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Nascer e Crescer

versão impressa ISSN 0872-0754

Nascer e Crescer vol.25 no.1 Porto mar. 2016

 

EDITORIAL

 

A música, a saúde e o bem estar

 

José Carlos AreiasI

I Professor Catedrático de Pediatria FMUP Diretor S. Cardiologia Pediátrica, Hospital Pediátrico Integrado, Centro Hospitalar São João. 4202-139 Porto, Portugal. jcareias@med.up.pt

Endereço para correspondência

 

A música é uma forma de expressão inerente ao ser humano, suscetível de partilha de emoções ou afetos. A interação que promove fortalece as relações humanas, aumentando a empatia e o prazer nesse relacionamento. Favorece ainda a evocação de memórias emocionais, sendo, assim, um veículo para sentimentos inatingíveis de outro modo.

O conhecimento de que a música afeta a saúde e o bem estar já existia no tempo de Aristóteles e Platão. No entanto, só em meados do século passado foi possível aos profissionais da saúde estabelecer uma relação entre a música e a recuperação dos doentes.

Uma das maiores experiências teve lugar no final da segunda grande guerra, quando foi pedido a vários músicos que tocassem em hospitais, como forma de tratamento e acalmia dos feridos. Esta atitude teve resultados tão positivos que as autoridades americanas resolveram profissionalizar pessoas com o intuito de recorrer à música como forma de terapia. Foi então criado o primeiro curso de musicoterapia, em 1944, na Universidade Estadual de Michigan.

As inovações recentes em tecnologia da saúde têm reflexo não só na duração da vida, como também na sua qualidade.

Assim, procura-se que essas tecnologias possam dar oportunidade a todos os que procuram aumentar o prazer, as experiências sociais, ou qualquer outra expressão pessoal.

Para isso, os executantes das novas tecnologias que pretendem melhorar a saúde e o bem estar poderão ser educadores, terapeutas, músicos ou profissionais de qualquer outra arte ou ciência.

Os efeitos da música no ser humano são conhecidos há milhares de anos. Contudo, a recetividade é subjetiva, dependendo do estado emocional de cada um.

Embora as bases fisiológicas da musicoterapia não sejam ainda bem conhecidas, sabe-se que a música melhora a qualidade de vida, tendo influência em certas variáveis da saúde, como podem ser as cardíacas e cerebrovasculares.

A primeira impressão sensorial no ser humano parece começar na vigésima semana de gestação, sabendo-se que o feto reconhece todos os sons, iniciando uma aprendizagem musical nessa altura.

Esta é uma bem reconhecida interação entre a mãe e o filho, antecipando, após o nascimento, a diminuição das cólicas do recém-nascido. Também as arritmias, comuns na grávida e no feto, podem ser potenciadas durante a gestação, devido a alterações fisiológicas como o aumento da frequência ou do débito cardíaco.

A música, com ritmos suaves e lentos, é benéfica para a mãe e para o feto, sendo, ainda, preventiva na morte súbita do recém-nascido.

No cérebro, dividido em dois hemisférios, o direito tem sido identificado como o lugar de apreciação musical. Contudo, não tendo ainda sido identificado um centro musical, parece provável que a identificação da música emerge da atividade conjunta dos dois hemisférios. Acresce que o córtex frontal, onde as memórias são arquivadas, tem também um papel activo na apreciação da melodia, sobretudo do ritmo. Interessante constatar que experiências feitas com música de Mozart mostraram uma ativação de ambos os hemisférios, com reflexo numa maior aprendizagem e retenção informativa. Outras experiências, efetuadas com monitorização da pressão arterial, frequência cardíaca, frequência respiratória e velocidade de fluxo sanguíneo na artéria cerebral média, mostraram que nos crescendos vocais ou orquestrais havia vasoconstrição, aumento da frequência cardíaca e da pressão arterial, em contraste com a vasodilatação e diminuição da pressão sistémica constatadas na altura em que a música era mais uniforme ou suave.

Muito se tem investigado em relação ao funcionamento do cérebro, sabendo-se que nenhum sistema funciona isolado de outros, pensando-se que em lugar de haver centros diferentes no hemisfério direito e esquerdo, haverá zonas superiores e inferiores em ambos os hemisférios, contribuindo todas para as diferentes execuções no ser humano.

Assim, parece claro que a música é transformadora e capaz de criar estados psíquicos e físicos diferentes no ser humano. É uma forma de expressar emoções e sentimentos em campos tão diferentes como podem ser o social, económico, ambiental ou religioso.

Distingue-se de outros sons pelo aproveitamento de frequências vibratórias harmónicas, com diferente tonalidade, dinâmica e duração.

A terapia mediante a música utiliza uma linguagem artística no processo terapêutico, podendo, contudo, ser utilizada como experiência estética e saudável no ser humano, na procura, em sessões de relaxamento, de efeitos positivos.

Como forma terapêutica, a música procura promover no paciente uma melhoria de ordem física, psicológica, cognitiva, espiritual, ou outra.

Problemas como a ansiedade ou depressão criam uma baixa eficiência cerebral, com origem na diminuição de serotonina, um neurotransmissor envolvido na comunicação entre neurónios. O efeito da música consiste em estimular as células cerebrais, aumentando o nível de serotonina e dessa forma melhorar o humor ou a disposição.

O efeito, tendo em comum o prazer, pode ser diferente, provocando excitação ou acalmia, conforme o tipo de música e o ambiente criado.

A música é também conhecida como facilitadora do processo de aprendizagem, sobretudo nas crianças, utilizando a informação e a memória.

Nos idosos, muitas canções estão ligadas a memórias alegres ou tristes, ajudando a uma melhor interação em situações de insónia, depressão, ou mesmo em doentes com demência ou Alzheimer.

A música pode ainda melhorar a comunicação, estimulando a destreza da linguagem, sobretudo em crianças autistas ou com outras formas de difícil expressão.

Um dos aspetos interessantes da musicoterapia consiste em avaliar a sua utilidade na diminuição da farmacoterapia. A dor é uma experiência independente da idade, sendo controverso o mecanismo pelo qual a música pode contribuir para o seu controlo. Sabe-se que os recetores da dor enviam sinais para o cérebro, sendo possível que a música bloqueie a perceção dolorosa ao atuar nos transmissores da dor.

O tratamento da dor crónica ou recorrente tem sido um importante campo para o desenvolvimento da musicoterapia. Duas técnicas têm sido usadas: a interativa, na qual o paciente e o terapeuta tocam ou cantam conjuntamente, e a forma passiva, na qual o paciente ouve música previamente selecionada e gravada pelo terapeuta. Neste último caso, o efeito pretendido é essencialmente melhorar o humor do doente, alterando o limiar da dor, utilizando a distração e o relaxamento. A música pode ainda ser usada como uma forma de comunicação não verbal, melhorando, naqueles para quem o acesso verbal está dificultado, a possibilidade de interagir.

A música diminui significativamente o nível de ansiedade nos doentes em cuidados pré-operatórios, por vezes com uma eficácia superior à utilização de certos fármacos, como o midazolam, uma benzodiazepina com efeitos na ansiedade e relaxamento muscular.

Em experiências recentes, a música de Mozart revelou possuir maior efeito sedativo do que alguns fármacos normalmente usados.

A música, estimulando a libertação de endorfinas, neurohormonas produzidas na hipófise, tem uma potente acção analgésica estimulando a sensação de bem estar, conforto e melhoria de humor.

Estudos recentes mostram que a endorfina pode ter um efeito sobre áreas cerebrais responsáveis pela modulação da dor, do humor, depressão ou ansiedade, e, ainda, sobre o sistema nervoso simpático, responsável pela modulação de diversos órgãos, como o coração ou o intestino.

Assim, a elevada eficácia e aparente ausência de efeitos adversos, tornam a música uma alternativa credível ao midazolam, ou a outros fármacos habitualmente usados na pré-medicação.

Também, após a cirurgia, há suficiente evidência prática da diminuição de stress pós-operatório com música adequada, tendo sido ainda comprovada a diminuição de níveis de cortisol no grupo de indivíduos submetidos a cirurgia de coração aberto, com música nos cuidados intensivos pós-operatórios , quando comparados com o grupo de indivíduos sujeitos à mesma cirurgia sem acompanhamento de música no seguimento pós-cirúrgico.

Hans-Joachim Trappe, um cardiologista alemão, estudou o efeito da música numa unidade de cuidados intensivos, publicando em 2010 na revista Heart os seus surpreendentes resultados. Os maiores benefícios constatados nos doentes foram conseguidos com música clássica, sobretudo com Bach, Mozart e compositores italianos. O fluxo cerebral avaliado por ecografia na artéria cerebral média, diminuía significativamente nos doentes que ouviam o “Va pensiero” da ópera “Nabucco” de Verdi, quando comparado com outros tipos de música. A música dita de meditação mostrou efeitos sedativos, enquanto “Heavy Metal” e “Techno” mostraram ser perigosas numa unidade de cuidados intensivos, aumentando o stress e o comportamento agressivo. Curiosamente, o jazz aumentou a concentração nos doentes, sendo o “Hip Hop” e o “Rap” benéficos, não pela melodia, mas pelo ritmo e pelo efeito das palavras.

Contudo, alguma dita música concreta, muito em voga em meados do século vinte, conhecida pela sua atonalidade, não acrescentou qualquer vantagem como experiência de sentidos, sabendo-se da agressão que provocava no bem estar e inteligência de cada um. É um exemplo John Cage que, em 1952, apresentou uma obra intitulada 4´ 33”, que constava da chegada do executante ao piano, da abertura deste e da permanência, em silêncio, do tempo correspondente ao título da obra, dando assim por concluída a sua atuação. Outras obras do mesmo compositor patrocinavam sons extraídos do piano, depois de atar papeis, borrachas ou nozes às cordas do instrumento. Como se compreende, nenhuma felicidade se podia extrair desta desinteressante arte. Em conclusão, a música é uma combinação de sons com diferentes frequências, tonalidades, intensidades e ritmos. Distingue-se do ruído pela harmonia na conjugação dessas propriedades.

Sendo o prazer da música muito subjetivo, para uma melhor saúde física e psíquica podemos escolhê-la, extraindo dela inquestionáveis benefícios.

A eficácia da musicoterapia tem sido descrita, sobretudo quando se escolhe música clássica ou outra relaxante. Vários estudos sugerem que este tipo de música tem efeitos no sistema cardiovascular, influenciando a frequência cardíaca e a sua variabilidade, bem como a pressão arterial. Graças à plasticidade cerebral, a música é uma poderosa ferramenta terapêutica de baixo custo e risco, com inequívocos efeitos positivos na memória, atenção, funções motoras e emoção. Tem ainda um efeito muito positivo na diminuição da intensidade ou frequência da dor e na medicina intensivista, para além de prazer e bem estar que a todos nós pode proporcionar na diminuição do stress ou desgaste diário, contribuindo significativamente para uma eficaz regulação emocional.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. Music, health, and well being: a review; Raymond AR Macdonald Int J Qualitativ Stud Health Well-being 2013, 8: 20635.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
José Carlos Areias:
Serviço de Cardiologia Pediátrica, Hospital Pediátrico Integrado, Centro Hospitalar São João
Alameda Professor Hernâni Monteiro, 4202-139 Porto

Email: jcareias@med.up.pt

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