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Nascer e Crescer

versión impresa ISSN 0872-0754

Nascer e Crescer vol.23 no.2 Porto jun. 2014

 

EDITORIAL

 

Saúde – síndroma de negação

 

Pedro Lopes FerreiraI

ICentro de Estudos e Investigação em Saúde, Faculdade de Economia, Universidade de Coimbra. 3004-512 Coimbra, Portugal. E-mail: pedrof@fe.uc.pt

 

No passado dia 30 de junho, o Observat ório Português dos Sistemas de Saúde (OPSS) apresentou, pelo d écimo quarto ano consecutivo, o seu Relatório de Primavera, dedicado este ano à governação da saúde em momentos dramáticos de crise financeira e económica como o que vivemos.

Desde 2001, e apesar dos avanços e recuos nas políticas de saúde em Portugal, da presença e da ausência de estratégias que sirvam o cidadão, o OPSS tem conseguido manter a sua missão pautada pela independência e pelo rigor, nunca traindo os princípios da boa governação em saúde. E é por isso que tem, por exemplo, insistido em chamar a atenção para a falta de equidade no acesso à saúde, para a falta de transparência e para a falta de informação que se vai crescentemente sentindo no sistema de saúde em Portugal.

Este ano, o Relatório aborda, entre outros, o tema da descentralização e da sua interrupção, hoje em dia consubstanciada por algumas medidas preocupantes.

O direito à saúde, consagrado na Constituição desde 1976, passou a ser garantido através de um serviço público de saúde, sendo também garantido aos cidadãos que a arquitetura administrativa e a gestão desse serviço seriam descentralizadas e participativas. Esta descentralização teve como objetivo recriar níveis de responsabilidade e de autonomia de decisão no seio do sistema público de saúde, ilustrado por exemplo (i) pela transferência para as ARS da gestão regional do SNS com a subsequente aplicação de um modelo regional de recursos e pelos orçamentos hospitalares parcialmente ajustados aos recursos consumidos com os doentes tratados; (ii) por experiências inovadoras de gestão no SNS e sucessivas alterações nos estatutos jurídicos dos hospitais; (iii) pela criação das Agências de Contratualização com o objetivo de uma contratualização independente entre o Estado e as várias unidades de saúde, com vista à separação entre o financiador e o prestador e ao aumento da autonomia, responsabilidade e prestação de contas das unidades públicas, tendo sempre como perspetiva o interesse dos cidadãos; (iv) pela criação dos Centros de Responsabilidade Integrados nos hospitais do SNS, permitindo uma superior autonomia, poder de decisão e consequente responsabilidade na sua gestão, no interior das organizações de saúde; e (v) pela criação das USF (modelos A e B), dando corpo à reforma dos cuidados de saúde primários e dos ACeS, possuindo estes, em teoria, autonomia administrativa.

O objetivo destas medidas foi libertar as unidades de saúde do SNS de um comando e controlo distante, burocrático, frio e centralista.

Entretanto, os portugueses estão a passar por uma redução drástica, injusta e por vezes alarmante do seu bem-estar e da sua qualidade de vida. O aumento substancial do custo de vida e dos impostos, a diminuição dos rendimentos provenientes do trabalho, o desemprego e a crescente precariedade das relações laborais são alguns exemplos desta diminuição de direitos. Continuamos a ser, dos cidadãos europeus, dos que mais pagam para se manterem saudáveis. No geral, mantém-se o discurso oficial de que vivemos “acima das nossas possibilidades”, que temos de continuar a aceitar, agradecidos, esta política de austeridade e de cortes injustos na saúde, até porque não há dinheiro. E não haverá por algumas décadas mais, dizem-nos.

Isto, quando outros países europeus se prepararam com tempo para a crise financeira que se avizinhava, uns alocando mais dinheiro para a saúde, outros não optando por caminhos de austeridade cega e capacitando os cidadãos para enfrentar melhor a crise económica e social. E, além disso, fazendo uma distribuição dos recursos financeiros do país com uma preocupação social.

É o que se espera de uma boa governação: prevenir o impacto na saúde dos determinantes sociais e económicos negativos.

No entanto, entre nós, os recursos físicos do SNS vão sendo delapidados, ao mesmo tempo que são tomadas decisões de desresponsabilização do Estado na saúde, os recursos financeiros são drasticamente diminuídos e os recursos humanos permanecem desmotivados e sem esperança.

Paralelamente, tem-se assistido a uma aparente interrupção no processo de descentralização do SNS e a uma crescente centralização da governação da saúde liderada pelos Ministérios da Saúde e das Finanças e ilustrada pela “lei dos compromissos”. Num quadro de subfinanciamento e restrição orçamental, esta lei impõe uma gestão de curto prazo, limitando as tomadas de decisão necessárias para responder às necessidades, por vezes de caráter urgente, e restringindo os graus de liberdade a quem tem como responsabilidade a gestão dos serviços públicos da saúde. Isto é, não se confia na capacidade de gestão de quem foi nomeado para gerir as unidades de saúde.

Mais dois exemplos deste retrocesso na descentralização do SNS são: (i) as limitações à celebração ou renovação de contratos de trabalho ou de prestação de serviços de profissionais de saúde; e (ii) o processo de fusão dos ACeS, inviabilizando, de certo modo, a governação clínica nos cuidados primários cuja implementação exige proximidade.

As barreiras burocráticas e o ambiente de incerteza quanto à disponibilidade de recursos impedem um planeamento estratégico, uma contratualização plurianual e, no limite, põem em causa a própria sustentabilidade das organizações, tornando-as meras cadeias de transmissão de decisões centralmente tomadas.

Tudo isto tem implicações na prestação de cuidados e, em última análise, na própria saúde dos portugueses.

Isto é, começa a haver evidência que indicia um impacto extremamente negativo da crise e das políticas tomadas sobre a saúde das pessoas. Ou seja, está a acontecer o que era esperado e, por alguns, temidamente anunciado. E apesar disto, não se vislumbram sinais indicadores de uma política de saúde que monitorize estes impactos e tente minimizar os seus efeitos. Há pouco mais de dois anos, após a apresentação pública de mais um Relatório de Primavera, chegou a haver uma promessa de que estaria a ser elaborado um relatório dos efeitos da crise sobre os cidadãos. Até agora não há qualquer conhecimento dos resultados deste relatório ou mesmo da sua existência.

Paralelamente, mantêm-se mecanismos para “incentivar” os investigadores a não incomodar a “boa imagem” de algumas instituições ou programas de saúde. No entanto, o discurso oficial do nosso governo ou dos parceiros da Troika continua a negar esta realidade, evita a discussão e, mais grave do que isto, não equaciona quaisquer medidas de prevenção ou de combate às consequências nas pessoas em sofrimento. Por isso, este ano o relatório de primavera foi denominado “Saúde-Síndroma de negação”.

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