SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.24 número4Transplantação renal pediátrica: experiência de um centro índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Nascer e Crescer

versão impressa ISSN 0872-0754

Nascer e Crescer vol.24 no.4 Porto dez. 2015

 

EDITORIAL

 

 

Acesso aos cuidados de saúde. Um direito em risco?

 

Pedro Lopes FerreiraI

I Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, Centro de Estudos e Investiga ção em Saúde da Universidade de Coimbra. Observatório Português dos Sistemas de Saúde. 3004-512 Coimbra, Portugal. pedrof@fe.uc.pt

Endereço para correspondência

 

Mais uma vez se cumpre a tradição de o Observatório Português dos Sistemas de Saúde (OPSS) apresentar o seu Relatório de Primavera. Após 15 anos consecutivos de produção, o tema central deste ano de 2015 foi o acesso aos cuidados de saúde enquanto forma de concretização do direito à saúde que, em momentos de crise, atinge uma importância ainda mais relevante pois é imperioso capacitar os cidadãos mais fragilizados para melhor ultrapassar estes momentos necessariamente difíceis. E é interessante realçar que esta apresentação ocorre precisamente no primeiro ano de ausência de intervenção externa direta da Troika.

Como tem sido hábito, o Relatório apresenta uma série de recomendações, este ano obviamente centradas no acesso aos cuidados de saúde.

Recursos na saúde

Começando por uma abordagem geral, este Relatório analisa a oferta de recursos humanos em saúde, lembrando a inadequada distribuição territorial de médicos e o défice evidente de enfermeiros, quando o seu número por mil habitantes é comparado ao dos restantes países da OCDE. Relativamente ao acesso aos serviços de urgência, constata ainda que, nos últimos anos, se tem assistido a uma redução da procura, fenómeno que coincide temporalmente com a subida das taxas moderadoras. Adianta o relatório que o mesmo se verificou com o acesso às consultas nos cuidados de saúde primários.

Face ao número de camas hospitalares e de cuidados continuados, a diminuição verificada nos hospitais públicos é acompanhada por um aumento de camas nos hospitais privados. Ao mesmo tempo, assiste-se a uma escassez de oferta nos cuidados continuados face às necessidades estimadas, ao subaproveitamento das equipas existentes de cuidados continuados integrados e a constantes problemas de otimização da referenciação para estas unidades. Aqui, o Relatório lembra que os cuidados prestados a nível dos cuidados continuados são menos onerosos que os prestados em qualquer unidade de internamento hospitalar, para além de salvaguardarem a comodidade e o bem-estar dos doentes.

Assim, em relação aos recursos humanos e materiais, há que urgentemente tomar medidas corretivas que permitam antecipar as situações normalmente mais que previsíveis, com antecedência, e desbloquear, por exemplo, os serviços de urgência em situações críticas. Ao mesmo tempo há que sensibilizar os cidadãos para uma utilização mais racional dos serviços de saúde. Relativamente à Rede Nacional de Cuidados Continuados e Integrados, há que apostar no aumento do número de camas disponíveis e na oferta de cuidados domiciliários.

Financiamento

Ao contrário do que tem acontecido em países geograficamente mais próximos de Portugal, as despesas de saúde pagas pelo cidadão continuam a subir e a registar valores cada vez mais insuportáveis pelas famílias, mesmo após as recentes alterações nas isenções das taxas moderadoras, sendo dos países da UE com uma das mais baixas despesas por habitante. O cidadão português tem, assim, mais dificuldade em se manter saudável e com qualidade de vida, quando comparado com os outros cidadãos europeus. O aumento da perceção dos cidadãos relativamente a necessidades não satisfeitas (representando, por exemplo, menos de 30% das necessidades atuais de pessoas dependentes no autocuidado), os aumentos das taxas moderadoras, as alterações verificadas nos transportes de doentes e no seu pagamento não são fenómenos estranhos a toda esta situação.

Acesso ao medicamento

Nesta área, os encargos do SNS com medicamentos continuaram a diminuir e foi, recentemente, evidente uma maior dificuldade de acesso por parte do cidadão, quer pela diminuição do seu poder de compra, quer porque outros intervenientes no circuito do medicamento também enfrentam grandes dificuldades. Paralelamente, Portugal ocupa uma posição muito baixa na lista dos países relativamente ao acesso à inovação terapêutica.

Há assim que inverter este ciclo negativo associado à área do medicamento e, para isso, há que envolver os vários stakeholders com o objetivo comum de permitir um aumento do acesso dos cidadãos ao medicamento de forma a tornar mais sustentável o próprio sistema de saúde.

Acesso a cuidados de saúde de qualidade e seguros

De acordo com a Recomendação 2009/C 151/01 do Conselho da União Europeia sobre a Segurança do Doente evidenciaram-se dificuldades na medição, monitorização e comparação dos indicadores relacionados com a segurança do doente, não havendo interoperabilidade entre os sistemas de notificação local e nacional de eventos adversos, e verificando-se problemas de confidencialidade e de não punibilidade relativamente à notificação desses eventos.

É imperioso compreender que, para o Estado, é menos oneroso apostar numa política da qualidade e segurança dos cuidados, do que na efetiva reparação ou indemnização dos danos resultantes da prestação de cuidados de saúde. O caminho a ser percorrido passa necessariamente pela adoção estrita de recomendações internacionais, nomeadamente da UE e da OMS, evitando o desperdício de meios e de tempo e fazendo bom uso dos sistemas de informação.

Acesso aos cuidados de saúde mental

Continua a assistir-se a um processo de desinstitucionalização dos doentes à revelia de programas predefinidos. Ao mesmo tempo, continua a ser lenta a implementação nacional da Rede de Cuidados Continuados de Saúde Mental. Sente-se também a necessidade de um aumento dos cuidados domiciliários sempre mais acessíveis e de menor custo para os doentes e famílias

Em suma, a crise continua a exercer os seus efeitos sobre a sa úde de todos os portugueses, com especial ênfase sobre os grupos mais vulner áveis. Defende-se uma política intersectorial de saúde que tenha como objetivo monitorizar indicadores de impacto, que acautele ou minimize os seus previsíveis efeitos e que salvaguarde o direito de acesso de todos os cidad ãos aos cuidados de saúde, tal como preconizado na Constituição da República Portuguesa.

A criação de uma comissão permanente dos determinantes da saúde, de análise e de monitorização do impacto da crise e das medidas acionadas pela governação na saúde, bem-estar e qualidade de vida dos cidadãos é a solução proposta.

Será que agora, sem pressões externas diretas, estamos em condições para estudar e adotar essas opções?

 

 

Endereço para correspondência
Pedro Lopes Ferreira:
Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra
Av. Dr. Dias da Silva,
165 3004-512 Coimbra

E-mail: pedrof@fe.uc.pt

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons