdades iniciaram a investigação que veio dar origem a este livro, não imaginassem a centralidade que o tema da precariedade juvenil iria assumir no espaço público no ano de 2011. É certo que a problemática das transformações no mundo do trabalho, das transições difíceis dos jovens, dos processos de precarização do emprego, de prolongamento da dependência e de adiamento da emancipação da juventude não só estavam latentes como tinham dado origem, em anos anteriores, a alguns fenómenos de mobilização coletiva – de que são exemplo movimentos como o MayDay, o FERVE, os Precários Inflexíveis, entre outros. Mas seria a “Geração à Rasca” e a expressiva manifestação do 12 de março de 2011 que trariam esse assunto, diretamente, para o centro do debate público, mediático e político no nosso país. De resto, não foi apenas em Portugal que estes problemas – uma condição juvenil marcada pelo desemprego, pela precariedade, pelo desencanto com as instituições políticas e pela frustração em relação a um futuro que não parece trazer nenhuma previsibilidade nem garantia de uma vida melhor – deram origem a grandes mobilizações.
O último relatório da Organização Internacional do Trabalho sobre a situação da juventude refere-se a esta como uma “geração perdida”. Com a generalização de formas precárias de emprego, com taxas de desemprego jovem a rondar os 25% no Norte de África e os 18% na Europa (41,6% em Espanha, cerca de 35% em Portugal), com a disseminação da pobreza assalariada (onde os jovens surgem de forma desproporcionada: 23,5%), com os jovens a constituírem já a maioria dos desempregados de longa duração, a OIT salienta que têm sido eles a pagar o preço mais alto em termos de emprego ao longo da crise que se instalou desde 2008 e que os protestos que este ano tiveram lugar no Norte de África, mas também em Espanha, Inglaterra ou Grécia, encontram aqui a sua raiz fundamental (OIT, 2011: 3-6).
O livro Jovens em Transições Precárias traça um retrato deste fenómeno a partir de entrevistas a 80 indivíduos entre os 18 e os 34 anos que se encontram em postos de trabalho pouco qualificados e de baixa remuneração, refletindo sobre o modo como as suas trajetórias têm impacto não apenas na esfera laboral mas na instalação da precariedade como modo de vida, com quotidianos marcados pela imprevisibilidade, por “um estado de limite quase permanente”, com uma relação problemática com o futuro, tornando-se difícil projetar prospetivamente a vida.
Uma das maiores virtualidades deste livro passa precisamente por trabalhar uma amostra em que os jovens licenciados não são dominantes, ao contrário do peso que têm tido no espaço público e na construção das representações e dos discursos sociais sobre este tema no espaço mediático, talvez pelo protagonismo que aquele segmento tem tido nos movimentos que surgiram ao longo de 2011. Assim, a presente investigação permite desconstruir a ideia da homogeneidade das transições precárias, e fá-lo através de uma tipologia que cruza formação escolar acumulada e profissão desempenhada, dando origem a quatro categorias de jovens trabalhadores: executantes de escolaridade superior, executantes de escolaridade intermédia, executantes de escolaridade elementar e operários. Sem negar que haja alguns elementos de tipicidade juvenil (e eles existem!), o estudo permite perceber que, ao nível das inserções laborais, das estratégias mobilizadas, das trajetórias familiares e de pares, dos rendimentos, dos graus de autonomia (nomeadamente residencial e financeira) e do modo como se projetam os futuros laborais, cada um destes grupos vive a precariedade e a transição para a vida adulta de forma muito diversa.
Ainda que centrado nos testemunhos e nas experiências dos 80 jovens com trabalhos pouco qualificados e com baixa remuneração que foram entrevistados, o livro enquadra essas narrativas nas tendências de recomposição da estrutura ocupacional e nas mudanças ocorridas ao nível da educação e da qualificação no nosso país, em particular no período entre 2000 e 2010. O aumento muito significativo das qualificações da população empregada, de profissionais e técnicos, de postos de trabalho pouco qualificados no setor de serviços e a diminuição do trabalho manual são o pano de fundo destas alterações. O estudo defende que existe em Portugal uma associação particularmente forte “entre qualificação académica e enquadramento ocupacional” (p. 36), dando origem a uma forte hierarquização credencialista. Esta ocorre, contudo, num contexto em que o emprego disponível não absorve as qualificações, fazendo com que uma parte da população mais credenciada só tenha como oportunidade funções menos qualificadas, ocupando postos de trabalhos intermédios, o que funciona como forma de compressão salarial e pressão sobre os que detêm qualificações intermédias, que ocupam postos desqualificados. Esta realidade pode gerar situações diferenciadas: adequação entre formação e ocupação, mas com vínculo precário; inadequação entre a formação e a função desempenhada, mesmo com vínculo adequado à profissão; e adequação entre formação e posto de trabalho, mas com remuneração reduzida, com as consequências que se imagina nas restantes esferas da vida.
Ao nível da precariedade contratual, faz-se uma caracterização da evolução na última década: aumento da contratação a termo, com particular incidência no setor dos serviços; proliferação do trabalho informal e irregular, nomeadamente dos “falsos recibos verdes”; existência de part-time e de pluriatividade, sobretudo entre jovens estudantes que acumulam formação e trabalho. Um aspeto interessante é que as contratações regulares (sem termo, a termo incerto ou a termo certo) são mais frequentes entre os operários e é entre os executantes de escolaridade superior que mais proliferam as situações de informalidade e flexibilidade, nomeadamente o falso trabalho autónomo. Um outro elemento é a confirmação da associação entre o processo de precarização e a emergência do que se vem chamando de “geração low cost” (Chauvel,2008): as recompensas salariais dos jovens precários situam-se abaixo da média praticada para as mesmas funções em situação de contratação regular.
Tratando-se de uma amostra de jovens com inserções desqualificadas, seria expectável que se confirmasse a frequência de percursos de escolaridade curtos, escolhas de cursos com reduzidas oportunidades no mercado de trabalho e trajetórias dependentes do (fraco) nível de capital social. É interessante verificar como, no conjunto dos entrevistados, se chega à conclusão que as redes familiares e de sociabilidade são absolutamente determinantes na obtenção de emprego, em particular no caso dos jovens mais descapitalizados. As tendências de alongamento, complexificação e deslinearização dos percursos de transição entre escola e trabalho são confirmadas por este estudo, sendo que é no setor dos serviços que aqueles são particularmente “longos, sinuosos e diversos” (p. 68).
No que diz respeito à autonomia e aos rendimentos, o elemento que me parece mais expressivo é o da importância da “família-providência”. A rede de suporte familiar, seja relativamente ao apoio económico, ao auxílio com tarefas domésticas e guarda de crianças, seja mesmo a ajuda em géneros, é determinante nos processos de autonomização destes jovens. Trata-se aqui não apenas do adiamento da saída de casa dos pais, que é um dado recorrente – um estudo recente revelava mesmo que cerca de 60% dos jovens adultos entre os 18 e os 34 anos vivem na casa dos seus pais (Eurostat, 2010) – mas ainda, neste caso, de um prolongamento da dependência em relação aos ascendentes. Mesmo nas situações em que já existe autonomia residencial, ela é dependente ou pelo menos apoiada pelos pais. Claro que, também neste domínio, a classe conta: as estratégias de autonomização variam consoante a escolaridade, a situação contratual e a remuneração, podendo este apoio familiar funcionar nalguns casos, como no das classes mais capitalizadas, como forma de proteção num período de espera por ofertas de emprego mais qualificadas ou mais satisfatórias.
É porventura em relação ao futuro que se verificam as maiores disparidades. Ele pode ser para alguns jovens, como assinala esta obra, “um horizonte fechado a partir do qual não conseguem perspectivar um caminho ou possibilidades alternativas” (p. 110) ou pode ser, para outros, “um campo mais ou menos viável e realizável de oportunidades” (ibidem). A opção dos autores é criar uma tipologia de “projeções cumulativas” – que passam pela mobilização estrategicamente orientada dos recursos que se possuem ou pela aquisição de novos recursos – e de “projeções não cumulativas” – independentes de qualquer mobilização de recursos. A maioria dos entrevistados formulam projeções deste último tipo, sejam elas contingentes (“não posso ver o dia de amanhã, porque não sei”), orientadas para a imobilidade (prolongamento mais ou menos linear da situação em que se está) ou para a descontinuidade (nomeadamente através de projetos de emigração). Este capítulo, que é o último do livro, permite perceber de que forma o tipo de reflexividade destes jovens é marcado pelo risco de perder o emprego, pelos imprevistos socioeconómicos, pela incerteza, pelo desgaste do quotidiano. Ou seja, como se situam nos antípodas das teses mais entusiastas que fizeram a apologia da improvisação reflexiva do futuro e até do suposto potencial libertador do trabalho flexível e do “modelo biográfico” no mundo laboral (estou a lembrar-me, por exemplo, de Giddens e mesmo de Beck).
Em Portugal, têm-se realizado, nos últimos anos, vários trabalhos importantes sobre a questão da precariedade laboral, com enfoques diferentes. O campo da sociologia portuguesa tem produzido dados relevantes e reflexões oportunas sobre este fenómeno. O livro Jovens em Transições Precárias é um momento significativo deste percurso. Para quem, como eu, tem tentado refletir sobre o cruzamento entre as transformações no mundo do trabalho, o novo regime do capitalismo marcado pela precariedade, a condição juvenil no nosso país e as dinâmicas de ação coletiva (movimentos e sindicatos), este livro aguça ainda mais a vontade de uma investigação que tente desbravar este caminho. Com efeito, se a precariedade induz dificuldades crescentes de identificação e mobilização a partir do coletivo de trabalho, se quebra velhas solidariedades operárias, se se combina com a construção de habitus realistas e conformistas em relação ao futuro, a verdade é que, num contexto de agravamento do fosso entre a crescente escolarização da juventude e a frustração das expectativas de mobilidade que essa maior qualificação poderia gerar, a precarização, a dificuldade de autonomização, o alongamento e a complexificação das transições para a vida adulta geram igualmente sentimentos de frustração e ressentimento que podem dar origem a fenómenos de ação coletiva. O ano de 2011 demonstrou que a precariedade é não apenas uma condição laboral e social mas também uma categoria de mobilização política. Assim sendo, como podem as ciências sociais contribuir para perceber os processos que produzem essa mobilização? Como caracterizar as modalidades de ação coletiva que têm sido experimentadas? A partir de que identidades? Quais as diferenciações e clivagens a que obedecem? Que narrativas e formas de classificação da realidade se
confrontam na descrição desta realidade? Como reagem a ela as instituições? Eis algumas outras questões que a sociologia pode e deve tomar como objeto do seu ofício.

 

Referências bibliográficas

ALVES, Nuno de Almeida; CANTANTE, Frederico; BAPTISTA, Inês; CARMO, Renato Miguel do (2011), Jovens em Transições Precárias. Trabalho, Quotidiano e Futuro, Lisboa, Mundos Sociais.         [ Links ]

CHAUVEL, Louis (2008), “L’horizon obscurci des jeunes générations”, in Stéphane Beaud, Joseph Confavreux e Jade Lindgaard (dir.), La France Invisible, Paris, La Découverte.         [ Links ]

EUROSTAT (2010), “51 million young EU adults lived with their parent(s)”, in Statistics in focus 50/2010. (Consult. a 14.01.2012). Disponível em: www.epp.eurostat.ec.europa.eu         [ Links ]

OIT (2011), “Global Employement Trends for Youth update”. (Consult. a 29.01.2012).Disponível em: www.ilo.org         [ Links ]

 

Notas

1 Licenciado em Sociologia pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto (Porto, Portugal). Doutorando em Relações de Trabalho, Desigualdades Sociais e Sindicalismo pela Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra/Centro de Estudos Sociais (Coimbra, Portugal). E-mail: ziro_s@yahoo.com

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