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Nascer e Crescer

versão impressa ISSN 0872-0754

Nascer e Crescer vol.23 no.2 Porto jun. 2014

 

CASOS CLÍNICOS / CASE REPORTS

 

Uma criança com narcolepsia

 

A child with narcolepsy

 

 

Silvério MacedoI; Inês PortinhaII; Zulmira CorreiaII

IS. Psiquiatria, CH Tâmega e Sousa. 4564-007 Penafiel, Portugal. E-mail: silveriomacedo@gmail.com
IIDep. Pedopsiquiatria e Saúde Mental da Infância e Adolescência, CH Porto. 4099-001 Porto, Portugal. E-mail: inescportinha@gmail.com; zcorreia.pedopsiquiatria@chporto.min-saude.pt

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Introdução: A Narcolepsia é uma doença crónica caracterizada por ataques de sono, sonolência diurna excessiva e fragmentação do sono noturno. Pode associar-se a cataplexia e a outros fenómenos do sono REM (paralisia do sono e alucinações hipnagógicas e hipnopômpicas).

Caso clínico: Um menino de 10 anos foi enviado à consulta de Pedopsiquiatria por alterações do comportamento, irrita- bilidade, adormecimento fácil e distração, sendo interpretado como uma “criança mal-educada”. Após avaliação clínica e estudo concluiu-se que apresentava narcolepsia com cataplexia.

Discussão/conclusão: Os doente com narcolepsia confrontam-se com vários problemas devido à própria doença que, se não tratada ou tratada ineficazmente, provoca sintomas perturbadores ou embaraçosos, influenciando a sua qualidade de vida. O objetivo deste trabalho é chamar a atenção para este problema uma vez que é uma situação rara e por isso também muitas vezes desconhecida pelo público em geral e até pelos profissionais de saúde.

Palavras-chave: Alteração do comportamento, cataplexia, narcolepsia, sonolência diurna excessiva.


ABSTRACT

Introduction: Narcolepsy is a chronic disease characterized by sleep attacks, excessive daytime sleepiness and nocturnal sleep fragmentation. It can be associated cataplexy and other disturbance of REM sleep (sleep paralysis and hypnagogic hallucinations and hypnopompic).

Case report: A 10-year old boy was referred to Pedopsychiatry because of behavioural disturbance, irritability, sleepiness and distraction, being interpreted as an “ill-mannered child.” After clinical evaluation and comprehensive laboratory studies we concluded that he presented narcolepsy with cataplexy.

Discussion/conclusion: Patients with narcolepsy face several problems due to the disease which, if left untreated or ineffectively treated, cause embarrassing or distressing symptoms, affecting their quality of life. The purpose of this paper is to draw attention to this problem since it is a rare condition and therefore seldom not recognized by the general public or even by health professionals.

Key-words: Behavioural disturbances, cataplexy, excessive daytime sleepiness, narcolepsy.


 

 

INTRODUÇÃO

Narcolepsia significa ataque de sono (narco significa estupor e lepsia ataques)(1). É uma doença crónica caracterizada por ataques de sono, sonolência diurna excessiva (SDE) e fragmentação do sono noturno, que se pode associar a crises de perda de tónus muscular (cataplexia) e a outros fenómenos do sono REM (paralisia do sono e alucinações hipnagógicas e hipnopômpicas) (2,3,4). De acordo com a ICSD-2 (Classificação Internacional dos Distúrbios do Sono) temos os seguintes subtipos: narcolepsia com e sem cataplexia (70% e 30% respetivamente), narcolepsia devido a situações médicas com ou sem cataplexia e narcolepsia não especificada(5).

 

CASO CLÍNICO

Apresenta-se o caso de uma criança do sexo masculino, raça caucasiana, 12 anos de idade, a viver com os pais e um irmão de 18 anos. Foi referenciado à consulta de Pedopsiquiatria aos 10 anos de idade por alterações do comportamento, irritabilidade, adormecimento fácil na escola e distração.

A gravidez foi vigiada e decorreu sem complicações. O parto foi distócico, com auxílio de ventosa, às 38 semanas, com índice de Apgar 8/10. A somatometria foi adequada e o período neonatal decorreu sem problemas. Segundo a mãe, foi sempre um bebé calmo, com noites tranquilas. O desenvolvimento psicomotor foi adequado. Esteve aos cuidados da mãe até aos cinco meses, ficando posteriormente com uma ama, a qual referia que era uma criança que dormia muito. Entrou para o infantário aos três anos, sem dificuldades de adaptação, mas com episódios em que adormecia, até a brincar, a completar puzzles. Com a entrada para a escola primária, aos cinco anos, a mãe conta que o menino era chamado a atenção muitas vezes pelos professores por estar distraído e ter ataques de sono na sala de aulas. Com 10 anos de idade surgiram episódios de quedas frequentes quando se entusiasmava, segundo a mãe “ria e caía, parecia um palhacinho”, mas sempre sem perda de consciência. Nessa altura andaria nervoso e agitado durante o dia, algo impulsivo, irritando-se facilmente; na escola tinha conflitos com os professores que diziam que ele era muito preguiçoso e com problemas de comportamento. Tal situação teve repercussão no rendimen- to escolar do doente, embora sem retenções. O pai começou a apresentar sonolência diurna excessiva, cujo estudo mostrou tratar-se de doença cardíaca. A criança foi levada a consulta de Cardiologia da qual foi referenciada à consulta de Pedopsiquiatria. Sem outros antecedentes familiares de relevo.

O exame físico geral e neurológico não apresentavam alterações e o exame do estado mental exclui a existência psicopatologia. Na Avaliação Psicológica (Wisc-III) apresentou um Quociente de Inteligência Global de 89 (QI verbal de 97; QI de realização de 86). Realizou estudo analítico e ressonância mag- nética cranioencefálica que não mostraram alterações. Polissonografia (PSG) noturna sem critérios de alterações respiratórias (apneias e/ou hipopneias); curta latência do sono (adormeceu após 1 minuto); longa latência do REM (entra em fase do sono REM após 121 minutos); movimentos periódicos das pernas em número não significativo, não ocasionando microdespertares (total de 22; índice de 2,7/h de sono). O Teste de Latências Múltiplas do Sono (MSLT) revelou uma hipersónia grave, com latência média do sono de 1 minuto e 7 segundos, e a existência de três testes (em quatro) com episódios de sono REM (SOREMPs), pelo que existiam critérios laboratoriais de narcolepsia. Realizou tipagem HLA com fenotipagem positiva para DQRB1*0602.

Iniciou terapêutica com modafinil 100 mg duas vezes por dia e fluoxetina 10 mg diários, com ligeira melhoria da SDE e diminuição da frequência de crises de cataplexia. Mais tarde adicionou-se metilfenidato de libertação prolongada na dose de 30 mg, com melhoria franca da sonolência diurna. Em relação à sugestão médica de realização de sestas de curta duração repartidas ao longo do dia, a criança não as queria realizar na escola e no ATL para não saberem da sua doença. Atualmente já consegue prever quando irá ter nova crise de cataplexia e senta-se para não cair.

 

DISCUSSÃO

A narcolepsia é uma doença que atinge 0,03-0,16% da população geral, com incidência similar nos dois sexos, sendo mais frequente entre os 15 e os 30 anos(2). Contudo, pode iniciar-se antes da puberdade, sendo que apenas 6% dos casos principiam antes dos 10 anos como foi o caso deste doente, dificultando o diagnóstico precoce. A narcolepsia ocorre geralmente de forma esporádica (98%) mas os fatores genéticos têm um papel importante e existem ainda formas secundárias(2,3,6). O risco de um parente de primeiro grau de um doente ser diagnosticado é 10 a 40 vezes maior que o da população geral. A concordância em gémeos monozigóticos para narcolepsia com cataplexia varia entre 25-31%. Está descrita uma associação de narcolepsia com o alelo HLA DQB1*0602 (variante do gene HLA DQB1 no braço curto do cromossoma 6) do complexo maior de histocompatibilidade. A presença do HLA-DQB1*0602 varia entre 88-98% nos doentes com narcolepsia com cataplexia, 4060% nos doentes com narcolepsia sem cataplexia e 12-34% na população geral(7). A fenotipagem positiva do alelo HLA-DQB1*0602 é critério de suporte diagnóstico, mas sua ausência não elimina a presença de narcolepsia sem cataplexia, pelo que o seu uso clínico é limitado, já que possui baixas sensibilidade e especificidade em doentes sem cataplexia. A narcolepsia secundária pode estar associada a patologias hipotalâmicas, traumatismos cranioencefálicos, agenesia do corpo caloso, encefalites límbicas, neurocisticercose, sarcoidose, esclerose múltipla ou doença de Niemann-Pick tipo C. Recentemente, foi detetado um aumento na incidência de narcolepsia em que foi utilizada a vacina da gripe contra a estirpe H1N1(8).

Além da tétrada sintomática (ataques de sono, sonolência diurna excessiva, cataplexia, alucinações hipnagógicas e paralisia do sono), que está presente apenas em 10 a 15% dos casos, existem outros sintomas que podem surgir em doentes com narcolepsia, nomeadamente insónia inicial, sono noturno fragmentado e depressão. O doente em questão não apresenta a tétrada sintomática, pois não tem história de alucinações hipnagógicas ou paralisia do sono. A ocorrência súbita de fraqueza muscular associada a situações de conteúdo emocional (cataplexia) tem sido considerada como um sinal patognomónico. O facto de o doente manifestar clínica de cataplexia apenas numa fase posterior atrasou o diagnóstico da doença.

Apesar da clínica compatível com narcolepsia com cataplexia, o doente realizou exames complementares com o intuito de confirmar o diagnóstico. O teste de latências múltiplas do sono é considerado o instrumento de diagnóstico principal; no entanto, o resultado não deve ser avaliado de forma isolada(4,7). É importante que na noite anterior ao MSLT seja realizada uma PSG noturna para avaliar a qualidade do sono e a sua arquitetura. Um MSLT que apresente uma latência média de sono inferior ou igual a 8 minutos, com a presença de dois ou mais episódios SOREMPs, é suficiente para o diagnóstico polissonográfico de narcolepsia segundo a Associação Americana de Medicina do Sono(5). Um MSLT negativo não exclui definitivamente o diagnóstico de narcolepsia. Por outro lado, os SOREMPs podem ocorrer noutras perturbações do sono, daí a importância da PSG noturna prévia a esse exame. No doente em causa, o MSLT confirmou o diagnóstico.

A presença do alelo DQB1*0602 também foi positiva no doente em questão, o que acontece até 98% dos doentes com narcolepsia com cataplexia. A fenotipagem HLA e medição de hipocretinas no líquor cefalorraquidiano têm sido estudados, mas não são considerados testes de diagnóstico de rotina para a narcolepsia, principalmente quando associada a cataplexia(7).

A narcolepsia com cataplexia é uma doença com elevado grau de incapacidade(9). Na infância representa um fator de risco para problemas cognitivos que influenciam o sucesso escolar, mesmo em crianças com QI normal. Estas crianças também estão sujeitas a apresentarem maior psicopatologia(10). A maioria dos doentes necessita de tratamento ao longo de toda a vida. Tradicionalmente são usados estimulantes para o tratamento da sonolência diurna excessiva e dos ataques de sono, enquanto os antidepressivos têm sido utilizados na cataplexia(11).

 

CONCLUSÃO

A irritabilidade, as alterações bruscas de humor e a sonolência excessiva são frequentemente mal interpretadas pelos professores que consideram as crianças “preguiçosas”, indiferentes ou mesmo simuladores, e muitas vezes são alvo de brincadeiras pelos colegas. Os narcolépticos são sobreprotegidos pelos familiares que não os deixam ficar sozinhos com receio de que aconteça algum acidente, o que é um fator de stress emocional adicional para ambas as partes. Assim, estes doentes muitas vezes apresentam uma autoimagem pobre e são alvo de exclusão social. A narcolepsia tem impacto nas funções psicossocial e física e, consequentemente, na qualidade de vida do doente. É aqui que nós, profissionais de saúde, podemos intervir.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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2.        Gbolagade S, Akintomide, Hugh R. Narcolepsy: a review. Neuropsyc Dis Treat 2011; 7:507-18.         [ Links ]

3.        Martínez-Rodríguez JE, Santamaría J. Narcolepsia e hipersomnia idiopática. Rev Med Navarro 2005; 49:35-40.         [ Links ]

4.        Jolanta BZ, Agata W-T, Anna P, Katarzyna K, Jakub W. Narcolepsy: etiology, clinical features, diagnosis and treatment. Postepy Hig Med Dosw 2012; 66:771-86.         [ Links ]

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6.        Jeremy P, Ruth MB. Narcolepsy: Clinical features, co-morbilities & treatment. Indian J Med Res 2010; 131:338-49.         [ Links ]

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8.        Dauvilliers Y, Arnulf I, Lecendreux M, Monaca Charley C, Franco P, Drouot X, et al. Increased risk of narcolepsy in children and adults after pandemic H1N1 vaccination in France. Brain 2013; 136:2486-96.         [ Links ]

9.        Givaty G, Ganelin-Cohen E. Narcolepsy as an autoimmune disease. Harefuah 2013;152:162-5.         [ Links ]

10.      Posar A, Pizza F, Parmeggiani A, Plazzi G. Neuropsychological Findings in Childhood Narcolepsy. J Child Neurol 2013 [Epub].         [ Links ]

11.      De la Herrán-Arita AK, García-García F. Current and emerging options for the drug treatment of narcolepsy. Drugs 2013; 73:1771-81.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Silvério Macedo
Centro Hospitalar do Tâmega e Sousa
Unidade de Amarante
Rua da Lama, nº 76, Telões
4600-758 Amarante, Portugal
E-mail: silveriomacedo@gmail.com

Recebido a 16.05.2013 | Aceite a 08.04.2014

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