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Sociologia

versão impressa ISSN 0872-3419

Sociologia vol.24  Porto dez. 2012

 

Das categorias de pensamento às categorias de conhecimento1

Luísa Veloso2

Instituto Universitário de Lisboa e Universidade do Porto

 

Com este texto propõe-se desenvolver uma modesta reflexão acerca dos processos sociais de construção de categorias de pensamento sobre a realidade, construção que é entendida em sentido lato, abarcando desde as atividades de investigação, as de intervenção social (política, intelectual, etc.) e as de expressão artística. Estas convertem-se em categorias de conhecimento, mais ou menos elaboradas, mais ou menos destinadas a um “uso” ordinário ou extraordinário e integram quadros de conhecimento estruturados.

 

1. A construção de categorias como um processo social

A construção de categorias de conhecimento, isto é, dos instrumentos que nos permitem conhecer, constitui um processo social multidimensional e historicamente contextualizado. Michel de Certeau faz referência ao que designa por “A escrita da história” (1975), como um marco da história moderna ocidental que teve na sua base a diferenciação entre o discurso e o corpo social. Com a escrita constroem-se visões e perspetivas de análise histórica.
Com este ponto de partida, proponho uma reflexão em torno da construção de categorias de conhecimento atendendo aos contextos específicos em que são produzidas e à “biografia” de quem as produz. E como não há produção de conhecimento neutra, isto é, destituída de pressupostos normativo-ideológicos, incluo nesta reflexão as respetivas condições sociais de produção (Pinto e Almeida, 1975).
Para alimentar esta reflexão, socorro-me de dois exemplos: o trabalho de investigação sociológica desenvolvido por Pierre Bourdieu na Argélia e a importância deste trabalho para a sua carreira como investigador e professor universitário; e um recente projeto de investigação desenvolvido no México sobre o património nacional. Se o primeiro exemplo pode ser lido como um conhecimento produzido “de fora”, mas com impactos importantes num conhecimento “de dentro”, sobre a sociedade francesa, o segundo é um conhecimento “de dentro” com intenções de ser lido “dentro” e mostrado “para fora”.
Trata-se de uma reflexão restrita com a qual espero contribuir para uma discussão crítica acerca da forma como conhecemos a realidade e as consequências que os respetivos procedimentos e resultados têm nas nossas práticas.

2. As categorias

A construção de categorias é um domínio de ação transversal às mais variadas áreas de conhecimento e disciplinas e assume naturezas diversas. Para a sua abordagem destaco aqui duas notas de reflexão.
A primeira nota é relativa às categorias que conduziram à diferenciação entre o “eu” e o “outro” e que contribuíram para a criação deste “outro” (De Certeau, 1975). Refiro-me a categorias como as de etnia, selvagem, passado, povo, etc., elaboradas com base no argumento de que era necessário compreender o “outro”. Ainda que todo um trabalho epistemológico tenha sido e continue a ser realizado, prevalece como pertinente a reflexão de Michel de Certeau quando refere, em 1975, que o “saber dizer” garante um trabalho interpretativo de uma ciência e gera-se uma historiografia Ocidental que tem a especificidade de separar um passado do presente. A prática da escrita constitui um marco de diferenciação e uma capacidade de domínio do corpo social, passando a deter o valor de “modelo científico” (De Certeau, 1975: 19). Fazer história é, assim, uma prática (De Certeau, 1975: 95), social, acrescento eu, que tem um discurso como resultado. O que é aqui referido no domínio da história aplica-se, com as devidas especificidades, às outras ciências sociais. Na antropologia, por exemplo, Pierre Bonte e Michel Izard, propõem, com o “Dictionnaire de l’ Ethnologie et de l’Anthropologie” de 1991, condensar uma “multiplicidade de perspetivas e de itinerários de leitura” (1991:vi). A sua consulta levou-me, por exemplo, ao termo etnia (Bonte e Izzard, 1991: 242-247), em cuja problematização se refere que é um termo que foi objeto de um amplo debate e que dominou durante muito tempo a antropologia numa lógica substantiva. Nesta lógica, cada etnia era considerada uma entidade dotada de uma cultura, de uma língua e de uma psicologia específicas. Pode ainda ler-se, na mesma fonte, que o termo etnia começa a ser objeto de críticas e, neste sentido, a problematizar-se o processo de “etnificação”, um processo contemporâneo dos processos históricos de colonização. Uma etnia corresponde a um determinado nível de organização social, não se justificando, segundo alguns autores, o seu privilégio epistemológico e menos ainda a sua reificação (Bont e Izard, dir., 1991: 243), pois transforma-se, frequentemente, numa categoria ideológica. Este exemplo conduz-me a salientar como a construção de conceitos, a sua nomeação e o respetivo registo constituem práticas integrantes dos processos de conhecimento que, como veremos mais adiante, fazem história.
A segunda nota vai para as categorias que resultam, elas próprias, de processos históricos que ultrapassam as fronteiras nacionais e que atravessam várias sociedades. Exige equacionar uma lógica de “pensamento mestiço”, como propõe Serge Gruzinski (1999), para uma análise da coexistência entre a cultura europeia colonial e a cultura indígena, como é o caso do México. Também Jean Loup Amselle, antropólogo, desconstrói o conceito de grupo étnico, a partir da problematização do conceito de mestiçagem e propondo, alternativamente, a ideia da existência de “conexões” (2010).
Estas duas notas orientam-se para a reflexão mais ampla sobre os processos de colonização, os quais, tal como outros processos sociais, geraram, com configurações distintas, transformações culturais, económicas, sociais e políticas que marcam a história. Assim, encontra-se a diferentes escalas e ao longo da história da humanidade o que hoje se tornou omnipresente (Gruzinski, 1999: 36).

3. As categorias de investigação

O vasto conjunto de investigações que Pierre Bourdieu3 desenvolveu ao longo da sua vida teve início nos seus trabalhos inaugurais sobre algumas das regiões da Argélia, regiões onde se localizava de forma marcada a guerrilha nacionalista.
Trata-se de um trabalho rigoroso e metódico de análise sobre a Argélia do qual resultou a primeira formulação de um quadro conceptual de análise que foi posteriormente utilizado e afinado pelo sociólogo na análise da sociedade francesa e adotado por muitos investigadores em todo o mundo.
Pierre Bourdieu, filho de camponeses, foi destacado para a Argélia para cumprir o serviço militar em 1955 e foi professor de filosofia na Universidade de Argel até 1960. Desenvolveu um conjunto de trabalhos acerca das dinâmicas económicas, culturais e de emprego de algumas das regiões da Argélia, destacando-se Cabila, alguns dos quais realizou com o investigador de origem franco-argelina Abdelmalek Sayad, que foi aluno de Pierre Bourdieu na Universidade de Argel.
Para esta reflexão destaco dois domínios de investigação do seu trabalho.
O primeiro é a sua análise sobre a “sociedade Cabila” (Bourdieu, 1972), na qual realiza um trabalho etnográfico sobre, nomeadamente, os processos sociais da honra, da organização da casa e das relações de parentesco. O autor frisa o facto de a estas três dinâmicas sociais estarem subjacentes regras de organização, de estruturação da sociedade e da economia e regras de interesses. Refere, por exemplo, que as estruturas de parentesco preenchem uma função política, à semelhança da religião ou da ideologia, e de reprodução social. Sugere mesmo que se tenha em linha de conta a “utilidade dos parentes” (Bourdieu, 1972). A divisão sexual do trabalho, o casamento e os processos de negociação dos dotes, por exemplo, são alguns dos traços sociais que se enquadram na estrutura económica da sociedade, constituindo as relações de prestígio e honra o suporte simbólico desta estrutura. O capital simbólico é, assim, convertido em capital económico.
Pierre Bourdieu virá a desenvolver, mais tarde, o seu trabalho sobre o poder e o capital simbólicos, elementos evidenciados na sua análise da sociedade francesa numa das suas obras de referência – “La distinction…” – a propósito dos processos sociais de distinção expressos nas atividades culturais, destacando a importância da educação familiar e da educação escolar e discutindo a produção social do gosto (Bourdieu, 1979). Por seu turno, o seu último livro, publicado em 2002, é uma reflexão também enformada por esta análise inaugural, focando a crise da sociedade camponesa (onde passou a sua juventude), por força, nomeadamente, das mudanças ocorridas nas estratégias matrimoniais.
A par do seu trabalho sobre a “sociedade Cabila”, Pierre Bourdieu realiza um trabalho extensivo de análise da sociedade argelina, a segunda abordagem que gostaria de destacar. Desenvolve uma análise de algumas comunidades agrícolas (Bourdieu, 1958; 1972; Bourdieu e Sayad, 1963) e do processo de desenraizamento e fragmentação da sociedade agrária e respetiva adaptação forçada ao capitalismo por via do processo de colonização e da guerra (Bourdieu e Sayad, 1964; Bourdieu, Darbel, Rivet e Selbel, 1963). Com Abdelmalek Sayad, critica a lógica racional de mercado imposta à sociedade agrícola argelina e explicita os fatores de ordem cultural, económica e social que explicam este processo. Um dos aspetos que os autores focam é o facto de a reinstalação massiva destas populações por parte do exército francês em zonas adjacentes às instalações do exército, ter tido como objetivo controlar o acesso da população ao Exército de Libertação Nacional. Trata-se de cerca de 3 milhões de pessoas, representando 50% da população rural do país. Como referem os autores, foi o processo de deslocação mais brutal conhecido na história e que constituiu um processo sem retorno, pois mudou a configuração da sociedade.
O processo de colonização teve como uma das suas vertentes o desenvolvimento da agricultura por parte dos colonos europeus a quem foram afetas as melhores terras (Bourdieu e Sayad, 2004). A par deste fator, a deslocação das populações consolidou uma total desagregação da economia agrária na Argélia, gerou um êxodo rural em massa e conduziu à pauperização e proletarização da população agrícola (com a desapropriação dos solos e a rutura do princípio da indivisão das terras), incluindo o abandono de tradições que enformavam a estrutura económica e que eram, portanto, parte integrante dela. Pierre Bourdieu e Abdelmalek Sayad referem que se manteve um “tradicionalismo do desespero, inseparável de uma economia de subsistência e uma sociedade desintegrada e apropriada por suproletariados agarrados a um passado que sabem que está morto e enterrado” (Bourdieu e Sayad, 2004: 455). Trata-se de um exílio forçado e determinado pela pobreza e um tradicionalismo que é transposto para o centro de uma agricultura com um elevado grau de mecanização e racionalização. Para além da violência física, foi exercida sobre os camponeses uma violência simbólica que conduziu à desestruturação das suas bases culturais tradicionais.
A desagregação da sociedade argelina não resulta, assim, de um choque de culturas, mas de uma ação francesa planeada que teve na sua base a destruição das unidades tradicionais e a imposição de “normas administrativas e jurídicas idênticas às de França” (Bourdieu, 1958: 106).
Veja-se, por exemplo, em meados do século XIX, um excerto de um membro do exército francês:

“O essencial é, sem dúvida, agrupar este povo, que está em todo o lado e em lado nenhum. O essencial é pô-lo ao nosso alcance. Quando o conseguirmos, então seremos capazes de fazer muitas coisas que nos são, hoje, impossíveis e que talvez nos permitam apoderarmo-nos do seu espírito depois de nos termos apoderado do seu corpo.” Capitão Charles Richard, Étude sur l’insurrection do Dahra (1845-1846). In Bourdieu e Sayad, 2004:448-449.

A análise de um conjunto de dinâmicas sociais, económicas e culturais em curso num mesmo país conduziram Pierre Bourdieu a problematizar a complexidade das economias e a aparente contradição face à coexistência “do ethos económico importado pela colonização e os padrões herdados da tradição ancestral” (Bourdieu e Sayad, 2004:464).
Na sua obra “Esquisse…”, de 1972, Pierre Bourdieu explicita, a partir dos trabalhos de investigação realizados, a sua matriz teórica: uma teoria da prática como condição para uma ciência das práticas. E a partir do seu trabalho sobre a Argélia, reflete sobre temas vários como os mecanismos de reprodução social, o capital simbólico, a dimensão simbólica da dominação económica ou as estruturas sociais da economia (Bourdieu, Christin, Bonhedja e Givry, 1990)4 . A sua crítica à ciência económica neoclássica, por exemplo, vai no sentido da afirmação de que esta, ao favorecer uma análise centrada nos indivíduos e não nas sociedades e nos seus processos históricos, gera um conhecimento considerado científico que está, na realidade, profundamente arreigado a conceções ideológicas de um determinado modelo de sociedade que se pretende impor. À imprecisão de uma categoria chamada “mercado”, propõe analisar as “estruturas sociais da economia” (2000) e o “campo económico” (1997).
Destaco dois pontos neste vasto trabalho de Pierre Bourdieu. O primeiro reside no facto de o seu trabalho analítico sobre a sociedade argelina ter constituído uma base central da construção de categorias de conhecimento (devedoras, claro, dos trabalhos de autores como Jean-Paul Sartre, Marcel Mauss, Claude Lévy-Strauss, Max Weber, Karl Marx, entre outros), posteriormente aplicadas na análise da sociedade francesa. Assim, as categorias de conhecimento, tendo que ser devidamente referenciadas em termos das suas condições sociais e históricas de produção, potenciam uma análise de sociedades espacial e temporalmente diferenciadas. O segundo ponto é relativo ao facto de todo o seu trabalho sociológico constituir um corpus de conhecimentos que condensa instrumentos analíticos de suporte à ação. Demonstrar o papel do sistema de ensino na reprodução das desigualdades sociais, trabalho desenvolvido com Jean-Claude Passeron (Bourdieu e Passeron, 1970), é um dos exemplos possíveis e também devedor do trabalho que realizou sobre a estrutura social das regiões argelinas que estudou. Termino, ainda, este ponto para referir os temas que são desenvolvidos na revista que coordenou – “Actes de la Recherche en Sciences Sociales” – os quais, como salienta um dos investigadores que acompanhou de perto o seu trabalho, Loïq Wacquant (2002), refletem criticamente e de forma cientificamente fundamentada, alguns acontecimentos que afetam a Humanidade. Por exemplo, em 2010, o número 185 é dedicado às representações da colonização.
No presente ano de 2012 celebram-se os 50 anos da independência da Argélia e passam 10 anos sobre a morte de Pierre Bourdieu: percursos cruzados que marcam a história.

4. As categorias de preservação

O Consejo Nacional para la Cultura y las Artes mexicano encomendou à academia, no âmbito das comemorações do segundo centenário do início da independência (concretizada em 1821), em 2010, um trabalho de análise e documentação do património histórico e cultural do México – “El património histórico y cultural de México (1810-2010)” – que, nas palavras da Presidente do referido Conselho, Consuelo Sáizar, “dê conta da riqueza geográfica, cultural, artística e social que constitui o património do México, bem como o seu respetivo processo de formação” (Gonzalbo, coord., 2011: 9). Mais adiante refere, ainda, que os livros inventariarão os bens culturais e naturais do México e explicarão as razões pelas quais são considerados “símbolos do nosso ser cultural” (Gonzalbo, coord., 2011: 10).
Trata-se de uma obra que está a ser editada em vários volumes e na qual se debruça sobre o património do país, em particular após a sua independência. Esta obra permite refletir sobre os objetivos explícitos de criação de um registo que ateste o património nacional e que estruture a categoria de património em si.
Detenho-me sobre o segundo volume, editado em 2011 – “La idea de nuestro património histórico y cultural”.
O título da obra é, já de si, indicativo de que se pretende discutir a categoria património e a existência de um património mexicano, alimentando uma ideia de união, mas, a par, enfatizando a riqueza e diversidade patrimoniais. Enrique Florescano, coordenador do projeto, salienta o objetivo de carácter científico de realizar um estudo que explique como é que as diversas disciplinas contribuíram para “criar a dimensão geográfica, histórica, antropológica, literária, musical, artística e cultural do património nacional” (Gonzalbo, coord., 2011: 11). Assim, ao objetivo político acima enunciado, vem juntar-se um objetivo científico, enfatizando o papel das disciplinas e do conhecimento produzido na estruturação de um património e na criação, nos últimos dois séculos, de uma ideia de diversidade cultural: categorias de conhecimento traduzidas em categorias de preservação.
Destaco nesta obra dois aspetos: a discussão do que se entende por este património e o tipo de “patrimónios” que são apresentados.
Comecemos pelo primeiro. Pablo Escalante Gonzalbo (Gonzalo, 2011) enuncia criticamente um trabalho sobre a ideia de património, afirmando que é conferida uma ênfase excessiva ao património pré-hispânico ou pré-columbiano. Para tal, reporta-se a
um debate, não exclusivo da realidade mexicana, acerca do que deve ser ou não preservado. A referência que desenvolve é sobre o Templo Mayor Tenochtitlan na Cidade do México, relativamente ao qual foi tomada a decisão de favorecer a escavação, valorizando o passado pré-hispânico, o que implicou alterar a traça urbana, interromper a circulação pedonal e obstruir as linhas visuais de um conjunto de ruas. Gonzalbo refere, criticamente, que se alimenta, com estas opções, um discurso nacionalista que faz depender deste último a identidade mexicana. A par, sublinha como os mexicanos não reconhecem valor religioso às ruínas pré-hispânicas. Questiona, ainda, se a atitude de alguma reverência perante o património pré-hispânico favorece a sua preservação. E considera que o endeusamento do património pré-hispânico retarda o aparecimento de atitudes de cidadania face a ele e dificulta a sua análise racional com recurso a categorias históricas e a uma reflexão crítica relativamente ao que deve ser considerado património e a forma como deve ser abordado. Importa, assim, segundo o autor, valorizar o passado pré-hispânico, mas também o que se constituiu posteriormente.
O segundo aspeto é relativo aos “patrimónios”. O livro colige um conjunto vasto de reflexões sobre casos e facetas distintas do património, umas mais críticas, outras mais arreigadas aos valores nacionais. São exemplos os trabalhos sobre as igrejas, as catedrais e os conventos ou sobre o cinema ou ainda sobre a lotaria nacional e a popular.
Para ilustrar a discussão, proponho o caso do petróleo, em que se discute a ideia de este poder ser considerado património nacional do México. O petróleo tem sido promovido, não como uma mercadoria, mas como um bem que define a identidade nacional mexicana, condensada no símbolo da empresa Pemex, Pretróleos Mexicanos. O petróleo e a Pemex constituem, assim, bens distintivamente “nacionais” (Graillet, 2011: 91 in Gonzalbo, 2011). O que é que está na base deste processo histórico? O caso do petróleo associa-se ao peso simbólico que adquiriu a empresa Pemex com a transformação – na década de 30 do século XX, por via de um processo de expropriação - do petróleo num bem nacional. Trata-se de um longo e complexo processo que tem subjacente a valorização do subsolo mexicano como um meio de afirmação da soberania mexicana que se impõe preservar.
O México constitui um caso interessante, entre outros, de afirmação de uma identidade nacional assente num determinado passado, estrategicamente recortado em função das condições sociais vigentes, diferenciando o passado do presente (De Certeau, 1975). Mas é também um caso interessante de “mestiçagem” (Gruzinski, 1999) a vários níveis, não apenas pela coexistência de “patrimónios”, mas também pela sua interpenetração. O enaltecimento que se pretende dar à cultura pré-colombiana, com alusão, por exemplo, às pirâmides de Teoithuacan, coexiste com as pinturas efetuadas por indígenas em conventos, mostrando que, durante o século XVI e nos séculos seguintes, o mundo ocidental e o mundo ameríndio coexistem e interagem. A ocidentalização é, assim, indissociável da mestiçagem.

5. Os compromissos, cientificamente enformados, de construção de categorias de conhecimento

A reflexão sobre as condições sociais de produção de categorias de investigação e de preservação não pode ser desligada dos seus processos sociais.
No caso do trabalho de Pierre Bourdieu, os objetivos de investigação são acompanhados pela crítica ao que apelida de “erro objetivista”. Simultaneamente, assume um papel ativo na crítica à guerra na Argélia e denuncia, com o seu trabalho, a desestruturação da sociedade agrícola, manifestamente marcada pelo processo de colonização e pela guerra. Intelectual francês, crítico do peso da intervenção colonial, vem afirmar a necessidade de uma intervenção num país que não pode mais aspirar a restituir a sociedade tradicional. Sendo um sociólogo que eu apelidaria de (des)comprometido, ancora o seu compromisso num conhecimento rigoroso e científico da realidade. Trata-se de um “ofício militante” (Bourdieu, 1980), nas palavras do autor. A versão americana da sua primeira obra, “Sociologie d’Algérie”, traduzida por “The Algerians” (1959) tem na capa a bandeira do país independente antes da declaração da independência. Refiro ainda como em “Esquisse…”, Bourdieu propõe uma reflexão que o acompanhará ao longo de toda a sua vida sobre o seu papel como sociólogo ou como criador de categorias de conhecimento.
No caso das abordagens do património mexicano, prevalece uma discussão em torno do que se entende por património, as práticas sociais de patrimonialização e o acento colocado atualmente no património pré-hispânico para justificar a unidade de um Estado-nação federado. Por sua vez, os resultados destes trabalhos, legitimados, porque realizados por um conjunto de investigadores da academia, poderão ser objeto de usos e de manipulações políticas aos quais importa estar atento. A ação política é, aqui, explicitamente direcionada para a discussão e preservação do património, promovendo, direta e indiretamente, um sentimento de identidade nacional. A obra a que fiz referência, coordenada por Pablo Escalante Gonzalbo, condensa um conjunto de textos críticos deste tipo de abordagem, potenciando uma reflexão sobre os processos sociais de construção de categorias de conhecimento.

Conclusão

Para terminar e para deixar em aberto este debate, proponho avançar um passo mais na reflexão sobre formas de pensar, de conhecer e de agir apresentando o ponto de vista do artista britânico Steve Macqueen e o seu trabalho “Caribs’ Leap/ Western Deep”, de 2002 (Basualdo, 2002).
É um trabalho artístico com registo fílmico que cruza, precisamente, tempos históricos, relações sociais, culturas e espaços, propondo, por um lado, um trabalho sobre a exploração mineira de ouro na África do Sul cuja execução cabe, quase exclusivamente, a mineiros negros (sendo a cor da pele confundida intencionalmente com a escuridão que caracteriza as minas) e, por outro, a exibição de uma paisagem das Caraíbas, luminosa e contrastante com a escuridão das minas, que é, numa imagem paralela, completada com corpos que caem. Estes corpos representam um protesto de um conjunto de habitantes da ilha que, quando foram colonizados pelos franceses em 1652, optaram por se suicidar a serem capturados.

 

Referências bibliográficas

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Notas

1 O presente texto constitui uma versão sintetizada de uma comunicação apresentada no “Observatório de África e da América Latina”, que teve lugar no dia 15 de Novembro de 2011 na Fundação Calouste Gulbenkian.

2 Centro de Investigação e Estudos de Sociologia do Instituto Universitário de Lisboa (CIES-IUL) (Lisboa, Portugal). Instituto de Sociologia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto (ISFLUP) (Porto, Portugal). E-mail: luisa.veloso@iscte.pt

3 Diversos autores refletiram sobre a obra de Bourdieu neste domínio. V., por exemplo, os textos de Calhoun (2006) ou de Garcia-Parpet (2006).

4 Um ensaio de aplicação do conceito de campo económico ao caso português pode encontrar-se em Veloso (2010).

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