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Nascer e Crescer

versão impressa ISSN 0872-0754versão On-line ISSN 2183-9417

Nascer e Crescer vol.27 no.1 Porto mar. 2018

 

CASE REPORTS | CASOS CLÍNICOS

 

Doença de Addison – a dificuldade de diagnóstico

 

Addison’s disease – the difficulty of diagnosis

 

 

Clara PretoI; Joana CorreiaI; Marina PinheiroI; Fábio BarrosoI; Sara LeiteI; Alexandre FernandesI; Helena CardosoI; Teresa BorgesI

I Department of Pediatrics, Centro Materno Infantil do Norte, Centro Hospitalar do Porto. 4050-651 Porto, Portugal. clarampreto@hotmail.com; jbcorreia@sapo.pt; marinapinheiro25@gmail.com; fabiodmb87@gmail.com; sara.s.leite@gmail.com; xanofernandes@gmail.com; cardosomariahelena@gmail.com; emaildateresa@gmail.com

Correspondence to

 

 


RESUMO

Introdução: A insuficiência supra-renal primária é uma patologia rara, sobretudo na idade pediátrica.

Caso clínico: Apresenta-se o caso de um adolescente com queixas de astenia com quatro meses de evolução, motivando repetidas idas ao serviço de urgência no último mês por sintomas gastrointestinais e perda ponderal de dez quilogramas. À admissão encontrava-se com razoável estado geral, hidratado, sem hiperpigmentação cutânea. O estudo efetuado revelou hiponatrémia, aumento dos níveis de corticotrofina com níveis de cortisol normais, aumento dos níveis de renina, diminuição dos níveis de aldosterona e presença de anticorpos anti-suprarrenal, permitindo fazer o diagnóstico de insuficiência suprarrenal primária de etiologia autoimune. Iniciou terapêutica com hidrocortisona e fludrocortisona, com resposta favorável.

Discussão/conclusões: O diagnóstico de doença de Addison requer um elevado grau de suspeição dada a inespecifidade da sintomatologia. Esta patologia cursa, frequentemente, com sintomas gastrointestinais. Assim, perante um quadro de hiponatrémia, acompanhado de sintomas constitucionais e gastrointestinais, devemos sempre considerar este diagnóstico.

Palavras-chave: Auto-imune, doença de Addison, insuficiência suprarrenal, sintomas gastro-intestinais


ABSTRACT

Introduction:  Primary adrenal insufficiency is a rare disease, especially in pediatric age.

Case report: We report the case of a teenager with astenia with four months’ evolution, causing repeated visits to the emergency department during the previous month due gastrointestinal symptoms and a ten kilograms weight loss. In admission the patient had a reasonable general condition, hydrated and without cutaneous hyperpigmentation. Laboratory results showed hyponatremia, increased levels of corticotropin with normal cortisol levels, increased levels of renin with decreased aldosterone levels and presence of antissuprarrenal antibodies, allowing the diagnosis of autoimmune primary adrenal insufficiency. The boy started treatment with hydrocortisone and fludrocortisone with favorable response.

Discussion/conclusions: The diagnosis of Addison’s disease requires a high degree of suspicion due its unspecific symptomatology. This disease often presents gastrointestinal symptoms. Thus, towards a patient with hyponatremia accompanied by constitutional and gastrointestinal symptoms, we must always consider this diagnosis.

Keywords: Addison’s disease, adrenal insufficiency, autoimmune, gastrointestinal symptoms


 

 

INTRODUÇÃO

A insuficiência suprarrenal (ISR) é uma doença potencialmente fatal, que se carateriza por secreção inadequada de hormonas adrenocorticoides.1,2 Pode classificar-se em primária, secundária ou terciária. Na primária a causa reside na própria glândula, na secundária a causa é hipofisária por défice de corticotrofina (ACTH) ou anomalia do seu recetor, e na terciária é hipotalâmica por défice de secreção da hormona libertadora de corticotrofina.3 Dado que a aldosterona não é dependente de estimulação hipotalâmica ou hipofisária, a ISR secundária e terciária não cursa com défice de mineralocorticóides, ao contrário do que acontece na primária.2,3

A ISR primária ou doença de Addison é uma patologia rara, apresentando uma incidência de 0,8 casos por 100.000 habitantes.3 Apesar da etiologia autoimune ser responsável pela grande maioria dos casos nos adultos, nas crianças a hiperplasia suprarrenal congénita constitui a etiologia mais frequente.2 Num estudo retrospetivo de 20 anos, efetuado em Montreal em 2005, que envolveu 103 crianças com ISR, a causa mais frequente de ISR primária foi a hiperplasia adrenal congénita (72%), seguindo-se a etiologia auto-imune (13%).4 Nesse mesmo estudo a adrenoleucodistrofia constituiu a terceira causa mais frequente de ISR primária nos rapazes (8%).4 Na adrenoleucodistrofia a ISR pode preceder os sintomas neurológicos anos ou décadas, ou pode caraterizar-se apenas por ISR isolada.2,5 Outras causas de ISR que devemos considerar, principalmente quando os auto-anticorpos são negativos, são as doenças infeciosas, nomeadamente a tuberculose e os tumores.2

A ISR pode-se apresentar de forma aguda ou insidiosa. A forma aguda pode ser rapidamente fatal se não for identificada e tratada atempadamente.2,3 Os sintomas são frequentemente inespecíficos, caraterizando-se por astenia, anorexia, perda ponderal, mialgia, dor abdominal e vómitos intermitentes e surgem quando pelo menos 90% do tecido suprarrenal está destruído.3 A hiperpigmentação cutânea, aspeto típico e específico da ISR primária, está quase sempre presente.3 A hiponatrémia, com ou sem hipercaliémia associada, afeta 90% dos indivíduos com ISR.3

Aproximadamente metade dos pacientes com ISR autoimune apresenta também destruição autoimune de outras glândulas.1,3 A síndrome poliglandular autoimune do tipo I é pouco frequente, mas apresenta-se por vezes em crianças, associando pelo menos duas características das três seguintes: ISR, candidíase mucocutânea crónica e hipoparatiroidismo.6 A síndrome tipo II, mais frequente que a primeira, manifesta-se geralmente na idade adulta e carateriza-se pela associação de ISR a doença tiroideia e/ou diabetes mellitus.1,6

Apresentamos o caso de um adolescente com doença de Addison, que se manifestou por sintomatologia inespecífica (sintomas gastrointestinais, perda ponderal e astenia) e hiponatrémia, realçando a importância de um elevado grau de suspeição para o diagnóstico.

 

DESCRIÇÃO DO CASO

Adolescente do sexo masculino, de 15 anos, caucasiano. Sem doenças heredofamiliares conhecidas ou antecedentes patológicos relevantes.

História de astenia com quatro meses de evolução. No mês anterior ao internamento recorreu três vezes ao serviço de urgência (SU) por dor abdominal, náuseas e vómitos (tabela 1). Recorreu de novo ao SU, no episódio que motivou o internamento, por dor abdominal generalizada associada a anorexia e náuseas. Sem vómitos, diarreia ou febre. História de perda ponderal de dez quilos no último mês. Sem história recente de consumo de fármacos.

À admissão no SU apresentava razoável estado geral, pele e mucosas coradas e hidratadas, sem hiperpigmentação cutânea e hemodinamicamente estável (FC 108bpm, TA 112/57mmHg, sem hipotensão ortostática). Apresentava um peso de 73Kg, estatura de 171,1cm, índice de massa corporal de 25Kg/m2 (P85-97) e encontrava-se no estadio V de Tanner. Manifestava dor à palpação abdominal profunda nos hipocôndrios, sem defesa. Sem outras alterações ao exame objetivo.

O estudo analítico inicial revelou hiponatrémia (126meq/l) e hipoclorémia (92meq/l), com potássio normal (K 4,1meq/l), hemograma e função renal sem alterações, normoglicémia (91mg/dl) e proteína C reativa de 5,7mg/l.

Iniciou fluidoterapia endovenosa, com correção da hiponatrémia em 12 horas.

Da investigação efetuada a realçar: cortisol 7,7ug/dl (6,2-19,4), ACTH 1489pg/ml (9-52), renina 644,3pg/ml (1,6-47,2), aldosterona 17pg/ml (40-310).

A insuficiência supra-renal primária foi confirmada por prova de estimulação com ACTH através da administração, de modo endovenoso, de 250 µg de tetracosatido (ACTH sintético) e doseamento de cortisol endovenoso aos 0 e aos 60 minutos (cortisol: tempo 0 minutos - 6,4 µg /dl / tempo 60 minutos – 6,4 µg /dl).

Iniciou hidrocortisona oral na dose oito mg/m2, dividida em três tomas diárias e fludrocortisona na dose de 100 µg/dia, dose única. Verificou-se melhoria clínica progressiva com resolução completa dos sintomas e normalização do ionograma cerca de três semanas após início da terapêutica e aumento gradual do peso com recuperação dos 10 Kg perdidos em um mês e meio.

Realizada investigação para identificação da etiologia da ISR: ecografia e tomografia computorizada abdominal sem alterações, prova de Mantoux negativa, pesquisa de anticorpos antissuprarrenal positiva (1/640).

Apresentava função tiroideia normal. O doseamento dos anticorpos antitiroideus, antiparatiroideus, antifactor intrínseco, anticélula parietal gástrica e antitransglutaminase foi negativo.

 

DISCUSSÃO

Neste caso clínico, a presença de hiponatrémia associada a sintomas constitucionais e gastrointestinais orientou-nos no diagnóstico. A ausência de hiperpigmentação cutânea, presente em cerca de 94% dos casos, dificultou-o. A hiperpigmentação cutânea está relacionada com a deficiência de cortisol e consequente estimulação da pro-opiomelonocortina, uma pró-hormona que é clivada, originando ACTH e hormona estimuladora dos melanócitos (MSH). Posteriormente a ACTH sofre mais clivagens, resultando em α-MSH. Os níveis elevados de MSH estimulam a síntese de melanina, causando hiperpigmentação.3 Neste caso clínico a ausência de hiperpigmentação pode ser explicada pelo início recente da doença.

O diagnóstico foi sugerido laboratorialmente pela associação de um valor sérico de cortisol normal a um valor de ACTH aumentado e confirmado pelo teste de estimulação com ACTH. Este último, embora seja um teste mais elaborado, apresenta uma maior sensibilidade e especificidade.2 Assim deve ser realizado um teste de estimulação com ACTH na maioria dos casos, para confirmação do diagnóstico, a menos que os resultados basais de cortisol e ACTH sejam absolutamente inequívocos, o que não se verificou no nosso caso uma vez que o valor de cortisol se apresentava normal.2 Nos doentes graves devem ser colhidas amostras sanguíneas (para doseamento de cortisol e ACTH), para fins de diagnóstico, e iniciar o tratamento de imediato com esteroides, não devendo este ser adiado à espera dos resultados analíticos.2,3 Quando houver indicação e a situação clínica do paciente o permitir, o teste de estimulação de ACTH poderá ser realizado antes do início do tratamento.3 Caso a situação clínica do paciente não o permita, este teste pode ser realizado após início de tratamento, com cessação temporária de glicocorticóides, após a condição do paciente se encontrar estável.2

A crise addissoniana constitui uma emergência médica e é caraterizada por hipotensão e distúrbios eletrolíticos resultantes da deficiência de mineralocorticoides. O seu tratamento inclui fluidoterapia e início precoce de corticoterapia (hidrocortisona), administrada sob a forma de bólus intravenoso (50 mg/m2). O bólus inicial deverá ser seguido por uma perfusão de hidrocortisona (50-100 mg/m2/dia) durante 24 horas.2 Após tratamento da crise deverá ser iniciada terapêutica de manutenção. No caso clínico apresentado, a ausência de hipotensão e a estabilidade clínica conseguida após correção dos desequilíbrios eletrolíticos levou a que a terapêutica com corticoides fosse iniciada apenas no internamento, após confirmação do diagnóstico.

A tuberculose é desde há muito reconhecida como uma causa clássica de ISR primária. Com a melhoria do tratamento da tuberculose a incidência de ISR diminuiu substancialmente nos países desenvolvidos. No entanto, a tuberculose constitui ainda uma das principais causas de ISR em países em desenvolvimento. Embora a incidência de tuberculose em Portugal tenha vindo a diminuir nos últimos anos, Portugal é um dos países europeus com maior prevalência. Por esta razão decidiu-se excluir esta causa enquanto se aguardava os resultados do estudo imunológico.

A presença de anticorpos antissuprarrenal confirmou a etiologia autoimune. Dada a elevada frequência de associação de ISR autoimune e outras endocrinopatias autoimunesé necessário realizar um rastreio no momento do diagnóstico.6,7 Apesar da investigação ter sido negativa, a possibilidade de poderem surgir posteriormente outros autoanticorpos implica vigilância clínica e laboratorial a longo prazo.2,7

A ISR primária requer terapêutica de substituição hormonal ao longo de toda a vida. A curta duração de ação e a menor potência da hidrocortisona tornam-na o glicocorticoide de eleição em crianças, permitindo uma titulação precisa, o que minimiza o seus efeitos laterais.2 A dose oral diária de substituição recomendada é de oito mg/m2/dia, via oral, dividida em três a quatro tomas diárias.2 No entanto, as crianças tratadas com este esquema não apresentam níveis fisiológicos de cortisol ao longo das 24 horas, verificando-se níveis baixos ao acordar e níveis altos, por vezes supra-fisiológicos, após cada toma de hidrocortisona.8 Estão a ser desenvolvidas novas tecnologias que permitem uma terapêutica de substituição mais fisiológica ao longo das 24 horas e assim diminuem os efeitos laterais da terapêutica de substituição, que incluem bombas subcutâneas de hidrocortisona e formulações de hidrocortisona de libertação modificada como a Plenadren® e o Chronocort®, respetivamente.8 Na ISR com deficiência de aldosterona confirmada é também necessário terapêutica de substituição com mineralocorticoides; no entanto, a sua dose não é ajustada à área de superfície corporal, permanecendo geralmente a mesma ao longo de toda a vida.2 Está recomendada a dose de 100-200 µg/dia de fludrocortisona, por via oral, em uma toma diária.1,2 O ajuste da dose de glicocorticoides e mineralocorticoides baseia-se na avaliação clínica, incluindo crescimento, índice de massa corporal e tensão arterial e por avaliação laboratorial com ionograma e, eventualmente, doseamentos de renina e aldosterona.9 Em situações de doença aguda a dose de glicocorticoide deverá ser aumentada, no sentido de prevenir a crise addisoniana.2,9 Se não for possível a administração por via oral (por exemplo por vómitos) a hidrocortisona deverá ser administrada por via parentérica.1

As crianças com ISR devem ser portadoras de cartão identificador da doença, que deve também conter informação acerca do que fazer em situação de alteração do estado de consciência e um contacto em caso de emergência.

O diagnóstico de ISR requer um alto grau de suspeição, dada a inespecifidade da sintomatologia inicial e a elevada morbimortalidade associada a um diagnóstico tardio.2,8 Assim, perante um quadro de hiponatrémia acompanhado de sintomas constitucionais e gastrointestinais devemos sempre considerar este diagnóstico.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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  2. Bornstein SR, Allolio B, Arlt W, Barthel A, Don-Wauchope A, Hammer GD, et al. Diagnosis and Treatment of Primary Adrenal Insufficiency: An Endocrine Society Clinical Practice Guideline. J Clin Endocrinol Metab 2016; 101:364.

  3. Stewart PM, Krone NP. The Adrenal Cortex. In: Melmed S, Polonsky KS, Larsen PR, Kronenberg HM. Williams Textbook of Endocrinology. 12th ed. Philadelphia: Elsevier Inc; 2011. p. 479-544.

  4. Perry R, Kecha O, Paquette J, Huot C, Van Vliet G, Deal C. Primary adrenal insufficiency in children: twenty years experience at the Sainte-Justine Hospital, Montreal. J Clin Endocrinol Metab 2005; 90:3243-50.

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  7. Eisenbarth GS, Gottlieb PA. Autoimmune Polyendocrine Syndromes. N Engl J Med 2004; 350:2068-2079.

  8. Porter J, Blair J, Ross RJ. Is physiological glucocorticoid replacement important in children? Arch Dis Child 2016; 0:1-7.

  9. Carvalho MR, Russo T, Robalo B, Pereira C, Sampaio ML. Doença de Adisson na Infância. Acta Pediatr Port 2012; 43:210-4.

 

 

CORRESPONDENCE TO

Clara Preto
Department of Pediatrics
Centro Materno Infantil do Norte
Centro Hospitalar do Porto
Largo da Maternidade,
4050-651 Porto
Email: clarampreto@hotmail.com

Received for publication: 10.10.2016 Accepted in revised form: 07.02.2017

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