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Sociologia

Print version ISSN 0872-3419

Sociologia vol.24  Porto Dec. 2012

 

Sementes e arupembas: a relação entre os saberes no contexto dos movimentos sociais

Seeds and “arupembas”: the relationship between different knowledges in the context of social movements

Graines et “arupembas”: la relation entre les connaissances dans le contexte des mouvements sociaux

Semillas y “arupembas”: la relación entre los conocimientos en el contexto de los movimientos sociales

Carla Águas1; Júlia Benzaquen2; Marcos Valença3

Universidade de Coimbra


 

RESUMO

  

Partindo dos conceitos de Sociologia das Ausências e das Emergências (Santos, 2006), o presente artigo analisa as relações entre as epistemologias dominantes e subalternizadas, a partir da voz de quatro sujeitos oriundos dos movimentos sociais brasileiros: dois membros de comunidades negras descendentes de escravos, os chamados quilombos, e dois participantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Os quatro depoimentos servem como base para reflexões a respeito das relações entre diferentes tipos de saberes e da apropriação do ensino formal como possíveis caminhos para o processo de emancipação social.

Palavras-chave: Movimentos sociais; Sociologia das Ausências; Sociologia das Emergências


ABSTRACT

Based on the concepts of Sociology of Absences and Emergencies (Santos, 2006), this article analyzes the relationships between dominant and subordinated epistemologies. The text is constructed from the voices of four subjects from brazilian social movements: two members of black communities descended from slaves, called “quilombos”, and two participants of the Movement of Landless Workers (MST). The four testimonials serve as the basis for reflections about the relationship between different types of knowledge, and the appropriation of formal education, as possible paths for the process of social emancipation.

Keywords: Social movements; Sociology of Absences; Sociology of Emergencies


RÉSUMÉ

Basé sur les concepts de la Sociologie des Absences et des Émergences (Santos, 2006), cet article analyse les relations entre les épistémologies dominantes et subalternisées chez quatre sujets originaires des mouvements sociaux brésiliens: deux membres des communautés noires descendant d'esclaves, les “quilombos”, et deux participants du Mouvement des travailleurs Sans Terre (MST). Les quatre récits servent à la réflexion sur les relations entre les différents types de savoirs ainsi que sur l'appropriation de l'éducation formelle comme des chemins possibles menant à l'émancipation sociale.

Mots-clés: Mouvements sociaux; Sociologie des Absences; Sociologie des Émergences


RESUMEN

Con base en los conceptos de Sociología de las Ausencias y de las Emergencias (Santos, 2006), este artículo analiza las relaciones entre las epistemologías dominantes y subordinadas, a partir de cuatro individuos de los movimientos sociales brasileños: dos miembros de las comunidades negras descendientes de esclavos, los “quilombos”, y dos participantes del “Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra” (MST). Estas serán las bases para las reflexiones sobre la relación entre los diferentes tipos de conocimientos y la apropiación de la educación formal como un camino posible para el proceso de emancipación social.

Palabras-clave: Movimientos sociales; Sociología de las Ausencias; Sociología de las Emergencias


 

Introdução

O presente artigo tem como objetivo visibilizar os movimentos sociais e seus sujeitos, que, permanentemente, buscam a emancipação social. Para isso, a parte teórica reflete sobre a Sociologia das Ausências e das Emergências, que permite a visibilização daquilo que foi excluído ou colocado como margem pelo pensamento corrente. O empírico do artigo analisa discursos de sujeitos de comunidades quilombolas brasileiras e do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) do Brasil. Quilombos são comunidades negras de descendentes de escravos, que proliferaram durante a vigência do escravismo e que até hoje continuam a existir. São geralmente caracterizadas por trajetórias, memórias e culturas diferenciadas, bem como pela resistência contra as contínuas pressões do entorno. Em 1988, com a promulgação da Constituição Federal brasileira, o Estado reconheceu o direito de tais comunidades sobre as terras que ocupam secularmente, abrindo uma nova página no processo de organização destas populações em torno de propósitos comuns. Hoje, mais de duas décadas após a vigência da Carta Magna, o movimento social quilombola ainda se embate com dificuldades para que a lei saia efetivamente do papel. O MST é o movimento social brasileiro que mais vem se destacando a nível nacional e internacional desde a década de 80. O MST entende que seu papel como movimento social é organizar os pobres do campo, conscientizando-os de seus direitos e mobilizando-os para que lutem por mudanças. Nos 23 estados em que o Movimento atua, a luta é não só pela Reforma Agrária, mas pela construção de um projeto popular para o Brasil, baseado na justiça social e na dignidade humana (Morissawa, 2001). A escola – seja como espaço da educação infantil à superior – é uma instituição com um papel central na formação dos indivíduos que por ela passam. No entanto, o termo educação abrange um universo que extrapola o escolar. Os discursos dos sujeitos quilombolas e dos Sem Terra que serão analisados demonstram saberes singulares de elementos pertencentes aos movimentos sociais e uma preocupação com o acesso e a utilização de outros tipos de saberes. Consequentemente, são discursos que refletem direta ou indiretamente o tema da educação. A estratégia metodológica adotada para analisar essas realidades foi a pesquisa qualitativa, através de observação direta e entrevistas com os sujeitos aqui apresentados. A pesquisa se concretiza através de estudos comparados entre diferentes realidades, sempre a partir da conceção pós-colonial, que se caracteriza pela valorização da diversidade de narrativas, o que compreendemos que vai além da narrativa totalizadora eurocêntrica. A partir do contexto local dos sujeitos, fomos à busca da compreensão do fenômeno sociológico. Dessa maneira, demarcamos que não acreditamos na suposta superioridade e universalidade do discurso científico, mas sim confiamos na ciência enquanto forma de conhecimento dialógico e consciente de sua incompletude.

1. Para uma Sociologia das Ausências e das Emergências dos Movimentos Sociais

Há uma pluralidade de formas de resistência e de conceções de emancipação social. A razão indolente, um conceito de Santos (2002) inspirado em Leibniz, descarta a multiplicidade de experiências disponíveis e possíveis. A razão indolente é o saber que é indiferente a tudo aquilo que não lhe convém, ou seja, que invisibiliza o que ameaça a manutenção do status quo. A razão cosmopolita, outro conceito de Santos (2002), é o contrário da razão indolente, é o que proporciona “um conhecimento prudente para uma vida decente”. A arrogância da razão indolente invisibiliza a riqueza de experiências concretas de movimentos sociais e sujeitos que buscam e constroem a emancipação social. Neste sentido, Boaventura de Sousa Santos propõem a reinvenção da emancipação social. Esta reinvenção não se dá através de teoria, metodologia, local e tempo únicos, mas a partir do que Santos (2006) chamou de Sociologia das Ausências e das Emergências. O objetivo da Sociologia das Ausências e das Emergências é expandir o presente e contrair o futuro. A Sociologia das Ausências faz uma arqueologia do presente, transformando ausências em presenças, na medida em que busca estar atenta à diversidade do mundo, tantas vezes invisibilizada. A Sociologia das Emergências contrai o futuro ao valorizar práticas que, em uma Sociologia guiada por uma razão indolente, seriam imagináveis apenas num futuro longínquo, mas que no entanto são vividas na atualidade, são possibilidades concretas. A Sociologia das Emergências substitui o vazio do futuro por um futuro de possibilidades plurais e concretas, utópicas e realistas, que se constroem no presente através das atividades de cuidado. A Sociologia das Ausências evidencia as alternativas disponíveis, já a Sociologia das Emergências, as alternativas possíveis (Santos, 2006). A arrogância da razão indolente gerou, segundo Santos (2006) cinco formas de produzir não-existências, cinco monoculturas: a do saber, do tempo, das classificações sociais, das escalas e das produtividades. A primeira define a ciência moderna e a alta cultura como critérios únicos de verdade e de qualidade estética. A monocultura do saber considera os outros saberes carentes de legitimidade por serem locais, já a ciência seria universal, portanto legítima. O local é visto como limitado, monolítico, cristalizado, circunscrito, assim é um não-saber, por não “ser útil” em outros contextos. O que a ciência tradicional hegemônica oculta é que a sua pretensa universalidade é local. A ciência possui um local de enunciação (parte na sua maioria de homens, ricos, brancos, europeus e cristãos). Esse local de enunciação determina a audição e ouve-se só aquilo que é conveniente, tornando as outras vozes-saberes irracionais. A monocultura do tempo linear declara o Outro atrasado. É o que Santos (2006) chama da não-contemporaneidade do contemporâneo. O antropólogo Johannes Fabian (2002) chama isso de negação da contemporaneidade (coevalness). Por exemplo, a ideia de que a população do Sul global está atrasada oculta a sua simultaneidade em relação à população do Norte. Leopoldo Zea (1986) conceitua a negação da simultaneidade epistêmica, como nordomonía, ou seja, a norma que vem do Norte, que caracteriza o Norte como o avançado, que defende a superioridade da forma de vida ocidental. Falar em um mundo dividido em Norte e Sul não se limita a uma questão geográfica. A história do capitalismo é que permite pensar nesses termos, pois pela história foi o Norte global (um Norte autodefinido e auto instituído pelas cartografias construídas nesse Norte) que colonizou o Sul. Dessa maneira, o Sul é uma metáfora para o sofrimento sistêmico causado pelo capitalismo. Mesmo na época em que vivemos, na qual as relações de força são múltiplas e multidirecionais, faz sentido falar em realidades do Norte e do Sul pela permanência de relações de domínio que vão além do domínio econômico-político e jurídico-administrativo do Norte sob o Sul, e que englobam uma dimensão epistêmica, cultural e racial desse domínio. Além disso, as noções de Sul e Norte devem ser entendidas como metáforas das relações de dominação instauradas e cristalizadas a partir da expansão europeia, o que pressupõe a existência de um Norte metafórico no espaço geográfico do Sul e vice-versa. A terceira forma de produção de não-existências é a lógica que naturaliza as hierarquias sociais. A monocultura das classificações sociais aproxima-se do conceito de colonialidade do ser desenvolvido por Maldonado-Torres (2008) a partir de Quijano, Levinas, Fanon e outros filósofos. Através do exercício do poder surgem categorias que identificam os sujeitos, como por exemplo, as categorias de europeus, índios e negros. O poder naturaliza essas categorias, ou seja, cria a ilusão de que a categoria europeu, índio ou negro seja algo inato às pessoas, quando na verdade essa forma de classificar é uma construção social carregada de interesses de poder que torna algumas categorias superiores e outras inferiores. Explanamos o que Santos (2006) entende por monocultura do saber, do tempo e das classificações sociais, passamos então a explicar o que é a monocultura das escalas e das produtividades. A lógica da escala dominante valoriza o universal e o global e invisibiliza as realidades consideradas particulares ou locais. Assim, a monocultura da escala produz a não-existência das realidades consideradas particulares ou locais, valorizando o universal e o global. Por fim, a quinta lógica de não-existência é a lógica produtivista, que assenta na monocultura dos critérios de produtividade capitalista. Essa monocultura invisibiliza outras formas econômicas, como, por exemplo, a lógica colaborativa da economia solidária. A Sociologia das Ausências, ao dar visibilidade às experiências disponíveis, contrapõe aos cinco modos de produção de não-existências cinco ecologias: de saberes, das temporalidades, dos reconhecimentos, das trans-escalas e da produtividade. As cinco ecologias são formas de “agregação da diversidade pela promoção de interações sustentáveis entre entidades parciais e heterogêneas” (Santos, 2006: 105). Dessa maneira se combate o monopólio da razão indolente que definiu as monoculturas. Importa sublinhar o que entendemos por ecologia dos saberes. A ecologia dos saberes refere-se ao reconhecimento da infinita pluralidade dos saberes e da necessidade de conjugações específicas desses saberes para realizar determinadas ações. Segundo Santos (2006: 154):

“A ecologia de saberes é um conjunto de epistemologias que partem da possibilidade da diversidade e da globalização contra-hegemônicas e pretendem contribuir para as credibilizar e fortalecer. Assentam em dois pressupostos: 1) não há epistemologias neutras e as que clama sê-lo são as menos neutras; 2)a reflexão epistemológica deve incidir não nos conhecimentos em abstrato, mas nas práticas de conhecimento e seus impactos noutras práticas sociais. Quando falo de ecologia de saberes, entendo-a como ecologia de práticas de saberes.”

A Sociologia das Ausências está intimamente ligada com a Sociologia das Emergências, já que quanto mais experiências disponíveis no presente, mais experiências possíveis no futuro próximo. Contrair o futuro não significa uma posição conformista de que tudo será como é, mas exatamente o seu contrário, coloca o futuro de possibilidades e emancipações ao alcance das mãos. Uma grande inspiração de Santos (2006) ao propor a Sociologia das Emergências é o conceito de Ainda-não de Ernst Bloch. O Ainda-não é o que existe como tendência, é por um lado capacidade (potência) e por outro possibilidade (potencialidade). Há um horizonte limitado de possibilidades e por isso é importante não desperdiçar a oportunidade única de uma transformação específica que o presente oferece. Nesse sentido, cuidar do presente é imperativo porque existe a incerteza de que a esperança irá se concretizar. Dessa maneira, é a aposta em emancipações sociais futuras, mas que se realizam a partir de emancipações presentes. A Sociologia das Emergências evidencia uma nova forma de entender a mudança social, mais como um fato que se vai condensando no decorrer da vida quotidiana do que como uma rutura total com o passado. Os movimentos sociais são invisibilizados pela razão indolente por buscarem a emancipação social, ou seja, são apostas de transformação do status quo. Assim, é pertinente realizar uma Sociologia das Ausências e das Emergências dos movimentos sociais. Quando o sofrimento se torna inaceitável, intolerável, surgem movimentos sociais de contestação no campo político. O sociólogo Touraine (1998) define a Sociologia como a ciência dos movimentos sociais. Touraine assinala três princípios que todos os movimentos sociais teriam: os princípios de identidade, de oposição e de totalidade. Assim, para Touraine, o movimento social é uma ação coletiva particular, que se opõe a uma forma de dominação social, apelando a valores que a sociedade em geral partilha. Downing (2001), através da análise de Arato e Cohen, distingue três formas pelas quais os movimentos sociais foram pensados na Sociologia. A primeira os entende como atores coletivos irracionais, que agem por terem sido incitados, uma multidão desgovernada. A segunda forma pensa os movimentos sociais como completamente racionais, tendo alguns autores inclusive que dizem que “o momento de autoconsciência do povo é o movimento social” (Dussel, 2007: 120). A terceira forma de definir seria aquilo que ficou conhecido por Novos Movimentos Sociais (NMSs). Essa nova forma de chamar tenta superar a dicotomia racional e irracional, no entanto, ela cria outra dicotomia entre velho e novo e assim não favorece um conceito alargado. Os “velhos” movimentos seriam aqueles inspirados no paradigma marxista tradicional, que se centram na luta de classes como elemento motivador e que têm como forma clássica os sindicatos e os partidos políticos. E qual seria a novidade dos NMSs? Os NMSs são entendidos como aqueles cujas fontes dos conflitos sociais enfatizariam a cultura, a identidade, a esfera dos micro-poderes, ou seja, mobilizariam sujeitos vinculados a temáticas específicas como gênero, etnia, identidade cultural, meio- ambiente, etc. Os NMSs pensam em construir soluções imediatas, que mudem o quotidiano, o que reforça a ideia de uma Sociologia das Emergências. Assim, os NMSs não buscam uma nova sociedade que só será alcançada num futuro distante e improvável, mas acreditam na possibilidade de transformações concretas no presente. Vale observar que com as novas opressões, as velhas questões não estão superadas. Apesar de serem vistas como antigas, as questões trabalhistas e sindicais estão hoje perante grandes desafios, devido ao contexto de crise económica e à progressiva perda dos direitos dos trabalhadores em várias partes do mundo. Portanto, ao invés de dividir os movimentos sociais entre novos e velhos, optamos por destacar a complexidade do meio social, atravessado por diferentes relações de poder. Neste trabalho, que reflete sobre dois diferentes movimentos sociais, observamos questões transversais que atravessam realidades distintas. O Movimento Quilombola é fruto das revoltas escravas no Brasil. Longe de serem passivas espectadoras da própria tragédia, as populações escravizadas protagonizaram diferentes formas de resistência, como rebeliões urbanas, suicídios, fugas e formação de comunidades livres à margem do sistema escravista – os quilombos. No caso do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), fruto da história colonial de concentração fundiária brasileira que se perpetuou desde que os colonizadores fatiaram o território brasileiro de acordo com suas conveniências, desconsiderando as populações locais, as questões identitárias e culturais (equidade de gênero, por exemplo) andam de mãos dadas com a fundamentação marxista do MST, que acredita na luta de classes, mas nem por isso menospreza as outras dimensões de luta. Assim, buscamos não a distinção entre velhos e novos movimentos sociais, mas sim um conceito que abarque a pluralidade dos protagonistas contra-hegemônicos. Através de uma Sociologia das Ausências e das Emergências, apresentaremos sujeitos de comunidades quilombolas e do MST que são protagonistas e sementes de ecologia de saberes. Dessa forma, o desenrolar do artigo demonstra como sujeitos e movimentos sociais são agentes de emancipação que enfrentam a razão indolente.

2. Da arupemba à escola: o protagonismo das comunidades quilombolas

2.1. Os quilombos

A formação de quilombos foi uma das manifestações mais visíveis de resistência da população negra à escravidão a que foi submetida – uma negação tão latente que foi foco de preocupação da Coroa portuguesa e da elite emergente no Brasil. O conceito refere-se a comunidades negras – mas nas quais, em alguns casos, foram incorporados indígenas e brancos pobres – formadas a partir de variados fatores, tais como fugas de escravos, desagregação e abandono de latifúndios, doações de terras e assim por diante. Engana-se quem imagina que os quilombos se extinguiram juntamente com a escravidão. Eles foram combatidos antes de 1888, mas, mesmo depois da Abolição, ser negro e ter terras continuou a representar um paradoxo duramente reprimido através de proibições legais, expulsões e outras estratégias. Mas a Constituição Federal de 1988 atribuiu às populações quilombolas o direito sobre as terras que ocupam secularmente. Neste sentido, o país surpreende-se com a existência de mais de três mil comunidades, distribuídas por 24 dos 27 Estados brasileiros. Segundo a antropóloga Maria de Lourdes Bandeira (1988), o quilombo pode ser conceituado como:

“Grupo social de negros compartilhando relações sociais tipificadas a partir do uso coletivo da terra, fundado nos princípios do igualitarismo e da reciprocidade, caracterizado por afiliação de cor, laços de parentesco, localidade e práticas culturais tomadas pelo grupo como expressão de identidade em oposição a outros economicamente diferenciados ou mesmo assemelhados, porém com territorialidade distinta” (Bandeira, 1993: 98).

As entrevistas apresentadas a seguir referem-se a pesquisas desenvolvidas em dois momentos distintos: em 2006, na comunidade de Mata Cavalo, situada no Estado de Mato Grosso, região Centro-Oeste do Brasil; e em 2010, em Conceição das Crioulas, situada no sertão de Pernambuco, região Nordeste.4 Ambas as investigações privilegiaram a observação direta e entrevistas semiestruturadas como procedimentos metodológicos, para além da pesquisa participante, pontualmente utilizada.

2.2. A luz mais clara

Um dia, sob a sombra de uma árvore, João Virgulino da Silva – agricultor e artesão da comunidade de Conceição das Crioulas – iniciou espontaneamente o seu discurso: “Sabe qual é a luz mais clara que existe? O saber. Porque pode ‘tar escuro como for, mas se você põe um objeto num lugar e sabe onde ele está, vai pegar lá, porque sabe. Se não sabe, não ‘tá vendo nada”. João Virgulino continuou a contar como este saber salvara a sua família. Seu pai acabou enredando-se nas teias do regime de semiescravidão. Ele erguia cercas para o patrão que, uma vez por semana, “emprestava” o dinheiro para a compra de alimentos dentro da própria fazenda. Porém, o valor “emprestado” era sempre superior ao salário devido, gerando um endividamento que os aprisionava. Além disso, o alimento, fornecido aos domingos, era insuficiente: “A comida dava até quinta-feira. Sexta e sábado eram dias de fome”. Vendo-se encurralado, o pai de João Virgulino resolveu fazer peneiras, localmente denominadas “arupembas”, para vender na feira. Com o dinheiro arrecadado, comprou alimentos com fartura. Durante quatro semanas, dividiu o seu tempo entre a confeção de peneiras e as tarefas da fazenda – sem receber pagamento, a fim de saldar a “dívida” – e viu-se então libertado. Nesse momento, o entrevistado voltou ao ponto inicial do seu discurso: “Quem não tem nada, tem o saber. É por isso que o saber é a luz mais clara que existe”. Ele acrescentou que, depois do episódio, tratou de aprender o ofício e faz peneiras até hoje, aos 73 anos: “A arupemba tira a pessoa do arrocho. É uma saída que vem da inteligência da pessoa, do saber. Eu faço porque aprendi”. As relações entre o conhecimento formal e os demais conhecimentos seguem caminhos complexos nessas comunidades. O senhor João Virgulino, por exemplo, não deixou que nenhum dos seus filhos fosse analfabeto. De maneira geral, é possível colher pistas da existência de uma exacerbada valorização da escola no contexto quilombola, o que não anula o uso quotidiano de outros tipos de saberes.

2.3. Antônio Mulato e a primeira escola de Mata Cavalo

Outro exemplo de tal convivência ambivalente entre diferentes formas de conhecimento e da importância atribuída ao acesso ao ensino formal emerge em Mata Cavalo, quilombo situado no Estado de Mato Grosso. Antônio Mulato, que do alto dos seus 106 anos é o membro mais velho da comunidade, pauta o seu cotidiano a partir de conhecimentos estreitamente ligados à natureza. As horas, por exemplo, são reveladas pelos astros: “A hora que ficava sete estrela, ficava quatro, três horas da madrugada, eu colgava os boi e ia moer (cana-de-açúcar)”. Da mesma forma, ele fala com desenvoltura sobre as fases da lua e sua relação com os vários tipos de plantio. Mas tal acúmulo de conhecimentos não anula o seu interesse pelo ensino formal. Pelo contrário: Antônio Mulato relata como, nos anos 40 do século passado, traçou uma estratégia para viabilizar o acesso à educação institucionalizada em Mata Cavalo – num período em que, aliás, os estudos eram frequentemente vetados à população negra. É fundamental ter em conta que, nos anos 40, iniciou-se um processo de expulsão da comunidade pelos fazendeiros do entorno, o que pulverizou as famílias quilombolas pelas periferias urbanas da região. Este acontecimento foi entendido por Antônio Mulato como resultado da própria falta de acesso daquela população ao conhecimento formal: “Ah, o povo todo, o povo todo aqui ninguém tinha leitura, era bobo. Quando tinha leitura, sabia assiná o nome, mas era cavalo do branco, né? Aí do lado botava o branco, não botava ele, ele ia bater enxada”. Ou seja: a perda de algo tão concreto quanto a terra está, para ele, relacionada com a falta de acesso à palavra escrita. Depois da constatação, seguiu-se uma reação: cerca de cinco anos depois do processo de expulsão ter sido desencadeado, o entrevistado afirma ter percorrido toda a região, para recolher tudo o que fosse materialmente necessário para a abertura de uma escola em Mata Cavalo: “Arrumei papel, tudo, lápis e tudo, pai, mãe, criança, arranjei com o prefeito”. Depois de reunir tais condições, buscou um espaço físico para o seu funcionamento. Ironicamente, o mesmo latifundiário que, poucos anos antes, havia forçado a migração da comunidade, aceitou ceder um local para a realização das aulas. Não é difícil imaginar o que aconteceu no primeiro dia de atividades escolares. Todos os negros que lá compareceram, inclusive o filho do entrevistado, foram impedidos pela professora, “dona Cira”, de assistir às aulas. Usando as suas palavras,

“Meu filho vai na escola, todos os alunos, umas sessenta criança prá estudar. Aí depois a Cira foi falando que preto não. Que criança preta não estudava. (...) Mandou, porque era preto, pode fazer meia-volta. Aqui a escola é só de branco. O meu filho voltou com o livro na mão, era o Antônio Apolinário. Já morreu. Aí eu perguntei, hoje não tem escola? ‘Tem…’ Por que ocê voltou? ‘Professora mandou. Mandou voltar. Professora mandou voltar’. Aí eu vou lá, eu que sou o dono da escola, eu vou lá.”

Antônio Mulato recorreu logo ao topo da hierarquia de poder: foi tirar satisfações com o fazendeiro. Este não interveio e limitou-se a chamar a professora, que foi confrontada pelo entrevistado:

“Ela veio de lá e botou assento perto de mim, contando tanta vantagem… Vantagem… Primeiro fiz escola, prá tantas crianças, bastante crianças, e agora vou dar a escola prá fulano, fulano, fulano, fulano preto não, não tinha. E eu falei: ‘Dona Cira, a senhora, como professora, e eu, sendo dono da escola, a senhora dispensou o meu filho!”

A professora buscou a sua defesa junto ao fazendeiro, mas o poderoso dono das terras precisou negar o seu poder de interferência sobre este inesperado episódio. Segundo o entrevistado, ele limitou-se a confirmar a sua autoridade. Usando suas palavras: “Escola é dele. A casa é meu.” Em suma: contradizendo os estereótipos que insistem em petrificar e invisibilizar as populações subalternizadas, o sujeito aparentemente mais fragilizado daquele espaço social revelou-se, surpreendentemente, “o dono da escola”. Foi criado naquele instante um ponto de contradição e de rutura, o que viabilizou um embate simbólico e paradoxal do qual o entrevistado saiu vencedor. Ele descreve: “Aí veio os preto outra vez. E eu mandei ele (o filho). (...)Quase que não dá prá estudar. Escolhendo, que ia dizê que preto não ia aprender, né?”

2.4. A multiplicidade de saberes e práticas

Ambos os exemplos, situados dentro do múltiplo contexto quilombola, revelam formas de invisibilização das populações subalternizadas, que podem ser separadas em dois níveis: por um lado, o ocultamento da capacidade de iniciativa destes grupos sociais, que são frequentemente descritos pelas narrativas hegemónicas como passivas massas uniformes. Muitas vezes, portanto, a historiografia e as ciências sociais em geral não atribuem a tais sujeitos o papel de ativos protagonistas de suas próprias trajetórias. Neste sentido, os exemplos aqui apresentados contrariam tal tendência, ao descrever sujeitos que, apesar das dificuldades, descobrem estratégias para romper com o aparente determinismo dos processos de subalternização. Sob este aspeto, os dois quilombos colheram frutos pelos seus esforços. Em Mata Cavalo, onde a educação teve início através da hábil inversão de papéis no jogo da representação social, hoje a escola continua a exercer uma função política – no sentido lato. Ela ajuda a reproduzir um discurso contrário às discriminações, o que gera, para os estudantes, novas formas de identificação. Segundo Eva Gonçalina Almeida, professora da escola e neta de Antônio Mulato,

“Estratégias especiais são adotadas por nós, professores, que somos todos quilombolas. Ensinamos coisas do nosso povo, para fortalecer a nossa luta e conscientizar nossas crianças e também ensiná-las a ter orgulho de nossa raça”.

No que se refere a Conceição das Crioulas, hoje é uma das mais dinâmicas comunidades quilombolas, exercendo protagonismo junto aos movimentos sociais do Brasil. Possui uma produtora de vídeos própria, que viabiliza experiências de autoregisto, e tece uma ampla rede de parcerias para a realização conjunta de diversos projetos – agroambientais, artísticos etc. – dentro do quilombo. Seus esforços na reivindicação do acesso ao ensino formal resultaram na abertura de várias escolas na comunidade. Além disso, dezenas de alunos frequentam o Ensino Superior nas faculdades disponíveis na sede do município de Salgueiro. A maioria dos professores das escolas locais provém da própria comunidade, o que também sinaliza a existência de um ensino diferenciado e voltado para os interesses e necessidades do quilombo. Quanto ao segundo nível de invisibilidade a que os grupos sociais estão sujeitos, refere-se à hierarquização dos conhecimentos, que verticaliza as relações entre diferentes saberes. Como já vimos, a razão indolente restringiu a credibilidade ao conhecimento científico, passando a rotular as demais formas de apreensão e interpretação do mundo como crenças, superstições, opiniões e assim por diante (Santos, 2006; Santos, Meneses e Nunes, 2004). Apesar da complexidade de tais relações no interior dos quilombos aqui analisados, é possível observar, em termos gerais, uma rutura com o regime exclusivista de validação dos saberes: há uma grande valorização do ensino formal, mas esta não neutraliza ou substitui conhecimentos outros, originados a partir de processos distintos do caminho científico. Ao criticar a razão indolente – a racionalidade ocidental dominante, que se quer travestir de “verdade” – Boaventura Santos (2006) destaca a importância de tal capacidade de cosmopolitismo, que abarca a multiplicidade de saberes e práticas que compõem o mundo. Tal ethos retributivo, que Santos (2009: 42) denomina “cosmopolitismo subalterno”, revela-se principalmente através de um profundo sentido de incompletude. Pensar de maneira cosmopolita não é reunir a síntese do que existe – e acima do que existe – de maneira a usufruir do que há em variadas culturas. O cosmopolitismo é contextual, localizado e articulado de acordo com as contingências.

3. Sementes que proliferam saberes em terras vastas

3.1 O MST e sua trajetória em busca de ampliar o significado da educação

Assim que o MST surgiu, as suas famílias de agricultoras e agricultores ficaram preocupadas em terem de ir morar em terras longínquas, sem escola para seus filhos; razão pela qual o Movimento percebeu que reivindicar em busca da reforma agrária é assumir – conjuntamente e simultaneamente – a luta pela Educação5 . Dois fatores que evidenciam esse argumento revelam-se no surgimento do setor de Educação do MST, aos três anos de vida do Movimento, no ano de 1987, e na contribuição dada pelo movimento na conquista do PRONERA6 , em 1988, que possibilita a educação infantil à superior aos sujeitos dos movimentos sociais do campo. Hoje, já se somam 27 anos de sua existência e esse longo tempo representa para o Movimento inúmeros saberes e conquistas que são invisibilizados para a sociedade em geral. É importante destacar que o referido movimento compreende a Educação com um significado bem mais amplo que a educação escolar, pois o próprio movimento se considera como um lócus que produz educação em todo o seu cotidiano. Seja no enfrentamento para a ocupação de uma terra, seja nas assembleias realizadas nos acampamentos e assentamentos etc. As entrevistas apresentadas a seguir referem-se às investigações no âmbito da tese de doutoramento, que se encontra em andamento, “Ecologia dos Saberes e Justiça Cognitiva. O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra e a Universidade Pública Brasileira: Um caso de tradução?”, em 2010, em Caruaru, agreste de Pernambuco. Apresentamos, nesta seção do artigo, dois Sem Terra que fazem parte da coordenação do Movimento, no estado de Pernambuco – Rubneuza Leandro e Walter Ivan, sujeitos em permanente formação e formadores de outros Sem Terra. Dois agentes coletivos de transformação, uma das primeiras sementes do Movimento, exemplos de práticas sociais que trazem benefícios às camponesas e aos camponeses. Certamente, a razão cosmopolita brinda-os!

3.2 Rubneuza: uma história pela educação que se confunde com a do próprio Movimento

Rubneuza possui 43 anos, pedagoga, membro do Coletivo Nacional de Educação do MST; entrou no Movimento em 1987, no extremo sul da Bahia. Ela era da Pastoral da Juventude, da Igreja Católica e fazia um trabalho nas comunidades. Vinha sendo formada pela Teologia da Libertação,7 acompanhando os padres nos conflitos de terra. Segundo essa militante das causas sociais, entrar no Movimento seria uma materialidade de poder vivenciar a Teologia da Libertação na prática. Casou-se com Jaime – o coordenador do MST, do estado de Pernambuco –, em 1988, e foram encaminhados a Alagoas, onde permaneceram até 1992, transferindo-se, em seguida, para Pernambuco. Rubneuza, durante sua trajetória, no Movimento, trabalhou na frente de massa8 , no setor de formação9 , depois no de Educação, onde permanece até hoje. O que Caldart (2004) apresenta sobre a Pedagogia do Movimento Sem Terra identificamos com a própria história de Rubneuza, uma pioneira do MST, na região Nordeste do Brasil.

“…nós que já estávamos a mais de uma década no Movimento com o nível médio, a gente queria estudar, a gente sentia necessidade de estudar. Só que combinar militância com estudo não dava, a gente acabava sendo cobrado porque a gente circula, então a gente não tem uma rotina pra fazer uma escola regular, ou uma Universidade regular. Então, a gente tava atrás de uma, a gente tava atrás de uma Universidade que aceitasse fazer um curso com a gente, de formação de professores, e a gente teve respaldo lá na UNIJUI, numa Universidade comunitária. E aí, no ENERA, o Todorov que era reitor da Universidade, tava saindo, e ele se apaixonou pela ideia, e ali ele era amigo do Julgman, que era ministro do Desenvolvimento Agrário, e ali a gente constitui o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária. Tinham várias universidade parceiras, então, durante o ENERA fez uma reunião com essas universidades e a gente coloca nossas necessidades, de fazer cursos pra formar professores, em nível de graduação. E aí, todo mundo saiu encantado e constrói a ideia do PRONERA. O ENERA constrói a ideia do PRONERA, o Programa de Educação na Reforma Agrária, e aí vamos dialogar com Julgman. Como havia o Massacre de Eldorado, o Julgman acaba isso como uma tábua de salvação pra dar resposta à sociedade nacional e internacional, que a pressão tava: dezenove trabalhadores mortos, já tinha tido Corumbiara, que tinha sido seis trabalhadores mortos, em Rondônia. Então, você tem conflito, a sociedade pressionando, a sociedade internacional pressionando, você precisa mostrar uma cara mais humana. Então, ele aceita o Programa Nacional de Reforma Agrária…”

Rubneuza fez parte do primeiro curso de graduação promovido pelo Movimento, curso de Pedagogia, pela UNIJUÍ, Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul, além da pós-graduação em Educação do Campo, pela Universidade de Brasília. A pedagoga lembra que com uma mínima formação estava na mesa de negociação com as Universidades para a construção dos primeiros cursos superiores para o Movimento. Destacamos que, segundo a Sem Terra, o surgimento do PRONERA deveu-se a dois grandes fatores: a própria necessidade dos sujeitos do Movimento se qualificarem, cada vez mais, e o massacre ocorrido em Eldorado de Carajás no estado do Pará, no Brasil, em 1996, onde a própria polícia militar do estado, a mando do secretário, assassinou 19 e feriu vários Sem Terra. “Viu que o sangue tá ali banhado sendo a nossa história? Foi no sangue dos companheiros de Eldorado que a gente conquista o PRONERA.”, afirma Rubneuza!

A necessidade de ela qualificar-se, enquanto dirigente do Movimento, parte dos princípios de Educação do próprio MST que exige que todas as lideranças devem estudar, independente do nível de instrução, seja da alfabetização à pós-graduação.

“Olha, nossa luta, primeiro, todo Sem Terra estudando, é a nossa palavra de ordem... Nesses dias, o Pedro falou com o ministro da Educação, no Encontro Nacional nosso, aí o ministro da Educação estava, aí ele disse, olhe, o Movimento tirou como linha que todos e todas Sem Terra têm que estar estudando, independente do nível que está, seja na alfabetização, seja… Então, Sr. ministro, se o senhor deixar de ser ministro e quiser vir pro MST, o Sr. vai ter que achar um curso pra fazer (risos). (…) Não, a exigência pra entrar no Movimento a gente não pede carteirinha de escolaridade, mas, estando no Movimento, tem de estudar, porque a gente não entende que um dirigente ele passa a ser dirigente sem um estudo, a gente parte da ideia do Lênin, que sem teoria revolucionária não há movimento revolucionário. Portanto sem conhecimento você não tem condição de dirigir processo…”.

3.3 Walter Ivan, engenheiro agrônomo do reservatório de diálogo e ecologia de saberes

Walter possui 43 anos, é engenheiro agrônomo, responsável pelo setor de Produção do MST. Em agosto de 2010, fomos ao assentamento de Normandia, em Caruaru, no estado de Pernambuco, para conhecer o trabalho desenvolvido por Walter Ivan. Levou-nos para ver uma cisterna – reservatório de água – fruto de seu projeto que foi implantado em vários assentamentos. Em Normandia moram 40 famílias e cada uma possui uma cisterna. A grande criação de Walter Ivan foi a de ter gerado esse reservatório com suporte para 21.330 litros – aproximadamente, 5000 litros a mais, em relação às cisternas que eram produzidas, com o mesmo valor de 2000 reais, equivalentes a aproximadamente 850 euros. Esses reservatórios servem para armazenar água para o consumo de uma família de cinco pessoas. Walter avalia a sua criação:

“…pra comunidade que tem essa necessidade da água, água pra consumo, alimentação, pra consumo humano, as cisternas são primordiais porque você não tá livrando só a família de quê? Bactérias da água, a água dos barreiros elas são contaminadas com coliforme fecal, e uma série de… urina dos animais, nem todos têm condição de cercar as áreas. Então, os animais tão bebendo e a água às vezes tão sendo contaminada. Ela já causa um impacto na saúde maravilhoso, porque ela tá livrando a família dessas contaminações”.

Destacamos que a monocultura da escala e da produtividade considera o atual modelo económico como inquestionável e, com toda certeza, invisibilizaria essa ideia pensada para um coletivo de um reservatório de água, com um custo idêntico a de um reservatório menor. Sem esquecer que a dimensão económica, neste exemplo, agrega outros valores, nomeadamente, o socioambiental. O engenheiro agrônomo Walter fez seu curso superior por intermédio do MST. Tratava-se do primeiro curso de Engenharia Agrônoma10 promovido pelo PRONERA11 . Curso este que atravessou uma série de protestos, incomodando à elite brasileira que considera, certamente, que jovens camponeses, rotulados como um Outro atrasado, não podem aprender conhecimentos de engenharia, conhecimentos diferentes aos necessários para se limitarem à função de agricultores. A monocultura do tempo linear se fez presente! Walter Ivan, que é um Sem Terra beneficiado pelo curso – em andamento – de Especialização em Questão Agrária,12 apresenta uma postura bastante humilde e aberta a novos conhecimentos. Ele enfatiza que a única coisa que mudou nele é ter se tornado um agricultor culto. O engenheiro agrônomo, ao se assumir enquanto agricultor culto, quis dizer que continuava agricultor, diferenciando-se dos outros apenas por ter adquirido outros conhecimentos – referindo-se aos científicos. Na sua fala não encontramos o sentido de superioridade em relação ao outro. Fazer o curso de pós- graduação não o faz negar os conhecimentos advindos dos agricultores mais velhos, escuta-os e produz a interação entre o conhecimento do senso comum e científico.

“Eu, por exemplo, uma das primeiras coisas que eu faço na divisão do meu conhecimento é mantendo sempre a humildade, a humildade ela é fundamental, por quê? Muitas vezes quando a gente chega nas áreas pra fazer um trabalho: – Doutor! Não, não me chame de doutor, não sou doutor, mesmo que fosse, não me chame de doutor! Me chame de companheiro, me chame de Walter, por quê? Porque a única coisa que, além de mim, entre mim, que diferencia que é eu e vocês, é que eu li mais livros do que vocês. Eu, quando fui, já me considerava um agrônomo empírico, o agricultor, pra mim, é um agrônomo empírico, então o conceito meu, hoje, formado, fazendo pós-graduação, eu chego numa área e tenho um respeito muito grande pelos agricultores, por quê? Além de eu ser agricultor eu sei que há o lado empírico. Então, o que é que eu faço? Eu faço a união do que é que a Universidade me deu em termo do conhecimento científico e faço essa fundição dos conhecimentos, entre o científico meu que adquiri e o empírico deles. Então, a gente tem tudo pra avançar. Então, eu tenho que escutá-los. Sempre que eu vou fazer um projeto, numa área de assentamento que eu não conheço, em qualquer comunidade rural que eu vou fazer o projeto, o que é que eu vou fazer? Vou procurar os agricultores mais velhos, que tenham conhecimento daquela região onde ele convive, de qual foi a maior seca, de qual foi o maior período de chuvas. Então, a gente tem essa divisão, essa união de conhecimentos, porque o empírico, o científico sem o empírico ele é pobre, tem que caminhar junto”.

Esta fala de Walter revela como a conceção dominante de ciência, aquela baseada em uma razão indolente, separa o prático do teórico dando preferência à teoria. Dessa maneira, nesta fala, o conhecimento científico é visto como sinônimo de teórico, ou seja, de um saber carente de prática e incapaz de realizar a ecologia dos saberes. No entanto, Walter questiona a razão indolente, quando no seu discurso fala da importância da humildade de aprender com os outros saberes. Dessa maneira, ele busca fazer o diálogo entre o saber teórico e o saber prático. E Walter apresenta um exemplo concreto de como se desenvolve essa relação entre formas distintas de conhecimento:

“Então (… ) chegar pro agricultor e dizer a ele: olha, eu aprendi a fazer isso dessa forma, não vamos usar agrotóxico aqui, a gente pode fazer um biofertilizante, (…), sem que a gente agrida a natureza. A gente tá mostrando pra ele que há formas de unir o conhecimento da Academia. Porque eu fui pra lá adquirir isso, ou de eu fazer qualquer coisa que eu vá tratar que eu não trate do químico, que eu não vá prejudicar nem ele, aí eu tô dividindo o que eu aprendi lá. (…).Você tá contaminando o solo, contaminando as plantas, contaminando os lençóis freáticos, e se matando. Então, há casos aí que os agricultores, por não usar o EPI (equipamento de proteção individual), né, o equipamento de proteção interna, em aplicação, morre com câncer (cancro) e não sabe o que foi, por causa dos agrotóxicos.(…) Então, eu sou um exemplo vivo de que é possível um agricultor sem-terra ter um curso superior e poder vir ajudar a comunidade. Então, eu sou a primeira, uma das primeiras células, mas essas primeiras células que eu faço parte delas, nós vamos nos multiplicar. Então, hoje eu estou fazendo a pós-graduação, o meu intuito não é de parar, né? É de fazer mestrado e doutorado. Por quê? Porque eu vou tá criando novas sementes. Digamos que o MST, ele, eu costumo dizer que eu era um diamante bruto que o MST me lapidou, me tornou, tá me tornando o que eu sou hoje. Então, qual é o meu intuito? É de me formar, atingir o nível máximo de graduação pra que a gente possa plantar novas sementes, essas sementezinhas que tem aí, tudo, essa criançada toda dos assentamentos, que a gente possa multiplicar e tornar a formar mais engenheiros agrônomos, formar mais médicos, formar mais zootecnistas, psicólogos, enfermeiros, técnicos, que é dessa forma que a gente vai mudar a realidade dos assentamentos”.

Freire (1977) ao falar do ato de educar e educar-se pela prática da liberdade, cujo diálogo entre o senso comum e o conhecimento científico pode ser possível, traz a seguinte afirmação:

“Ao contrário, educar e educar-se, na prática da liberdade, é tarefa daqueles que sabem que pouco sabem – por isto sabem que sabem algo e podem assim chegar a saber mais – em diálogo com aqueles que, quase sempre, pensam que nada sabem, para que estes, transformando seu pensar que nada sabem em saber que pouco sabem, possam igualmente saber mais” (Freire, 1977: 25).

Santos (2006), com a ecologia de saberes, apresenta como princípio o respeito a todas as formas de conhecimento, bastante presente na fala anterior de Walter Ivan, na sua relação como engenheiro com os agricultores mais velhos.

3.4 Sem Terra: protagonistas formados e formadores contra-hegemónicos

Percebemos o quanto o Movimento Sem Terra, assim como alguns de seus sujeitos se misturam na construção de uma história marcada por lutas, conflitos, sangue, estudos, sementes e diálogos. Consideramos o PRONERA um programa de grande relevância por possibilitar a formação dos sem-terra, incluindo os Sem Terra,13 muitos dos quais não estudariam caso não fizessem parte de um movimento que considera imprescindível o estudo como instrumento de luta para se relacionar com a própria academia, com outros movimentos, com o Estado e a sociedade como um todo. Podemos confirmar que, de fato, o Movimento e os seus sujeitos apresentam uma pluralidade de formas de resistência e de conceções de emancipação social, seja no seu quotidiano, nas relações interpessoais e/ou interinstitucionais. Ao expandir o presente com todo esse histórico do MST em relação à Educação, apresenta um futuro de possibilidades concretas e reais. Por isso, acreditamos quando Rubneuza e Walter Ivan desejam e estão em busca de fazer o curso de Mestrado e Doutorado. Sublinhamos que isso não se restringe a esses sujeitos, aqui apresentados, mas digamos que eles são sementes que se expandem para outras terras de agricultoras e agricultores, que estão em constante movimento na conquista da Educação, desde a alfabetização à pós-graduação. Apesar da criação das monoculturas do saber, do tempo, das classificações sociais, das escalas e das produtividades, confirmamos que as vozes aqui apresentadas não são irrelevantes nem vazias, muito pelo contrário! Tratam-se de sujeitos de um movimento social do campo, protagonistas contra-hegemónicos com seus saberes teórico-práticos, repletos de inteligência, cuidado e respeito com os seres humanos. Vimos aqui que a ecologia de saberes agrega a diversidade de saberes produzidos, nos acampamentos, assentamentos e nas universidades, dentre tantos outros espaços. Por essa razão, consideramos de suma importância exibir esse relato, alertando a todos para que não seja desperdiçada a oportunidade única de uma transformação específica.

Conclusão: uma aposta nas possibilidades de diálogo

A cisterna do engenheiro agrônomo Walter Ivan, a contribuição para o PRONERA pela pedagoga Rubneuza do MST e a reivindicação do ensino formal e da valorização dos outros saberes nos quilombos de Antônio Mulato e João Virgulino são exemplos de apostas em emancipações sociais. Vozes consideradas pela ciência moderna ocidental como irrelevantes, e por isso ocultadas, são capazes de contribuir efetivamente na melhoria da qualidade de vida das coletividades das quais fazem parte. A pluralidade de conhecimentos contribui para comunidades que estão produzindo sua emancipação social na luta quotidiana. O diálogo entre formas distintas de saber é possível. Antônio Mulato e João Virgulino contrariam a tendência de hierarquização dos conhecimentos através de ações palpáveis que apontam para caminhos emancipatórios. Rubneuza, uma vida de dedicação ao movimento social, um caminho de interseção e mistura com o próprio percurso do MST. Walter Ivan, apesar de engenheiro, não deixa de respeitar e permanece a escutar os velhos agricultores com seus ricos saberes. Dessa maneira, os sujeitos apresentados enfrentam a razão indolente e realizam verdadeiras ecologias dos saberes. Longe da distinção entre novos e velhos movimentos sociais, este artigo busca revelar uma realidade atravessada por diferentes dimensões. O epistemológico, o étnico, o econômico e o social, dentre outros aspetos, estão entrelaçados dentro de dinâmicas relações de poder. Portanto, dentro de tal complexidade, desenvolvemos este artigo a partir do prisma epistemológico, ao enfatizarmos a relação entre os movimentos sociais e a educação, apresentando sujeitos que defendem, simultaneamente, dois aspetos: por um lado, a valorização de outros saberes e da educação em espaços não-escolares. Por outro, os mesmos sujeitos defendem a necessidade de transformação da escola pública, de tal forma que o ensino formal sirva a propósitos emancipadores e não manipuladores. Esses e outros sujeitos, protagonistas das suas próprias histórias, dão pistas de um mundo mais complexo e diverso do que a razão indolente aceita e credibiliza. Tal multiplicidade desafia as Ciências Sociais: sob a perspetiva da Sociologia das Ausências, convida à perceção da existência de saberes e culturas ocultados pela visão hegemónica da realidade; sob a perspetiva da Sociologia das Emergências, também alerta para a existência de caminhos emancipatórios subtis ou evidentes, protagonizados por tantos nomes, rostos e mãos que atuam a partir dos movimentos sociais.

 

Referências bibliográficas

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Notas

1 Mestra em Educação e em Estudos Coloniais e Pós-Coloniais. Doutoranda do Programa de Doutoramento de Pós-colonialismos e Cidadania Global, do Centro de Estudos Sociais e da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Coimbra, Portugal); bolseira da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT). E-mail: carlaaguas@gmail.com

2 Mestra em Sociologia. Doutoranda no Programa de Pós-colonialismos e Cidadania Global, do Centro de Estudos Sociais e da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Coimbra, Portugal); bolseira da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) (Brasil). E-mail: juliafb82@yahoo.com.br

3 Mestre em Educação. Doutorando no Programa de Pós-colonialismos e Cidadania Global, do Centro de Estudos Sociais e da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Coimbra, Portugal); bolseiro da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT). Professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Pernambuco (IFPE) (Brasil). E-mail: marcosmvalenca@gmail.com

4 Em 2006, as atividades inseriram-se no âmbito da dissertação de mestrado “Mata Cavalo: a saga dos quilombolas”, um estudo de caso que traçou a trajetória da comunidade e a sua capacidade de resistência; em 2010, as investigações desenvolveram-se no âmbito da tese de doutoramento “Quilombo em festa: pós-colonialismos e os caminhos da emancipação social”, em andamento, na qual, através de um estudo comparado, busca-se perceber as relações entre festa e resistência no contexto quilombola.

5 Com essas palavras não queremos dizer que o Movimento não tenha outras preocupações, como, por exemplo, com a saúde, o meio ambiente, a produção, a cultura, dentre outras.

6 Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária é uma política pública criada pelo governo brasileiro, no ano de 1988, devido a luta do MST, de algumas universidades públicas brasileiras e sindicatos, com o intuito de oferecer a escolarização formal dos sujeitos do campo, envolvendo os diversos níveis de ensino – educação de jovens e adultos, ensino médio e profissionalizante e o superior.

7 Teologia da Libertação é uma corrente teológica que envolve diversas teologias cristãs, desenvolvida no Sul Global a partir dos anos 70, com o objetivo de refletir sobre a pobreza e a exclusão social.

8 O coletivo do MST do setor de Frente de Massa é responsável pela expansão do Movimento. Seus integrantes se deslocam ajudando na formação de novos grupos de famílias para a realização de novas ocupações.

9 O setor de Formação tem a tarefa de organizar a formação social e política dos Sem Terra.

10 O curso foi realizado pela Universidade Federal de Sergipe.

11 O Programa Nacional da Educação na Reforma Agrária – PRONERA – do Ministério do Desenvolvimento Agrário do Brasil é uma política pública de educação do campo aos sujeitos do campo e foi gerado a partir da pressão sofrida pelo Estado, por movimentos sociais e universidades públicas, e do I° Encontro Nacional dos Educadores e Educadoras da Reforma Agrária – ENERA, realizado em 1997. O referido programa, criado em 1998, atrai o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, MST, dentre outros movimentos do campo, em busca, dentre outras, da efetivação de cursos superiores para os sem-terra.

12 Curso iniciado no final de abril de 2010, realizado, via PRONERA, pela Universidade Federal Rural de Pernambuco-UFRPE, campus Garanhuns.

13 Segundo Caldart (2004), Sem Terra são os sujeitos pertencentes ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra; sem-terra são os sujeitos com ausência de propriedade ou de posse da terra.

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