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Nascer e Crescer

versão impressa ISSN 0872-0754

Nascer e Crescer vol.23 no.3 Porto set. 2014

 

EDITORIAL

 

A febre reumática e suas complicações: impacto e desafios

 

 

Cleonice de Carvalho Coelho MotaI

IProfessora Titular da Faculdade de Medicina Universidade Federal de Minas Gerais ‑ UFMG. 30130‑100 Belo Horizonte‑MG, Brasil. E-mail: cleomota@medicina.ufmg.br

Endereço para correspondência

 

Apesar do declínio da incidência da febre reumática (FR) e da prevalência da car‑ diopatia reumática crônica (CRC), a doença permanece como importante problema de saúde pública nos paises em desenvolvimento e um desafio para a comunidade cientí‑ fica. Nos paises industrializados, onde ocorreu redução significativa da doença, o risco potencial de ressurgimento permanece considerando‑se que a doença não foi erradica‑ da com as intervenções que causaram seu declínio. Em algumas regiões dos Estados Unidos da América no período de 1985 a 1988, foi registrado aumento do número de casos de 5 a 12 vezes em relação à década anterior e taxa de 14,8: 100.000 crianças hospitalizadas por febre reumática no ano de 2000.(1,2)

A CRC é a principal causa de cardiopatia adquirida em crianças, adolescentes e adultos jovens nos paises em desenvolvimento. A prevalência estimada no mundo é de 15, 6 milhões de casos, dos quais um sexto encontra‑se na faixa etária entre 5 e 14 anos.(3) Entretanto, ao considerar a maior sensibilidade e acurácia do Doppler ecocar‑ diograma, estudos populacionais mais recentes vêm demonstrando que a frequência de valvopatia reumática é de 5 a 10 vezes maior quando a investigação por esse mé‑ todo de imagem é comparada ao exame clínico.(4‑9) Nesse contexto, o diagnóstico pela ecocardiografia com a utilização de critérios rigorosos deveria justificar a inclusão da valvite subclínica como cardite leve nos critérios maiores de Jones.(10)

Quanto ao impacto clínico, a doença, nas fases aguda ou crônica, determina re‑ percussões em todas as idades. Elevados índices de morbidade são observados nas crianças e adolescentes, faixa etária na qual se observa maior frequência de sintomas e internação devido à fase aguda. Entretanto, quando a análise envolve procedimentos intervencionistas e óbito ocorre inversão da distribuição por idade com maior inclusão de adultos.(11) Em áreas com elevada prevalência da doença, pacientes com CRC apresen‑ tam internações hospitalares freqüentes devido a quadros de insufi     cardíaca e ou‑ tras complicações, que respondem por 12 a 65% das admissões por doença cardiovas‑ cular.(12) Na avaliação do impacto socioeconômico da doença, devem ser considerados os custos pessoais e coletivos. O cálculo do índice DALY— disability‑adjusted life years (anos potenciais de vida perdidos ajustados para incapacidade) registra o total de 6,6 mi‑ lhões de anos perdidos por ano no mundo em decorrência da FR e suas complicações.(12) O diagnóstico da FR é clínico. Os critérios de Jones(13) sistematizados em mani‑ festações maiores e menores com base na especificidade têm sido periodicamente revisados pela American Heart Association e são amplamente utilizados para o diag‑ nóstico do primeiro surto da doença.(14)  Entretanto, como não existem sinais e sintomas patognomônicos, nem laboratório específico, muitas vezes encontram‑se dificuldades para a caracterização da doença, o que contribui para o subdiagnóstico.

Admite‑se que para cada paciente com cardiopatia reumática crônica com surto ini‑ cial identifi  existe outro sem registro das manifestações de fase aguda.  Episódios agudos com sintomas cardíacos de leve intensidade podem não ser adequadamente reconhecidos ou não constituírem motivo para a procura de assistência médica, como ocorre com os dolorosos episódios de artrite ou sinais mais evidentes da coréia de Sy‑ denham. Da mesma forma, contribuem para o subdiagnóstico da FR e da CRC a valvite subclínica – caracterizada pela ausência de sintomas cardiovasculares e de achados aus‑ cultatórios anormais durante o surto agudo, mas com regurgitação patológica das valvas mitral e/ou aórtica ao Doppler ecocardiograma e a valvopatia reumática subclínica na fase crônica da doença com as mesmas características. Nesses casos, a evolução sem profi   secundária expõe os pacientes às recorrências da doença. Em decorrência, há elevado risco de piora das lesões valvares pré‑existentes ou aparecimento de novas sequelas ou ainda de comprometimento de cirurgias valvares prévias. O diagnóstico de surtos subsequentes em pacientes com valvopatia grave é um desafi à parte. Nos pai‑ ses em desenvolvimento, fatores adicionais para o alto risco de novos episódios agudos incluem as difi    de acesso aos serviços médicos e os fatores sociais e econômi‑ cos, além do contexto ambiental que favorece a propagação do estreptococo. Por outro lado e em paralelo ao subdiagnóstico, nas regiões com elevada frequência da doença, existe o risco potencial de diagnóstico abusivo, quando se considera a possibilidade de evolução com grave acometimento cardíaco, diante da falha diagnóstica. Com base na última revisão dos critérios de Jones, a Organização Mundial de Saúde publicou, em 2004, os critérios para o diagnóstico das recorrências e da CRC.(12)

Nesse contexto, o diagnóstico precoce e acurado é fundamental para a instituição de prevenção adequada das recorrências, bem como a sua exclusão, ao se considerar as conseqüências da submissão de pacientes não‑reumáticos aos rigores da profilaxia secundária. Com o advento da ecocardiografia, a incorporação dessa importante ferra‑ menta à prática clínica tem possibilitado a identificação de lesões subclínicas, diagnós‑ tico mais acurado do tipo e grau do envolvimento cardíaco e informações valiosas para análise evolutiva. Em 2012, sob os auspícios da Federação Mundial de Cardiologia e com o objetivo de contribuir para a acurácia diagnóstica, um grupo de investigadores desenvolveu os critérios ecocardiográficos para o diagnóstico da CRC, baseados nas evidências disponíveis e com padronização em três subcategorias: CRC definitiva, bor‑ deline e acometimento reumático ausente.(15)

Outro desafio na abordagem de crianças e adolescentes com valvopatia reumática é a definição da época ideal para abordagem cirúrgica, quando são considerados entre outros fatores, a expectativa de vida e padrão de crescimento somático. A cirurgia de reconstrução valvar é sempre preferida, mas tecnicamente desafiante na dependência da gravidade das lesões e da presença de acometimento de mais de um sítio valvar. Dificuldades no manuseio desses pacientes permanecem, quando a cirurgia, indicada pela ineficácia da abordagem clínica, é analisada no âmbito da durabilidade restrita das biopróteses nessa faixa etária e das complicações envolvendo anticoagulação no pa‑ ciente pediátrico com prótese mecânica. Vários fatores podem intervir nos resultados cirúrgicos e entre eles as condições de vida desfavoráveis com elevada exposição aos estreptococcos do grupo A, acesso limitado à assistência médica e necessidade de troca valvar com o crescimento somático.

Apesar do avanço científico e do conhecimento acumulado, a patogênese da FR não está totalmente elucidada e, consequentemente, não existe tratamento curativo para a doença. Na análise do mecanismo de lesão, surge a pergunta: por que apenas um pequeno percentual de indivíduos com faringoamigdalite estreptocócica não trata‑ da desenvolve a doença? A resposta tem implicações diretas com fatores genéticos e de suscetibilidade individual. A história evolutiva da FR analisada no contexto dos aspectos etiopatogênicos mostra que não podemos intervir nesses fatores e tão pouco no processo de resposta imunológica após seu desencadeamento e, na falta de uma terapia específica, resta a profilaxia, que quanto mais precoce, maior a sua eficácia. Atenção especial deve, portanto, ser dada à prevenção da FR e prevenção das recor‑ rências da doença por meio da implantação de programas de profilaxia secundária com estratégias para favorecer a adesão dos pacientes aos regimes de prevenção.

Nesse cenário de impacto e desafios da doença, principalmente a ausência de te‑ rapia curativa, nossas melhores perspectivas incluem a implementação da pesquisa nessa área e a produção de uma vacina antiestreptocócica eficaz e segura, capaz de proteger os indivíduos suscetíveis.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Endereço para correspondência
Cleonice de Carvalho Coelho Mota
Universidade Federal de Minas Gerais
Faculdade de Medicina
Avenida Prof. Alfredo Balena, 190
30130‑100 Belo Horizonte‑MG, Brasil
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E‑mail: cleomota@medicina.ufmg.br

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