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Sociologia

versão impressa ISSN 0872-3419

Sociologia vol.24  Porto dez. 2012

 

O problema da integração

The problem of integration

Le problème de l’intégration

El problema de la integración

Rui Pena Pires1

Instituto Universitário de Lisboa


 

RESUMO

Integração é o conjunto de processos de constituição de uma sociedade a partir da combinação das suas componentes, sejam elas pessoas, organizações ou instituições. Na modernidade, a questão da integração tem particular relevância devido aos processos de individualização e de diferenciação, os quais se traduzem num aumento daquelas componentes. Neste artigo são conceptualizados os processos de diferenciação e de individualização e discutidas as suas consequências nos planos da integração social e sistémica das sociedades modernas.

Palavras-chave: Diferenciação; Individualização; Integração social; Integração sistémica


ABSTRACT

Integration is the set of processes of constitution of a society from the combination of its components, be they people, organizations or institutions. In modernity, the question of integration is of particular relevance due to the processes of individualization and differentiation, which are reflected in an increase of those components. This paper conceptualizes the processes of differentiation and individualization, and discusses its consequences in terms of social and systemic integration of modern societies.

Keywords: Differentiation; Individualization; Social integration; Systemic integration


RÉSUMÉ

L'intégration est l'ensemble des processus de constitution d'une société par la combinaison de ses composants, qu'il s'agisse de personnes, organisations ou institutions. Dans la modernité, la question de l'intégration revêt une importance particulière en raison des processus d'individualisation et de différenciation, qui se traduisent par une augmentation de ces composants. Cet article conceptualise les processus de différenciation et l'individualisation et discute ses conséquences en termes de l’intégration sociale et systémique des sociétés modernes.

Mots-clés: Différenciation; Individualisation; Intégration sociale; Intégration systémique


RESUMEN

La integración es el conjunto de procesos de constitución de una sociedad mediante la combinación de sus componentes, ya sean personas, organizaciones o instituciones. En la modernidad, la cuestión de la integración es de particular importancia debido a los procesos de individualización y diferenciación, que se reflejan en un aumento de esos componentes. En este artículo se conceptualizan los procesos de diferenciación e individualización, y se discuten sus consecuencias en términos de la integración social y sistémica de las sociedades modernas.

Palabras-clave: Diferenciación; Individualización; Integración social; Integración sistémica


 

Integrar significa, em português corrente, “tornar inteiro”. Em sociologia, o termo integração é usado com um sentido semelhante para designar o conjunto de processos de constituição de uma sociedade a partir da combinação das suas componentes, sejam elas pessoas, organizações ou instituições. Essa combinação nunca está concluída, podendo qualquer sociedade colapsar por separação das partes que a constituem. Daí a referência à integração como problema.
Sendo um problema geral, tem expressão particular na era moderna. Dois processos contribuem para isso. Por um lado, o processo de individualização, isto é, de autonomização do agente humano nos planos cultural, normativo e material. Por outro, o processo de diferenciação, isto é, de crescente especialização das atividades, organizações e instituições que constituem as sociedades modernas. O desenvolvimento da modernidade tem pois, entre outras características, a de se fazer por aumento das partes que constituem as sociedades, seja porque estas são compostas por indivíduos mais autónomos, seja porque nelas se multiplicam atividades, organizações e instituições mais especializadas.
Falar da combinação das componentes de uma sociedade é o mesmo que falar da organização das relações sociais que concretizam essa combinação. Ou seja, o problema da integração constitui uma das dimensões do problema da ordem na medida em que envolve os modos de padronização da vida social no âmbito das relações problemáticas entre as “partes” na constituição do “todo”. Relações que têm propriedades diferentes consoante sejam relações entre atos de pessoas, singulares ou coletivas, ou relações de interdependência sistémica entre instituições e hierarquias.
Convém, por isso, distinguir entre integração social e integração sistémica. No plano social, integração é o modo como indivíduos autónomos são incorporados num espaço social comum através dos seus relacionamentos, isto é, como são constituídos os laços e símbolos de pertença coletiva. No plano sistémico, integração é o modo como são compatibilizados entre si subsistemas sociais especializados, isto é, como são constituídas as interdependências entre subsistemas de um mesmo sistema. Em termos mais gerais, integração social é a ordenação das relações entre indivíduos, agrupamentos de indivíduos, atos individuais e atos coletivos. Por sua vez, integração sistémica é a ordenação das relações entre papéis, instituições, lugares e hierarquias.
Nas próximas duas secções, são conceptualizados os processos de diferenciação e de individualização que estão na origem das manifestações particulares do problema da integração nas sociedades modernas. Passa-se, depois, à análise dos planos social e sistémico dos processos de integração.

1. Diferenciação

Todos os sistemas sociais de maior dimensão são compostos por subsistemas de menor dimensão. Ou seja, o crescimento dos sistemas sociais tem-se feito não por “inchamento” mas por multiplicação das suas partes, sistematicamente recombinadas em novos moldes. Muitos autores defendem mesmo, com argumentos e provas convincentes, que o crescimento dos sistemas sociais não seria possível sem os acréscimos de complexidade que resultam da multiplicação e recombinação das partes que os constituem.
Essa multiplicação é, habitualmente, designada por diferenciação e a sua recombinação por integração (ou reintegração). Em rigor, porém, a diferenciação é apenas um dos três tipos básicos de divisão que contribuem para aumentar a complexidade dos sistemas sociais, devendo ser distinguida da segmentação e da hierarquização. Segmentação é um tipo de divisão que leva à constituição de entidades autónomas e semelhantes à entidade inicial. Pelo contrário, diferenciação e hierarquização são processos de divisão caracterizados por perca de autonomia das novas entidades e crescimento das interdependências entre elas. Essas interdependências são de dois tipos. Quando há diferenciação, num sentido mais estrito, as partes tornam- se interdependentes porque se tornam especializadas, seja em termos funcionais (especialização de domínios), seja em termos estruturais (especialização de mecanismos). No caso da hierarquização, as interdependências entre as partes baseiam- se na separação entre controlo e execução, o que significa que a hierarquização é um caso especial de diferenciação, por especialização do controlo. Vejamos melhor cada um destes processos que, distintos em termos analíticos, apresentam-se, na realidade social e histórica, combinados em graus e modalidades variáveis.
Existe segmentação quando, por exemplo, o crescimento das populações se faz por multiplicação de comunidades autónomas, como terá acontecido no início da história humana. Na ausência de processos de diferenciação e hierarquização capazes de acomodarem as pressões do crescimento, a segmentação terá sido o processo pelo qual foi mantida uma escala de organização social viável. Existe, ainda, segmentação em episódios de colapso nacional, por exemplo, quando um mesmo país dá origem a vários países, como aconteceu, a partir de 1991, com a sucessiva divisão da ex-Jugoslávia na Eslováquia, Croácia, Macedónia, Bósnia, Sérvia, Montenegro e Kosovo. Cada uma das novas entidades é, como a inicial, uma sociedade nacional, pelo que, neste caso, segmentação significou desintegração (da Jugoslávia). Porém, a relação entre segmentação e integração nem sempre é negativa. O exemplo do federalismo como modo de organização política ilustra bem quer as possibilidades de compatibilização entre segmentação e integração quer as suas tensões. Quando combinada com alguma diferenciação e hierarquização entre governo central e estados federados, as federações têm sido viáveis em países como os EUA, a Alemanha ou o Brasil. Quando nessa combinação a segmentação se sobrepõe à diferenciação e à hierarquização, como tem acontecido na União Europeia, as tensões desintegradoras tendem a ser endémicas.
O desenvolvimento da modernidade implica aquelas combinações e tensões. A modernidade caracteriza-se, antes de mais, pela generalização, do topo para a base, de processos de diferenciação funcional e estrutural antes localizados apenas no topo das hierarquias sociais (Mouzelis, 2008: 148-155). A diferenciação funcional concretiza-se na especialização de diferentes domínios institucionais, como, entre outros, a economia, a política, a lei, a religião e a família. Esta diferenciação traduz-se na emergência de normas, organizações e papéis específicos em cada um dos domínios institucionais. Como cada sociedade concreta é composta por instituições económicas, políticas, jurídicas, religiosas e familiares que dependem umas das outras, as partes assim constituídas não têm a autonomia das partes que referimos a propósito da segmentação.
A autonomia das partes funcionalmente diferenciadas é a autonomia da lógica da sua organização, não de conjuntos de pessoas. De facto, enquanto a segmentação opera através da separação de conjuntos de relações entre pessoas, a diferenciação opera através da especialização das propriedades dessas relações, independentemente dessa especialização poder ser também, pelo menos em parte, separação entre relações e conjuntos de relações entre pessoas. Exemplificando, a desintegração da Jugoslávia significou a separação, entre outros, de sérvios e croatas. A separação entre as instituições económicas e familiares não é a separação entre conjuntos de pessoas, como naquele caso, mas entre conjuntos de papéis desempenhados pelas mesmas pessoas, profissionais no trabalho e familiares em casa. A maior compatibilidade entre diferenciação e integração resulta, pois, das interdependências entre domínios e papéis, bem como da não sobreposição entre papéis e pessoas. Voltaremos a este ponto.
A diferenciação estrutural, por sua vez, concretiza-se na especialização de três mecanismos relacionais básicos que têm sustentado o alongamento espácio-temporal das relações sociais: a interação, a organização e a institucionalização. A sua diferenciação opera por sucessivas despersonalizações das relações sociais, quando passamos do primeiro para o segundo e deste para o terceiro. Um processo de interação é sempre constituído por relações entre pessoas. Um processo organizacional é constituído por relações coordenadas entre atividades, com um objetivo, independentemente das pessoas que realizam essas atividades. Um processo de institucionalização é constituído por relações entre as propriedades gerais e abstratas das relações entre pessoas, organizações e atividades num domínio específico definido por um meio simbólico e universal de equivalência relacional (como o dinheiro, na economia, ou a autoridade, na política).
Estas diferenças devem ser conceptualizadas como diferenciação porque resultam da especialização entre relações sociais mais personalizadas e relações sociais mais despersonalizadas, não da substituição das primeiras pelas segundas. Nas sociedades modernas, a evidência dessa especialização exprime-se no discurso comum em expressões como “trabalho é trabalho, conhaque é conhaque”, ou “amigos, amigos, negócios à parte”. No discurso académico exprime-se, por exemplo, na dicotomia parsoniana afetividade versus neutralidade afetiva. Ou seja, não havendo organização sem interação, um processo organizacional opera por especialização da interação, estabelecendo regras de entrada, saída e desempenho das interações que distinguem as interações organizacionais de outras interações, por exemplo, de sociabilidade. O que significa que “as exigências comportamentais de uma organização e as exigências comportamentais dos seus membros podem variar de modo independente” (Luhmann, 1982: 75).
Do mesmo modo, não existindo instituições sem interação e organização, um processo de institucionalização opera por especialização de um domínio interativo e organizacional, distinguindo, por exemplo, entre uma empresa e um serviço público. Ou seja, a diferenciação entre a economia e a política, no plano institucional, só é possível porque existe diferenciação estrutural entre instituição, organização e interação. Como as tensões entre papéis profissionais e familiares não são apenas tensões entre domínios institucionais, mas também entre níveis de diferenciação estrutural.
Duas notas mais sobre os processos de diferenciação estrutural. Primeira, para sublinhar, uma vez mais, que a diferenciação de mecanismos não distingue categorias de fenómenos isolados uns dos outros, mas níveis interdependentes de funcionamento das sociedades. Por exemplo, o funcionamento das organizações assenta em interações, por um lado, e é institucionalmente regulado, por outro. Ou seja, partes estruturalmente diferenciadas são combinadas verticalmente, por encastramento.
Segunda nota, a diferenciação de mecanismos não é apenas analítica, mas constitutiva da diferenciação entre os níveis micro, meso e macro da ordem social. Estes níveis correspondem a escalas sucessivamente mais amplas da ordem social por envolverem um número crescente de pessoas e relações num espaço mais vasto e por um tempo mais longo, isto é, correspondem a um maior alongamento espácio-temporal das relações sociais, para usar a terminologia de Giddens (1984). Aquelas escalas não são secções de um continuum micro-macro mas estratos ordenados e encastrados, pois distinguem-se entre si pela operação de mecanismos específicos que tornam possível os sucessivos ganhos de escala.
A emergência de escalas mais amplas requer a estabilização das regras impessoais que as constituem e a efetividade da sua aplicação. A hierarquização é o processo que tem permitido essa estabilização e efetividade. Não haveria diferenciação estrutural e funcional sem hierarquização, isto é, sem a separação entre controlo e execução ao nível organizacional.
Convirá sublinhar que o reconhecimento da existência de relações funcionais recíprocas entre diferenciação e hierarquização não permite concluir que a hierarquização tem origem em requisitos da diferenciação. A hierarquização das relações sociais tem outras origens, independentes da diferenciação, nomeadamente a procura, pelos agentes sociais, de controlo da agência de outros agentes, ou seja, de poder sobre esses outros agentes por coerção ou persuasão. Nessa procura de controlo, a organização, e portanto os processos de diferenciação que a concretizam, permite estabilizar e fixar as relações de poder. Ou seja, neste caso, a diferenciação tem origem em episódios de poder e nos processos de institucionalização dos seus resultados. A relação entre diferenciação e hierarquização é, pois, uma relação de imbricação mútua.
A generalização da diferenciação nas sociedades modernas implica essa imbricação, a qual tem uma dupla face. Por um lado, o aumento da capilaridade das hierarquias formais, isto é, o crescimento extensivo e intensivo dos controlos organizacionais da vida social. Por outro, a multiplicação dos eixos de hierarquização (por diferenciação institucional) e a consequente complexificação dos sistemas de estratificação.
O primeiro processo resulta da omnipresença das instituições nas sociedades modernas, e portanto das organizações que as suportam, , consequência direta da sua crescente diferenciação. A diferenciação entre economia, política, religião, família, educação, medicina, desporto, arte,… processa-se através da constituição de normas, papéis e organizações especializadas em cada um destes domínios. Por exemplo, a diferenciação entre a arte e a economia não é um processo negativo (“a arte não é economia”), mas um processo de definição de normas, papéis, organizações e hierarquias especializadas que constituem o domínio da arte, para além das normas, papéis, organizações e hierarquias especializadas que constituem o domínio da economia. Por outras palavras, quanto mais diferenciada é uma sociedade mais institucionalizada é a atividade social em geral e, portanto, mais regulada hierarquicamente.
O segundo processo resulta da especificidade das propriedades relacionais que distinguem os domínios institucionais entre si e, em particular, da especificidade do meio simbólico e universal de equivalência relacional organizador de cada domínio. Por exemplo, a diferenciação entre a economia e a política é também a diferenciação entre princípios de hierarquização e de estratificação em função da desigual distribuição do dinheiro, no primeiro caso, e da autoridade política, no segundo.
O conjunto destes processos de diferenciação e hierarquização nas sociedades modernas gera problemas de integração, tanto sistémicos como sociais. No plano sistémico por multiplicação das partes diferenciadas, no plano social por multiplicação dos focos de tensão associados à hierarquização dessas mesmas partes. Porém, parte desses problemas encontra meios de resolução nos próprios processos que os originaram.
Em primeiro lugar, no plano sistémico. Por um lado, porque, como já se referiu, mais diferenciação significa acréscimos de dependência recíproca entre as partes e, portanto, redução das pressões para a sua autonomização. Por outro lado, porque a imbricação entre diferenciação e hierarquização permite incrementos na coordenação das partes diferenciadas, internamente e entre elas. Dependência recíproca e coordenação são mecanismos fundamentais de integração das partes.
Em segundo lugar, no plano social. A multiplicação dos focos de tensão, potencialmente geradores de conflitos, tem duas contratendências associadas. Por um lado, a diferenciação institucional a que está associada a maior dispersão desses focos não recorta conjuntos segmentados de pessoas, mas domínios especializados de atividades, os quais envolvem pessoas no desempenho de papéis especializados, ou seja, pessoas enquanto atores sociais, só parcialmente afetados pelas hierarquias de cada domínio diferenciado. Por outro lado, a diferenciação estrutural tende a separar os lugares de autoridade dos agentes que os ocupam, isto é, a transferir autoridade dos agentes para os lugares e papéis. Uma tal transferência tende a facilitar a legitimação da hierarquia e, portanto, a reduzir as tensões interindividuais potencialmente indutoras de conflito.
Em geral, a separação entre pessoas e papéis é uma das mais importantes consequências dos processos de diferenciação, do ponto de vista da resolução dos problemas de integração suscitados por esses mesmos processos. A separação entre pessoas e papéis concretiza-se de dois modos. No plano funcional, a diferenciação institucional das sociedades modernas impede a sobreposição entre um papel e uma pessoa, pois toda a pessoa tem que desempenhar vários papéis. No plano estrutural, muitos desses papéis, nomeadamente quando parte de um contexto organizacional, são despersonalizados, isto é, definidos antes do seu desempenho concreto por um agente concreto: da mesma maneira que nascemos com uma posição nos sistemas de estratificação antes de começarmos a agir, acedemos também a papéis já desenhados antes de começarmos a desempenhá-los (e, provavelmente, a personalizá-los parcialmente). Multiplicação e despersonalização de papéis são processos que possibilitam a redução do envolvimento emocional de cada pessoa em cada papel e, portanto, a redução do potencial de disrupção social associada ao seu desempenho.
Em síntese, o crescimento dos sistemas sociais tem-se feito por multiplicação das suas partes e posterior recombinação das mesmas em novos moldes, mais complexos. Aquela multiplicação das partes opera por segmentação, diferenciação e hierarquização, tipos básicos de divisão social com propriedades diferentes:

a) a segmentação é uma divisão em entidades autónomas e semelhantes à entidade inicial; b1) a diferenciação funcional é uma divisão em domínios sociais especializadas, e portanto menos autónomos, no plano institucional (domínios institucionais); b2) a diferenciação estrutural é uma divisão em mecanismos especializados, e portanto menos autónomos, no plano relacional (interação, organização e institucionalização); c) a hierarquização é uma divisão por separação entre controlo e execução.

Destacou-se, ainda, a existência de relações de mútua dependência entre os processos de diferenciação estrutural e de hierarquização, bem como de propriedades integradoras dos processos de diferenciação, nomeadamente os acréscimos de interdependência sistémica e de coordenação, bem como a separação entre pessoas e papéis. Esta separação é, num quadro analítico mais geral, particularmente importante, por duas ordens de razões.
Em primeiro lugar, porque a separação entre pessoas e papéis é uma das manifestações, nas sociedades modernas, da distinção entre relações entre pessoas, por um lado, e relações sistémicas (ou relações entre as propriedades das relações entre pessoas), por outro. O que significa que aquela distinção é, simultaneamente, analítica e empírica, pois remete para modos de organização social historicamente variáveis. Se toda a sociedade inclui relações entre pessoas e relações sistémicas, a amplitude das segundas tende a ser tanto maior quanto mais diferenciada for essa sociedade. A modernidade é, pois, um tipo de sociedade “mais sistémica”, isto é, com maior escala e grau de sistematicidade, do que sociedades mais locais e menos diferenciadas.
Em segundo lugar, porque a separação entre pessoas e papéis é um dos mecanismos que sustenta o processo de individualização e que contribui para a integração social numa sociedade de indivíduos.

2. Individualização

As sociedades modernas são sociedades de indivíduos porque são compostas por pessoas autónomas no plano normativo, singulares no plano valorativo e com autoconsciência da sua autonomia e singularidade no plano cognitivo. Neste contexto histórico, “a função primordial do termo ‘indivíduo’ consiste em expressar a ideia de que todo o ser humano (…) é ou deve ser uma entidade autónoma e, ao mesmo tempo, de que cada ser humano é, em certos aspectos, diferente de todos os outros, e talvez deva sê-lo” (Elias, 1987: 130).
Em termos ontológicos, autonomia, singularidade e autoconsciência são potenciais humanos gerais, isto é, características que todas as pessoas têm capacidade para manifestar de modo variável. Porém, as condições normativas e valorativas de expressão desses potenciais não são propriedades humanas mas relacionais, isto é, sociais. Historicamente, a prevalência de sistemas de normas e valores que autorizam e promovem a definição das pessoas em geral, e não apenas das que integram uma minoria hierárquica, como seres autónomos, singulares e autoconscientes, numa palavra, como indivíduos, é uma característica das sociedades modernas. Individualização é, portanto, o processo social moderno de emergência e institucionalização dos sistemas de normas e valores que autorizam e promovem a autonomia, singularidade e autoconsciência dos seres humanos em geral, bem como as condições da sua concretização relacional.
A definição normativa da categoria de indivíduo foi um processo longo de mudança que envolveu, num primeiro momento, a progressiva eliminação dos múltiplos tipos de laços de dependência pessoal e de vinculação comunitária localista. Num segundo momento, a mudança passou pela progressiva valorização da razão em relação ao costume, ou seja, pela afirmação da ideia de que são possíveis e desejáveis escolhas individuais responsáveis sobre os destinos pessoais, de que somos, ou devemos ser, os autores dos nossos atos ou, pelo menos, de muitos dos nossos atos. A institucionalização desta ideia, enquanto norma, concretizou-se no desenvolvimento dos direitos civis e políticos em torno do valor da liberdade.
Note-se que, naquele segundo plano, a mudança foi normativa — “as pessoas podem e devem fazer escolhas individuais responsáveis sobre os seus destinos” —, não necessariamente factual — “as pessoas fazem escolhas individuais responsáveis da qual resultam os seus destinos” —, pelo menos com o mesmo alcance. A possibilidade de alguém mobilizar recursos para transformar a sua condição de indivíduo de jure em capacidade para agir como indivíduo de facto é variável, dependendo, em boa parte, dos padrões e dinâmicas da desigualdade em cada sociedade (Bauman, 2001: 58). Da eventual impossibilidade total ou parcial daquela transformação, em especial quando imputável aos efeitos da desigualdade, podem emergir tensões no plano da integração social. Porém, convém não o esquecer, essas tensões só existem porque existe individualização no plano normativo, porque existem indivíduos de jure independentemente de existirem restrições à sua efetividade como indivíduos de facto.
A segunda componente do processo de individualização, a singularidade, a ideia de que cada ser humano é e deve ser, pelo menos em certos aspetos, diferente de todos os outros, desenvolveu-se com base nos processos de diferenciação e de autonomização individual. Através da diferenciação, aumentou a variedade de posições e atividades sociais especializadas e, portanto, a probabilidade de variedade social. Através da autonomização, aumentou a possibilidade de cada indivíduo escolher diferentes combinações dessas posições e atividades e, portanto, a probabilidade de a variedade individual, por combinações diversificadas de papéis, ser superior à variedade social. A separação entre pessoas e papéis foi o mecanismo que viabilizou aquela combinação e a consequente maior variabilidade pessoal do que social.
As consequências da operação destes mecanismos podem começar por ser ilustradas a contrario. Nem todos os papéis permitem uma separação geral entre as suas propriedades e os atributos dos agentes que os desempenham. Em rigor, a separação entre pessoas e papéis é variável. No limite, há papéis que, uma vez ativados, requerem uma subordinação de quem os desempenha que impossibilita a escolha de outros papéis. É o caso, por exemplo, da exigência de celibato aos sacerdotes na igreja católica (ou, até à década de 1860, aos professores da Universidade de Cambridge): em consequência, fica assim impossibilitada a combinação entre o papel de sacerdote e boa parte dos papéis familiares, impossibilidade que não caracteriza o desempenho da maioria dos papéis ocupacionais.
O enfraquecimento da separação entre pessoas e papéis pode ainda ser ilustrado pelo mecanismo clássico de discriminação das mulheres. Quando ao papel familiar de mulher é atribuída primazia sobre a categoria de indivíduo, é fechado ou limitado o acesso das mulheres a papéis não familiares. Em regra, o enfraquecimento da separação entre pessoas e papéis caracteriza as várias práticas de discriminação, tanto quando os marcadores da discriminação são fenotípicos (sexo ou cor da pele, por exemplo), como quando são etnoculturais. A essencialização da definição etnocultural pode ser usada, tal como os marcadores fenotípicos, para fechar o acesso de categorias sociais de pessoas a conjuntos específicos de papéis. Seja qual for o modo como aquele fechamento é realizado, o resultado é sempre uma redução da amplitude da individualização e, com frequência, um reforço das tendências para a comunitarização.
A oposição entre individualização e comunitarização constitui outro modo de ilustrar os efeitos da separação ou sobreposição entre pessoas e papéis. Comunitarização é todo o processo de constrangimento das relações entre papéis em função da atribuição de primazia a um papel específico ao qual se faz corresponder uma categoria de pessoas. Uma comunidade é, portanto, um conjunto de pessoas, em regra de âmbito local, delimitado por um papel definido como primordial porque distingue uma categoria de pessoas entre as quais existem relações de interdependência mais fortes, isto é, mais frequentes, intensas e personalizadas do que entre cada uma dessas pessoas e outras exteriores à comunidade. Neste sentido, uma comunidade é sempre um sistema social com um baixo grau de diferenciação, tanto funcional como estrutural. Por outras palavras, enquanto nos processos de individualização o sistema de relações pessoais é aberto por autorização de um elevado número de combinações de papéis, nos processos de comunitarização o sistema de relações tende para o fechamento por constrangimento da variedade possível da combinação de papéis. Ora, é a variedade das combinações de papéis que concretiza a ideia de que “cada ser humano é e deve ser, pelo menos em certos aspectos, diferente de todos os outros”, isto é, que concretiza a possibilidade da singularidade individual. Comunitarização e individualização tendem por isso a opor-se, só sendo compatibilizáveis através da diferenciação estrutural dos seus níveis de operação.
Se comunidade e indivíduo (embora não comunitarização e individualização) são termos que remetem para realidades antagónicas, o mesmo não é verdade no que respeita aos termos indivíduo e sociedade. Existem indivíduos porque existem ordens sociais (sociedades) que favorecem a prática e a valorização da autonomia e da singularidade, não porque existe “menos sociedade” (o que quer que a expressão queira dizer). E existem sociedades de indivíduos porque a prática individual generalizada da autonomia e a valorização coletiva da singularidade sustentam a reprodução continuada daquelas ordens sociais.
Na sequência destas observações convém desfazer dois equívocos frequentes nos debates sobre a individualização. São eles, o equívoco da erosão dos laços coletivos nos processos de individualização e o equívoco da rarefação da consciência coletiva nas sociedades de indivíduos.
A razão por que é errado confundir individualização com erosão dos laços coletivos está bem estabelecida no teorema de Simmel sobre a interseção dos círculos sociais de pertença. Segundo o teorema,

i) quando aumenta a diferenciação, aumenta o número possível de pertenças coletivas de cada pessoa; ii) quando aumenta a liberdade de cada pessoa para escolher as suas pertenças coletivas, aumenta a probabilidade de essas pertenças se combinarem de modo variável de indivíduo para indivíduo; iii)quando aumentam quer o número possível de pertenças de cada pessoa quer a liberdade da sua combinação, a relação entre círculos de pertença tende a ser de interseção, não de sobreposição; iv) quando o número de pertenças de cada pessoa aumenta e a relação entre círculos de pertença tende a ser de interseção, aumenta a probabilidade de, para cada indivíduo, essa interseção ser singular; v) quando aumenta a probabilidade de singularidade das combinações de pertenças de cada pessoa, aumenta a probabilidade de cada pessoa ser, pelo menos em certos aspetos, diferente de todas as outras.

Em termos simmelianos, um indivíduo pode ser definido como uma interseção singular de pertenças: “quanto maior é o número de círculos a que uma pessoa pertence, mais improvável é que outras pessoas apresentem a mesma combinação de afiliações, que esses círculos tenham o mesmo tipo de ‘intersecção’ (numa segunda pessoa)” (Simmel, 1908: 140). Uma das componentes do processo de individualização é, pois, a passagem de um sistema caracterizado por pertenças sociais justapostas, concêntricas e em número reduzido, para um sistema em que são possíveis as mais variadas interseções de pertença, em número tendencialmente crescente. Ou seja, individualização é um processo caracterizado não pela erosão das pertenças coletivas, mas pelo desenvolvimento de novos tipos de pertenças coletivas, não pela ausência de pertenças mas pelo modo de combinação dessas pertenças, a saber, a sua interseção singular em lugar da sua justaposição comunitarista.
Passemos, agora, à discussão sobre o equívoco da rarefação da consciência coletiva nas sociedades de indivíduos. O argumento clássico é o seguinte: quando as pessoas são mais semelhantes entre si e menos autónomas, é mais provável que partilhem as mesmas conceções cognitivas e morais sobre o mundo; quando se tornam mais diferentes entre si e mais autónomas, é menos provável que partilhem essas mesmas conceções. Resumindo, à semelhança de situações tenderia a corresponder mais consciência coletiva, à heterogeneidade de situações menos consciência coletiva. Existem dois erros neste raciocínio.
O primeiro erro deriva do pressuposto falacioso segundo o qual entre pessoas diferentes é mais improvável a existência de conceções comuns. Falacioso porque presume que essas conceções são necessariamente relativas apenas, ou sobretudo, às situações concretas vividas por cada um — e essas, de facto, tendem a ser diferentes. Porém, os intelectuais não são as únicas pessoas capazes de pensamento abstrato. A capacidade de aceder a conceções mais abstratas e descontextualizadas é uma capacidade geral dos seres humanos (ainda que desigual e variavelmente desenvolvida). Numa perspetiva histórica, os processos de diferenciação, e portanto de crescimento da heterogeneidade social, foram, quando bem-sucedidos, acompanhados por uma crescente abstratização, e portanto generalização, dos sistemas simbólicos, seja no plano dos valores, seja no plano normativo. Nas sociedades modernas, aquela abstratização/generalização foi institucionalizada, em especial através da secularização e da construção de sistemas legais autónomos ancorados no princípio do universalismo da norma.
Pode argumentar-se que um sistema simbólico suficientemente abstrato para dizer algo a muitas pessoas diferentes entre si será tão geral que dirá pouco a cada uma dessas pessoas. E, portanto, que a consciência coletiva suportada por um tal sistema simbólico será rarefeita e pouco efetiva nos seus efeitos. Existem, porém, três contra- argumentos importantes que sugerem conclusões diferentes.
Em primeiro lugar, convirá salientar que a maior abstração e generalidade dos sistemas simbólicos permite o desenvolvimento de modalidades de consciência coletiva espacialmente mais extensas e temporalmente mais duradoiras, isto é, de âmbito mais macro. Mesmo que, eventualmente, menos efetivos no plano local, sistemas simbólicos mais abstratos e gerais são mais efetivos no plano macro porque acomodam acréscimos de heterogeneidade em geral, não apenas interindividuais. Ou seja, são compatíveis com mais diferenças entre indivíduos, entre locais e entre momentos em sequências de mudanças. São, por isso, mais efetivos em extensividade do que sistemas simbólicos menos abstratos e gerais, ampliando, por essa via, a escala da consciência coletiva que sustentam, assim contribuindo para viabilizar sistemas sociais também mais amplos.
Em segundo lugar, a efetividade dos sistemas simbólicos não depende apenas do maior grau de especificação dos seus conteúdos semânticos, por relação com a situação, mas também do tipo de adesão que esses conteúdos suscitam. Como referido por vários autores, o processo modernizador de abstratização e generalização dos sistemas simbólicos localizou-se antes de mais no plano dos valores, categorias simbólicas que podemos definir como “noções de forte carga emocional sobre o que é desejável” (Joas, 2005: 4). Sistemas simbólicos ancorados em valores gerais, apesar da sua abstração, ganham efetividade pela adesão emocional que suscitam. O mesmo mecanismo é, aliás, visível num outro tipo particular de sistemas simbólicos modernos, os nacionalismos, os quais, apesar da sua maior generalidade, quando comparados com as etnicidades locais, suportaram alguns dos mais intensos processos de mobilização social e política historicamente conhecidos. E isto porque os mitos, valores e memórias nacionais são potentes geradores de emoções que, sustentando processos de autoidolatria coletiva, manifestam, por isso mesmo, grande efetividade social mesmo em meios sociais de elevada heterogeneidade.
Por fim, não se devem confundir os processos de abstratização e generalização com a substituição de sistemas simbólicos mais específicos por sistemas simbólicos mais abstratos e gerais. Estes últimos coexistem com sistemas mais específicos, não os substituem. Claro que não coexistem, sobretudo, com os sistemas simbólicos mais específicos que os antecederam, mas com novos sistemas simbólicos que, embora específicos, tendem a ser compatíveis com os mais abstratos e gerais.
Esta última observação leva-nos à discussão do segundo erro presente no raciocínio segundo o qual à semelhança de situações tenderia a corresponder mais consciência coletiva, à heterogeneidade de situações menos consciência coletiva. O raciocínio está errado porque ignora que os processos de diferenciação também operam no plano simbólico, o que permite compatibilizar diferentes níveis de abstratização e generalidade. Os subsistemas simbólicos mais abstratos e mais gerais tendem a funcionar como reguladores de sistemas mais específicos. No plano normativo, por exemplo, os subsistemas mais gerais tendem a desenvolver-se como metarregras que moldam as possibilidades de especificação de subsistemas normativos mais concretos e parcelares, bem como as condições da sua compatibilidade (ainda que de forma sempre incompleta). Assim, no plano jurídico, o subsistema das metarregras constitucionais condiciona as possibilidades de especificação dos sistemas de regras mais concretos e especializados como o direito económico, o direito político ou o direito da família, bem como as condições da sua compatibilização mútua. Por outras palavras, eventuais défices de consciência coletiva em sociedades mais heterogéneas terão mais provavelmente origem em défices de especificação dos subsistemas mais gerais e abstratos do que na não efetividade desses mesmos sistemas por serem abstratos.
Aquela efetividade tende a ser diferenciada, e portanto especializada. Os subsistemas simbólicos mais abstratos e gerais, embora menos efetivos em intensividade enquanto suportes diretos da consciência coletiva em geral, são, no entanto, de elevada efetividade enquanto suportes da compatibilização entre os múltiplos subsistemas simbólicos mais concretos e especializados. Significa isto que os subsistemas simbólicos mais abstratos e gerais são sobretudo efetivos no plano das relações entre relações (integração sistémica), enquanto os subsistemas simbólicos mais concretos e especializados, enquanto especificações dos primeiros, são sobretudo efetivos no plano das relações entre pessoas (integração social).
Note-se que o processo de especificação simbólica é possível e tem efeitos integradores numa sociedade de indivíduos porque se concretiza por domínios institucionais, não por categorias de pessoas. Esta dinâmica evidencia, uma vez mais, a relação entre os processos de individualização e os de separação entre pessoas e papéis. No que se refere à especificação dos sistemas simbólicos, a relação é tripla.
Em primeiro lugar, a separação permite, e é reforçada por, uma crescente abstratização na definição social de indivíduo, enquanto toda a pessoa humana independentemente das suas características concretas (como o sexo, a cor da pele, a crença religiosa ou a filiação política). A categoria de indivíduo, como definida nos modernos sistemas normativos, exemplifica bem o tipo de adequação que existe entre heterogeneidade social no plano da variação interindividual e a abstratização integradora no plano simbólico.
Em segundo lugar, sendo o indivíduo definido em termos abstratos, a especificação dos sistemas simbólicos e normativos tem como objeto não pessoas concretas mas atividades concretas, ou melhor, papéis sociais, independentemente de quem os desempenha. É porque a definição de indivíduo é despersonalizada por abstratização que é possível separar pessoas de papéis. E é porque essa separação se faz que é possível despersonalizar os papéis e especificá-los como concretizações de princípios gerais abstratos num domínio de ação específico.
Finalmente, categorias como as de indivíduo abstrato e papéis despersonalizados facilitam a realização de combinações voluntárias e variáveis, por pessoas concretas, de diferentes papéis específicos porque (i) o estatuto de indivíduo não está associado a qualquer papel ou conjunto específico de papéis e (ii) a especificação de um papel é a especificação de uma categoria de atividades, não de uma categoria de pessoas.
Em resumo, os processos de abstratização simbólica que tendem a acompanhar os acréscimos de heterogeneidade social decorrentes da individualização não implicam redução da consciência coletiva. A combinação entre abstratização e especificação, em especial no plano normativo, induz e permite, isso sim, a coexistência de diferentes estratos de consciência coletiva. Por um lado, um estrato mais geral e estável organizado em torno de um número necessariamente reduzido de categorias muito gerais porque muito abstratas. Por outro, um conjunto de estratos mais concretos e portanto mais particulares e contextuais, organizados em torno dos atributos dos papéis desempenhados por pessoas concretas que, quando se movem entre esses papéis, procuram no estrato mais geral e estável os critérios da sua compatibilização.
Passemos, finalmente, à terceira componente da definição do processo histórico de individualização: a exigência social de autoconsciência, pelos indivíduos, da sua autonomia e singularidade. É fácil demonstrar que a exigência de autoconsciência da autonomia pessoal constitui o outro lado da exigência de responsabilização de indivíduos autónomos pelos efeitos dos seus atos sobre terceiros. Neste plano, não há pois qualquer contradição lógica ou prática entre os incrementos da autoconsciência individual e as dinâmicas de integração. Pelo contrário, quer por via do autocontrolo moral, quer da autocontenção por antecipação racional de eventuais sanções, as relações entre autoconsciência da autonomia pessoal e responsabilidade individual tendem a ter efeitos integradores.
Já são menos evidentes, embora não menos efetivas, as relações entre os incrementos da autoconsciência individual da singularidade e as dinâmicas de integração. Nas sociedades modernas, espera-se que os indivíduos tenham consciência de que são, e devem ser, diferentes, pelo menos em parte, de todos os outros. Porém, a constituição dessa diferença obriga a uma comparação sistemática da pessoa com os outros, bem como à atribuição de singularidade ao próprio e a esses outros. Isto é, “Eu” afirmo-me como diferente porque comparando-me com outros comigo relacionados atribuo significado quer aos atributos que me caracterizam como diferente desses outros quer aos atributos que caracterizam esses outros como diferentes de mim. Por outras palavras, a autoconsciência da singularidade pessoal é um processo interativo de reconhecimento mútuo. E, desta forma, com efeitos integradores no plano simbólico e comunicacional.
Estes processos integram as dinâmicas de constituição e desenvolvimento do self, em geral. Nas sociedades modernas são, porém, mais generalizados e radicalizados do que no passado, dado que os incrementos de variabilidade social e individual alargam o campo das comparações possíveis e, portanto, a maior probabilidade de efetiva singularização.
Em síntese, por individualização deve entender-se o processo social que, nas sociedades modernas, conduziu à emergência e institucionalização:

a) de sistemas de normas e valores que promovem a autonomia e singularidade das pessoas em geral, não apenas dos membros de uma elite; b) da exigência social de autoconsciência, pelos indivíduos, da sua autonomia e singularidade, através de processos interativos de reconhecimento mútuo; c) de sistemas relacionais congruentes com a maior e mais generalizada autonomia, singularidade e autoconsciência individuais.

A individualização não constitui uma tendência desintegradora, mas implica novos tipos e mecanismos de integração, tanto no plano relacional dos laços coletivos como no plano simbólico da consciência coletiva. Mais concretamente:

d) no plano relacional, implica o desenvolvimento de sistemas de interseção dos círculos sociais de pertença individual em função de escolhas pessoais tendencialmente livres; e) no plano simbólico, implica o desenvolvimento de sistemas de valores e normas mais abstratos e gerais, bem como a sua especificação em subsistemas de valores e normas mais concretos porque institucionalmente especializados.

A individualização não implica pois, nem lógica nem empiricamente, o isolamento pessoal, antes novos modos de organização das pertenças grupais e dos sistemas simbólicos partilhados. Quando o desenvolvimento desses novos modos de organização é bem-sucedido, tanto no plano relacional como no simbólico, é possível a integração social e sistémica em sociedades mais diferenciadas e individualizadas. Aos modos de integração assim estabelecidos estão, no entanto, associadas tensões específicas, pelo que a sua reprodução constitui um processo aberto, isto é, sem solução predefinida.

3. Integração social

Esclarecer o problema da integração é explicar como se combinam, de modo ordenado, as partes constitutivas de uma sociedade e, portanto, como se organizam as relações sociais que concretizam essas combinações, sejam as relações entre atos de pessoas singulares ou coletivas, sejam as relações de interdependência sistémica entre instituições e hierarquias, ou as suas componentes. Usando a terminologia proposta por Lockwwod (1964), o problema da integração pode ser decomposto no da integração social (das “pessoas”) e no da integração sistémica (das “partes”).
O contrário de integração é, simplesmente, desintegração, ou seja, a separação ou tendência para a separação entre as partes que compõem um qualquer todo social. Integração e desintegração que raramente variam em termos holistas e dicotómicos (integração total versus desintegração total). A situação mais frequente é que, numa mesma unidade social, coexistam ou se combinem diferentes graus de integração nos vários planos relacionais.
Quando esta definição do conceito de integração e dos seus contrários está menos presente, é frequente a emergência de equívocos, em particular a ideia de que integração e consenso seriam a mesma coisa, bem como de que o contrário de integração seria o conflito. Porém, nem o consenso é o único ou o mais corrente fator de integração, nem o conflito é, necessariamente, causador de desintegração. O consenso, enquanto acordo generalizado, é um resultado difícil e moroso de construir pelas partes envolvidas, pelo que a vida social seria improvável se dele dependesse, sobretudo em sociedades de maior escala, compostas por indivíduos autónomos e singulares. Em regra, a integração social requer, quando muito, algum consenso sobre valores fundamentais. Até porque a ausência de consenso não conduz, necessariamente, ao conflito, apenas à persistência de desacordos e divergências. A transformação desses desacordos e divergências em conflito requer condições adicionais tanto no plano organizacional como ideacional, bem como o entendimento de que os custos do conflito superam os custos da ausência de consenso ou são por estes justificados. Neste quadro, mais importante do que o consenso substantivo sobre uma qualquer questão social, enquanto fator de integração, é a existência de consenso sobre os procedimentos de regulação dos desacordos e divergências sobre essa mesma questão.
No dia-a-dia, a integração social requer alguma consciência coletiva, isto é, alguma partilha de orientações (normas, valores e outras ideias). Porém, essa partilha não necessita de ser absoluta nem generalizada, isto é, não requer consenso enquanto acordo generalizado. Com frequência, são as articulações variáveis entre consenso e desacordo, ou mesmo conflito, que podem ser mais ou menos integradoras ou desintegradoras, não o consenso e o desacordo, ou até o conflito, em si mesmos. Alguns exemplos ajudarão a perceber o argumento. É possível a existência de dinâmicas de integração social nos seguintes tipos de articulação entre consenso e desacordo ou conflito:

— consenso sobre fins, mas divergência ou conflito de interesses sobre o modo de prosseguir esses fins; — consenso sobre a norma geral, mas desacordo ou conflito sobre a especificação da norma num domínio específico; — consenso sobre a norma específica, mas divergência ou conflito sobre a interpretação dos seus efeitos.

Em todos estes exemplos, a possibilidade de compatibilizar consenso com desacordo, ou mesmo com conflito, sem efeitos necessariamente desintegradores, resulta da partilha de uma orientação de ordem mais geral, porque mais abstrata, que não é colocada em causa por todos os desacordos, divergências e conflitos em planos mais concretos. Ou seja, os processos de abstratização dos sistemas simbólicos referidos na secção anterior permitem localizar as exigências de consenso, viabilizando, assim, processos de integração social alargados compatíveis com a persistência de áreas e situações de desacordo, divergência e conflito.
A relação entre consenso e integração é ainda mais complexa, sendo possível argumentar que os efeitos integradores de qualquer processo social, e portanto também do consenso, não são lineares, formando antes uma curva em “U” invertido. Esta ideia consta da teoria implícita sobre a integração social apresentada por Durkheim no seu estudo sobre O Suicídio (1897). Na teoria, são especificados dois mecanismos básicos de integração: a pertença a grupos e a consciência coletiva. Porém, de acordo com a teoria, os efeitos desses mecanismos apenas seriam integradores quando tivessem uma intensidade média. Dito de outro modo, a pertença a grupos e a consciência coletiva teriam efeitos desintegradores quer quando fracas quer quando muito intensas: no primeiro caso, por défice de enquadramento do indivíduo; no segundo, por excesso de pressão coletiva sobre o indivíduo.
De facto, pelo menos nas sociedades modernas, enquanto sociedades de indivíduos, a integração social seria impossível se requeresse um consenso interindividual em todos os domínios. Enquanto propriedades da individualização, a autonomia e singularidades individuais opõem-se, lógica e empiricamente, à similitude de escolhas e atos que um tal requisito de consenso implicaria. Porém, a integração, isto é, a combinação dos atos e relações entre indivíduos autónomos e singulares requer um consenso mínimo sobre alguns valores, normas e outras ideias de elevado grau de generalidade e abstração, bem como sobre os procedimentos formais de regulação dos desacordos e divergências resultantes da autonomia e da singularidade. Ou seja, numa sociedade de indivíduos, a contribuição do consenso para a integração depende não só da sua intensidade, mas também da sua especificidade.
Se o consenso não é, forçosamente, um requisito geral da integração, também o conflito não é, necessariamente, causador de desintegração. Como argumentaram Simmel (1908) e Coser (1956), os conflitos podem ter múltiplas consequências integradoras. Em primeiro lugar, os conflitos facilitam a formação de grupos e, por essa via, a constituição de um dos principais mecanismos de integração social. Em segundo lugar, os conflitos podem reforçar, em cada uma das partes em oposição, os sentimentos de pertença coletiva dos indivíduos, bem como a procura e aceitação de mecanismos de cooperação e coordenação interindividual constitutivos de processos de ação coletiva. Em terceiro lugar, os conflitos permitem, com frequência, integrar diferentes grupos através de processos de aliança, combinando, desta forma, não apenas relações entre pessoas como relações entre relações entre pessoas, neste caso, os conjuntos de relações interindividuais constitutivos dos grupos aliados. Finalmente, conflitos em torno de regras, em particular de tipo normativo, podem levar à emergência de novas regras de aceitação mais generalizada e, portanto, com uma escala de integração mais ampla do que as preexistentes.
Tanto Simmel como Coser reconheciam, no entanto, que um grau muito elevado de conflitualidade eliminava estas consequências integradoras. Quando o conflito visa a eliminação do oponente tem por efeito a destruição em vez da criação de grupos. Quando o conflito se radicaliza, tende a diminuir a tolerância à dissensão no interior do grupo e, portanto, a aumentar a pressão coletiva sobre o indivíduo, com a consequente redução da sua autonomia e singularidade. Nestes dois casos, revelam-se, uma vez mais, as condições de equilíbrio já identificadas por Durkheim no funcionamento dos mecanismos de integração. Finalmente, quando não existem ou são frágeis os mecanismos de institucionalização dos conflitos, mais difícil é a institucionalização dos resultados destes e, portanto, mais reduzidos são os seus contributos para o desenvolvimento de quadros normativos mais consensuais. Ou seja, e como foi já atrás referido, os efeitos integradores do conflito presumem a existência de articulações entre consenso e oposição operando a diferentes níveis da organização social.
Em rigor, consenso e conflito têm uma relação indireta com a integração social. Os mecanismos através dos quais aqueles processos têm efeitos sobre a integração são a pertença a grupos e a partilha de um núcleo de normas, valores e outras ideias (que produz a consciência coletiva de Durkheim, num sentido um pouco mais restrito). Não são, sequer, os únicos processos com efeitos através destes mecanismos. A organização das relações interindividuais requer, também, aprendizagens sociais que, constituindo e alargando o fundo de conhecimentos comuns dos membros de uma sociedade, suportem a interação social no plano comunicacional, tornando possível a resolução de dilemas interpretativos e o interreconhecimento mútuo naquele plano, bem como a fixação dos seus resultados. Socialização, interpretação e tipificação são alguns dos principais processos com efeitos integradores nestes domínios.
Por fim, a integração social é facilitada pela parametrização parcial das relações entre pessoas, seja no plano instrumental, através da constituição de rotinas relacionais, seja no plano comunicacional, através da constituição de rituais de interação. Rotinas e rituais contribuem para ordenar as relações entre pessoas porque facilitam a ordenação das representações que as pessoas constroem sobre essas relações, dando-lhes a estabilidade de algo conhecido e familiar. A integração das relações entre as partes é também a integração mental que os indivíduos fazem das representações dessas relações. Rotinas e rituais são, ainda, formas económicas de relacionamento social, porque reduzem a necessidade de cálculo, interpretação e envolvimento emocional em cada interação, o que tem, por sua vez, dois efeitos integradores. Por um lado, o aumento do número de interações em que cada indivíduo se pode envolver, isto é, do número de relações possíveis entre as partes. Por outro, a constituição, pelos indivíduos, de reservas de tempo, energia motivacional e esforço para a construção e o exercício da sua autonomia e singularidade, isto é, para compatibilizar integração ou, mais rigorosamente, pertença coletiva, com individualização.
Este último ponto remete para o cerne da questão colocada por Durkheim. Como se viu na secção anterior, a individualização supõe integração, ou melhor, um tipo particular de integração. Ora, muitos dos processos que promovem a integração, pelos efeitos que têm quer no plano relacional da pertença a grupos quer no plano simbólico do conhecimento comum (consciência coletiva), podem também conduzir a reduções da autonomia e singularidade que suportam a integração. A questão pode, pois, ser subdividida em duas:

— como compatibilizar pertença grupal com autonomia individual? — como compatibilizar conhecimento comum (consciência coletiva) com singularidade individual?

Em termos gerais, a resposta a estas duas perguntas já foi dada na secção anterior. Compatibilizar pertença grupal com autonomia individual requer o desenvolvimento de sistemas de interseção dos círculos sociais de pertença individual. Compatibilizar conhecimento comum (consciência coletiva) com singularidade individual requer o desenvolvimento de sistemas de valores e normas mais abstratos e gerais, bem como a sua especificação por domínios de especialização institucional.
A avaliação dos processos que têm vindo a ser discutidos, bem como de outros com impactos sobre as dinâmicas da integração social, deve, pois, ser feita questionando os efeitos sobre aqueles dois requisitos. Por exemplo, défices de socialização poderão traduzir-se em défices de conhecimento comum com consequências quer no plano simbólico, por não identificação do indivíduo com a coletividade quer no plano relacional, por redução das competências individuais de interação, com prejuízo para a multiplicação da sua inclusão grupal. A sobressocialização individual, por seu lado, pode ser vivida como pressão conformista redutora das expectativas de singularidade e autonomia, com prejuízo para a integração se induzir, em resposta, tendências para a desidentificação com a coletividade e o abandono do grupo.
É possível fazer um raciocínio semelhante sobre a relação entre ritualização e integração. Défices de ritualização dificultam a multiplicação das filiações grupais por requererem um enorme investimento, em cada encontro, de recursos finitos como o tempo, o esforço e a energia emocional. Dificultam, também, o acionamento dos dispositivos simbólicos adequados em cada domínio de atividade por défice de sinalização do domínio e das suas fronteiras. Em contrapartida, a sobrerritualização cria barreiras à entrada no plano das filiações grupais e reforça as tendências à sobreposição em lugar da interseção dos círculos de pertença. Envolvendo os rituais a fixação de um significado específico, a sobrerritualização dificulta ainda o desenvolvimento de símbolos mais abstratos e gerais.
Resumindo os argumentos e definições desta secção:

a1) por integração entende-se a combinação, de modo ordenado, entre as partes constitutivas de uma sociedade (nomeadamente, pessoas, grupos, instituições e hierarquias); a2) o contrário de integração é desintegração, ou seja, a separação ou tendência para a separação entre as partes que compõem um qualquer todo social; b1)por integração social entende-se a constituição dos laços e símbolos de pertença coletiva nas relações entre pessoas e conjuntos de pessoas; b2)os principais mecanismos de integração social são a pertença a grupos, no plano relacional, e o desenvolvimento de conhecimento comum, no plano simbólico; c1) nas sociedades modernas, o problema da integração social é o da compatibilização entre pertença coletiva, por um lado, e autonomia e singularidade individuais, por outro; c2) nas sociedades modernas, a integração social é mais provável quando a pertença a grupos se faz por interseção dos círculos sociais de pertença individual e o desenvolvimento do conhecimento comum por abstratização simbólica e especificação institucional; d1) a integração social é um estado de equilíbrio dinâmico entre pressões opostas presentes no funcionamento de cada mecanismo e processo de integração; d2) a integração social não requer nem o consenso nem a ausência do conflito, mas não é compatível com a total ausência de conhecimento comum nem com todo o tipo e grau de conflitualidade.

4. Integração sistémica

Clarificado o que se entende por integração social e refutados alguns dos equívocos habitualmente associados ao conceito, examinemos, agora, o domínio da integração sistémica. Na definição mais simples possível, integração sistémica é o modo de combinação dos subsistemas sociais constitutivos de um mesmo sistema social. Em rigor, porém, o problema da integração sistémica é específico das sociedades mais diferenciadas, isto é, das sociedades em que a divisão dos subsistemas que a constituem se faz predominantemente por especialização, estrutural e funcional.
A diferença entre as manifestações do problema da integração nas sociedades modernas e nos antigos impérios agrários exemplifica as consequências desta especificidade. Naqueles impérios, a unificação passava pela integração de unidades sociopolíticas que, em regra, tinham uma grande autonomia interna, isto é, que se distinguiam entre si por segmentação, não por especialização. Daqui resultavam duas consequências fundamentais. Em primeiro lugar, o problema da integração sistémica estava centrado no problema do controlo político central das subunidades, isto é, na sua dominação externa. Em segundo lugar, o resultado da integração assim conseguido tinha um fraco grau de sistematicidade. Na prática, era como se o sistema integrado, o império, compreendesse como unidades constitutivas os centros de poder das subunidades sociopolíticas, não as subunidades em si.
Nas sociedades modernas, o problema da integração das partes coloca-se tanto em termos extensivos como intensivos. Nestas sociedades, as partes e os problemas da sua integração têm uma dupla origem. Por um lado, o desenvolvimento do nível sistémico da ordem social, por diferenciação estrutural. Por outro, a multiplicação, a esse nível, de subsistemas institucionalmente especializados, por diferenciação funcional. Tanto o desenvolvimento do nível sistémico como a integração dos subsistemas institucionalmente especializados requerem mais do que controlo político central. Requerem, antes de mais, desenvolvimentos de sistematicidades, isto é, de interdependências ordenadas que constituam o nível sistémico da ordem social e suportem a organização das suas partes (Buckley, 1967: 68-122).
Historicamente, aquelas sistematicidades foram conseguidas, em especial, através do desenvolvimento e uso crescentemente generalizado de dispositivos relacionais de descontextualização, isto é, de dispositivos com propriedades mais abstratas do que as partes que permitem relacionar (e reencontramos, aqui, a relação entre diferenciação e abstratização já tratada na secção anterior). A escrita e o dinheiro foram dois dos dispositivos de descontextualização mais importantes, sobretudo nas sociedades modernas. O seu desenvolvimento e uso geraram, e geram, efeitos de sistematicidade, e portanto de integração das partes, por várias razões.
Em primeiro lugar, porque permitem despersonalizar as relações sociais e, assim, criar relações de interdependência para além das relações de interação, isto é, criar relações sistémicas por diferenciação estrutural. Quando a leitura de um texto influencia alguém, essa influência não é uma interação com o autor do texto. Quando essa influência envolve relações entre o texto referido e a influência de outros textos lidos anteriormente, essas relações são lógicas, e eventualmente sistémicas, mas não são de interação. Em resumo, a escrita permite potenciar as consequências dos atos para além do espaço e do tempo em que estes ocorrem, bem como a emergência de relações despersonalizadas entre essas consequências. Dito de outro modo, os “principais conteúdos simbólicos de uma cultura podem, com a escrita, ser corporizados de formas que são independentes dos contextos concretos de interação” (Parsons, 1966:48-9).
O uso do dinheiro tem efeitos do mesmo tipo. O dinheiro é um meio de troca generalizada, independente do conteúdo do que é trocado e dos atributos de quem troca. Permite combinar resultados de atos, por exemplo bens, sem qualquer interação entre os autores desses atos, no caso, os produtores dos referidos bens. Permite destacar uma propriedade geral de todos os objetos de troca monetarizada, o preço, e combinar atos e resultados de atos apenas na base dessa propriedade, abstrata porque independente da utilidade do que é trocado. “Se o valor económico dos objetos é constituído pela sua relação mútua de troca, então o dinheiro é a expressão autónoma dessa relação. O dinheiro representa o valor abstracto. A partir da relação económica, isto é, a troca de objetos, o facto dessa relação é extraído e adquire, em contraste com os objetos, uma existência conceptual referenciada por um símbolo visível. O dinheiro é uma realização específica do que é comum aos objetos económicos” (Simmel, 1907: 120). Em resumo, a escrita e o dinheiro permitem estabelecer relações despersonalizadas de textos com textos ou de bens com bens, isto é, relações despersonalizadas entre resultados de atos para além das relações de interação.
Em segundo lugar, escrita e dinheiro são dois dos dispositivos que sustentam a constituição do nível macro da ordem social porque viabilizam o alongamento das relações sociais, no espaço, no tempo e entre um maior número de indivíduos e coletividades. A escrita, porque ao registar o resultado de um ato comunicacional, permite potenciar as consequências desses atos para além do espaço e do tempo da sua ocorrência. O registo, podendo ser lido por outros não diretamente envolvidos no ato comunicacional inicial, prolonga no tempo e no espaço os seus efeitos comunicacionais. O dinheiro começa por ser também um registo, com efeitos comunicacionais descontextualizados no plano das trocas. Através de cadeias de interação, permite ainda alargar o espaço de circulação de bens e serviços e, assim, criar cadeias de relações entre mais indivíduos num espaço mais vasto.
Em terceiro lugar, escrita e dinheiro, ligando o passado ao presente, são dois dos dispositivos que sustentam o que podemos designar por efeitos de estrutura. Comte identificava esses efeitos como uma das especificidades da ordem social quando assinalava a “influência recíproca dos indivíduos, singularmente complicada na espécie humana pela influência de cada geração na geração seguinte” (Comte, 1830-42: 52, itálicos acrescentados). Efeitos de estrutura, e não de interação, porque as interdependências emergentes do uso da escrita e do dinheiro afetam as possibilidades da ação dos agentes antes mesmo de estes começarem a agir, enquanto “condições diretamente herdadas e transmitidas pelo passado” (Marx, 1852: 13).
O uso da escrita tem, ainda, efeitos de sistematicidade próprios. A escrita permite fixar enunciados e relações entre enunciados com consistência lógica superior à que seria possível obter com a combinação das memórias dos agentes sociais, o que potencia os efeitos de ordenação dos atos por esses enunciados.
Também o uso do dinheiro tem efeitos específicos de sistematicidade, o mais importante dos quais será o seu potencial para o estabelecimento de equivalências estruturais. Isto é, o uso do dinheiro, sobretudo em sociedades com economias de mercado desenvolvidas, permite definir propriedades gerais comuns a recursos com utilidades diferentes e, portanto, gerar interdependências entre diferentes domínios institucionais sempre que está envolvida uma qualquer distribuição de recursos.
Os usos da escrita e do dinheiro, enquanto dispositivos relacionais de descontextualização, sustentaram pois, e facilitaram, a construção de conjuntos alargados de relações despersonalizadas no plano simbólico (a escrita) e no plano da troca (o dinheiro), sobretudo em sociedades em que aqueles usos se propagaram ao conjunto da população. Nas sociedades modernas, essa propagação passou, em particular, pela escolarização de massas e pela mercadorização generalizada da economia.
No plano simbólico, o uso da escrita permitiu e facilitou, em particular, o desenvolvimento de conjuntos de relações entre normas de crescente complexidade e com variados graus de abstração, pois permitiu e facilitou a codificação e registo de atos de regulação prescritiva das atividades humanas. A esses conjuntos de relações entre normas dá-se, habitualmente, o nome de estruturas normativas pelos efeitos de ordenação que têm no plano da regulação, prática e reflexiva, das relações entre pessoas individuais ou coletivas. Note-se que constituem a estrutura normativa as relações entre normas, não as relações entre pessoas reguladas por essas normas. Estas últimas são parte do domínio da integração social. A distinção é analítica e empiricamente fundamental, pois as relações entre normas envolvem problemas específicos de compatibilidade, nomeadamente de coerência lógica, distintos dos problemas práticos da integração social neste plano, como sejam os do conformismo ou da dissensão.
No plano instrumental das trocas, o uso do dinheiro, por seu lado, permitiu e facilitou, em particular, o desenvolvimento de conjuntos de relações entre distribuições de recursos, pois permitiu e facilitou o estabelecimento de equivalências estruturais entre diferentes domínios da atividade humana. Esses conjuntos de relações entre distribuições de recursos são, geralmente, designados por estruturas distributivas pelos efeitos de ordenação que têm das oportunidades sociais. Note-se que, também aqui, e pelas mesmas razões, constituem a estrutura distributiva as relações entre distribuições de recursos, não as relações entre pessoas condicionadas por essas distribuições. As distribuições de recursos envolvem problemas específicos de compatibilidade, nomeadamente de igualdade, independentemente do modo como igualdade ou desigualdade são vividas pelas pessoas por elas afetadas, por exemplo, pacificamente ou conflitualmente.
Os problemas da integração sistémica começam, pois, por se manifestar enquanto problemas de combinação das partes constitutivas das estruturas sociais. No exemplo, as partes da estrutura normativa, as normas, ou as partes da estrutura distributiva, as distribuições de recursos. Prolongam-se, ainda neste plano de análise, nas relações entre estruturas. No exemplo, o modo como os equilíbrios (ou desequilíbrios) nas distribuições de recursos são vividos pelas pessoas depende, em grande medida, do modo como estas são normativamente reguladas (em especial, em termos de justiça).
Estruturas normativas e distributivas não correspondem a subsistemas sociais especializados, pois todo o subsistema tem componentes normativas e distributivas. A especialização funcional cruza-se, pois, com a diferenciação estrutural. Os problemas de integração sistémica dos resultados da especialização são os problemas que resultam do caráter problemático da combinação de subsistemas sociais funcionalmente especializados (e, portanto, diferentes) de papéis, instituições, lugares e hierarquias. Para essa integração contribuem dois mecanismos fundamentais. O primeiro é o das dependências recíprocas que resultam das combinações repetidas das consequências da ação num ambiente estruturalmente ordenado. A segunda é a das interdependências reflexivamente induzidas pela combinação coordenada das relações entre subsistemas, seja através da regulação dessas relações, seja através da sua administração organizacional num ambiente regulado.
Nas sociedades modernas, estes problemas da integração sistémica manifestam- se com particular incidência nas relações entre instituições, enquanto domínios especializados de organização social. São problemáticas, por exemplo, as compatibilizações entre as lógicas institucionais da igualdade democrática e da desigualdade do mercado, da produtividade económica e da cooperação familiar, ou da representatividade eletiva e da tecnocracia. Eventualmente, a compatibilização entre algumas destas lógicas pode fazer-se por referência a um plano mais abstrato de regras sociais. Esta solução, porém, tem limites, dado que há situações de incomensurabilidade sem solução por via da abstratização, como parece ser o caso, por exemplo, das incompatibilidades, nas sociedades modernas, entre as lógicas da democracia e da tecnocracia (Burns e Flam, 1987: 348-65).
Em sociedades diferenciadas de grande porte, os problemas da integração sistémica são endémicos. A diferenciação e o alongamento dos sistemas sociais traduzem-se em incrementos constantes da variedade sistémica e, por isso, na contínua emergência de problemas de integração. Para tal, contribui ainda o facto de a resolução dos problemas de integração sistémica não decorrer dos requisitos funcionais de reprodução da sociedade em que se manifestam. Não é por a eventual não resolução de um problema específico de integração sistémica numa determinada sociedade poder conduzir à desintegração dessa sociedade, e portanto à sua não reprodução, que esse problema será resolvido.
Embora possa decorrer de reajustamentos ao nível sistémico por agregação de microrreajustamentos não intencionais nos processos de interação, em regra, a resolução dos problemas de integração sistémica passa, sobretudo nas sociedades modernas, pela interpretação destes como dilemas por agentes com capacidade para agir estrategicamente sobre eles. Ou seja, por agentes com as competências, a informação e os recursos necessários à identificação e resolução daqueles problemas. Com frequência, essa resolução implica confronto de interesses, passando, então, por processos de negociação e conflito visando a manutenção, adaptação ou transformação das relações sistémicas em causa. Em qualquer caso, seja por erro de diagnóstico ou de desempenho, seja pela impossibilidade de prever todas as consequência da ação, seja pelos compromissos negociais efetuados, as soluções encontradas não só serão sempre temporárias, como poderão contribuir para a emergência de novos problemas de integração sistémica, em especial sempre que se traduzirem em incrementos da variedade sistémica.
Esta articulação entre integração sistémica e ação estratégica pode ter vários resultados: a persistência do problema e portanto das tensões que lhe estão associadas, a sua resolução por reajustamento sistémico, a transformação da ordem social ou, no limite, o colapso do sistema social em causa. Na história das sociedades humanas encontramos exemplos de todas estas possibilidades. As sociedades modernas têm, no entanto, características particulares. Em primeiro lugar, são sociedades cuja dinâmica incorporou a mudança como mecanismo corrente de reprodução, o que significa mais possibilidades de reajustamento sistémico sem transformação global da ordem social. Em segundo lugar, são sociedades mais reflexivamente organizadas do que as que a antecederam, e onde portanto existem mais oportunidades e meios de identificação dos problemas de integração e das suas consequências.

Resumindo os contributos desta secção:

a1) por integração sistémica entende-se a combinação das partes de um mesmo sistema social através do desenvolvimento de sistematicidade, isto é, de interdependências entre essas partes; a2) a multiplicação das partes dos sistemas sociais faz-se quer no plano estrutural quer no plano funcional; b1) os principais mecanismos de integração sistémica no plano estrutural são os dispositivos relacionais de descontextualização (como a escrita e o dinheiro, entre outros), cujo uso permite criar e ampliar as relações de interdependência estrutural para além das relações de interação; b2) os principais mecanismos de integração sistémica no plano da especialização funcional são a dependência recíproca entre resultados da ação num ambiente estruturalmente ordenado e a coordenação das partes por regulação normativa ou por administração organizacional; c1) os problemas de integração sistémica são problemas de compatibilidade entre as propriedades das partes estrutural e funcionalmente diferenciadas; c2) em sociedades diferenciadas de grande porte, os problemas da integração sistémica são endémicos; d1) a resolução dos problemas de integração sistémica requer a interpretação destes como dilemas por agentes com capacidade para agir estrategicamente sobre eles; d2) a ação estratégica visando a resolução de problemas de integração sistémica pode ter como resultados a persistência dos problemas, a sua resolução por reajustamento sistémico, a transformação da ordem social ou o colapso do sistema social em causa.

A distinção entre os domínios social e sistémico da integração não é apenas analítica. Existem sociedades porque existem relações entre pessoas, mas só existem sociedades em que a maior parte das pessoas não tem entre si qualquer relação de interação porque existem relações sistémicas para além da interação. Relações sistémicas que, no entanto, só são reproduzidas ou transformadas através das ações e relações de interação por elas reguladas e condicionadas.

 

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Notas

1Rui Pena Pires é professor no Departamento de Sociologia do Instituto Universitário de Lisboa (ISCTEIUL) e investigador no CIES-IUL, Lisboa, Portugal. E-mail: rpenapires@iscte.pt

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