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Nascer e Crescer

versão impressa ISSN 0872-0754

Nascer e Crescer vol.21 no.3 Porto set. 2012

 

Morbilidades futuras

 

Ana Cristina Braga1

1 Assistente Hospitalar Graduada de Pediatria, S. Neonatologia, U Maternidade Júlio Dinis, CH Porto

 

Durante o desenvolvimento intrauterino o embrião humano aumenta o comprimento 5000 vezes, a superfície corporal 60 mi­lhões de vezes e o peso 6 mil milhões de vezes (1). O genoma fe­tal determina o potencial de crescimento in utero, mas o principal determinante do crescimento realmente atingido é o ambiente nutricional e hormonal em que o feto se desenvolve (2). A res­trição de crescimento intrauterino (RCIU), que se estima atinja cerca de 5% das gestações (3) é, cada vez mais, encarada como um processo fisiológico de adaptação a um meio desfavorável. O crescimento num ambiente de privação leva a adaptações me­tabólicas e circulatórias que, embora possam ter consequências desfavoráveis no futuro, são importantes para a sobrevivência fetal (4). Este processo representa aquilo a que Lucas se refere como “programação”: um insulto sofrido numa fase crítica do de­senvolvimento pode resultar num efeito duradouro da estrutura ou da função do organismo (5).

O peso é, isoladamente, uma medida pobre do crescimento intrauterino. A adição do comprimento e do perímetro cefálico permite definir diferentes padrões de crescimento que têm dife­rentes consequências a longo prazo (6).

 

CONSEQUÊNCIAS METABÓLICAS

Estudos animais e em recém-nascidos (RN) leves para a idade de gestação (LIG) mostraram existir associação entre RCIU, resistência à insulina e aparecimento na vida adulta de hi­pertensão arterial, obesidade, diabetes mellitus tipo 2 e dislipide­mia (síndrome metabólico). Estudos posteriores em RN prema­turos, adequados e leves para a idade de gestação, confirmaram que a prematuridade aumenta também a resistência à insulina, com todas as referidas consequências futuras (7,8). O mecanismo fisiopatológico responsável pelas alterações metabólicas será o mesmo na restrição de crescimento intrauterino e na prematu­ridade, diferindo apenas no momento (intra ou extrauterino) da exposição a condições desfavoráveis.

Em resposta à carência nutricional o feto diminui a sua de­pendência da glicose, e aumenta a oxidação de outros substra­tos, nomeadamente aminoácidos e lactato. A resistência periféri­ca à insulina, que surge como mecanismo poupador de glicose, pode perpetuar-se na vida adulta. Por outro lado, com a menor disponibilidade de nutrientes, diminui a produção de hormonas anabólicas- insulina, IGF-1 e hormona do crescimento - e au­menta a de hormonas catabólicas, nomeadamente glicocorticói­des (6).

Também o ganho ponderal pós-natal é um componente importante na programação de doenças no adulto. Estudos epi­demiológicos, clínicos e experimentais em animais realizados em todo o mundo têm demonstrado que existe uma associação entre crescimento lento pré-natal, aceleração do crescimento na fase precoce da vida, e o aparecimento posterior de intolerân­cia à glicose, resistência à insulina, diabetes tipo 2, obesidade e doença cardiovascular (9,10). A discordância entre o fenótipo fe­tal, desenvolvido na adaptação a um ambiente desfavorável, e o ambiente nutricional pós-natal tem consequências metabólicas adversas (10). Investigadores compararam, durante a infância e adolescência, indivíduos nascidos prematuramente que recebe­ram fórmulas para prematuros com outros alimentados com leite humano ou fórmula para lactentes. Concluiram que aqueles que receberam fórmula com maior densidade calórica e proteica obti­veram resultados desfavoráveis no perfil lipídico, pressão arterial e resistência à leptina e insulina, estabelecendo uma relação en­tre alimentação precoce e obesidade futura (11,12).

Factores genéticos poderão também dar o seu contributo no desenvolvimento de complicações metabólicas em indivídu­os leves para a idade de gestação. Investigação realizada pelo Auckland Birthweight Collaborative study mostrou uma maior prevalência de factores genéticos associados à obesidade e/ou risco de diabetes tipo 2 nos indivíduos nascidos leves do que nos adequados à idade de gestação (13).

 

NEURODESENVOLVIMENTO

Crianças que sofreram RCIU apresentam mais alterações do neurodesenvolvimento do que os seus pares com a mesma idade de gestação mas peso adequado à idade. Estudos em que o controle é feito com crianças com o mesmo peso ao nascimen­to (e portanto de menor idade de gestação) não revelam esta diferença (14). A presença de outros aspectos com implicações no neurodesenvolvimento, como a prematuridade, a inclusão de crianças constitucionalmente pequenas, ou a causa e o tipo de RCIU, dificultam a identificação da responsabilidade da RCIU no prognóstico destes indivíduos.

Tradicionalmente é atribuído pior prognóstico às crianças com restrição simétrica do crescimento, por se considerar que esta foi mais duradoura, mais grave e de instalação mais preco­ce. Recentemente a RMN cerebral tem revelado atingimento do crescimento cerebral mesmo quando o perímetro cefálico está conservado, mostrando que crianças com restrição assimétri­ca podem ter um desenvolvimento cerebral anormal, apesar do aparente fenótipo de “preservação cerebral” (15). Têm sido demonstradas alterações estruturais cerebrais em prematuros com RCIU. Além da redução do volume intracraniano e da substância cinzenta, parece haver uma vulnerabilidade cerebral regional que atinge sobretudo o hipocampo e os lobos límbico e frontal. À medida que se dá a maturação do SNC estas alterações podem levar ao desenvolvimento de um perfil neuropsicológico particu­lar (16). O seguimento desta população até à idade adulta tem permitido identificar alterações subtis do neurodesenvolvimento em indivíduos com QI normal e uma maior incidência de défice de atenção-hiperactividade e impulsividade (15).

O padrão de crescimento extrauterino também se relaciona com o desenvolvimento. Crianças que “recuperam” o crescimen­to (catch-up growth) têm os melhores resultados. Cerca de 10% das RCIU não fazem esse “catch-up”, havendo autores que su­gerem que nestas crianças haverá uma resistência ao IGF-1 e à hormona de crescimento (HC) (15). Estudos demonstram melhoria do QI, comportamento e auto-estima em crianças tratadas com  HC.(17).

CONSEQUÊNCIAS RESPIRATÓRIAS

Tem sido aceite que recém-nascidos com restrição de cres­cimento, devido ao stress sofrido in utero, têm um melhor prog­nóstico respiratório. Contudo a restrição de crescimento intrau­terino é descrita como um factor de risco independente para o desenvolvimento de displasia broncopulmonar (DBP) (18). A DBP é uma das principais morbilidades associadas ao intensivismo neonatal. Cada vez mais se reconhece que há alterações na fi­siopatologia da doença, com alguns RN a desenvolverem DBP não precedida de Síndrome de Dificuldade Respiratória do RN nem de ventilação mecânica; é neste grupo de crianças que a RCIU pode ter responsabilidade etiológica (19), embora nem todos os estudos estabeleçam esta relação. Pensa-se que os proces­sos que limitam o crescimento fetal poderão também limitar o crescimento e maturação pulmonar: desequilíbrio entre factores angiogénicos e anti-angiogénicos, hipóxia fetal/pulmonar cróni­ca, alteração do meio bioquímico pulmonar com redução da pro­dução de surfactante (18).

Pieira e infecções respiratórias são mais comuns nas crian­ças que sofreram RCIU. O seguimento destas crianças tem mos­trado que a sua função pulmonar é significativamente diferen­te da das crianças nascidas com peso adequado à gestação, apresentando um aumento da resistência das vias aéreas (20). Os volumes pulmonares, pelo contrário, relacionam-se não com o peso ao nascimento mas com o peso na data da observação.

 

Consequências renais

Estudos têm mostrado que o peso ao nascimento é um for­te determinante do volume renal, do número de nefrónios e do tamanho glomerular. A malnutrição fetal na fase tardia da ges­tação, fase de rápido crescimento renal, leva a uma diminuição desse crescimento e a uma consequente diminuição do número de células renais; esta poderá ser permanente uma vez que após o nascimento parece não haver capacidade de replicação celular renal para catch-up (6). A menor massa renal e menor número de nefrónios associados ao baixo peso ao nascimento tornam o rim mais susceptível à lesão, favorecem o desenvolvimento de HTA e a evolução para doença renal crónica. O aumento da pressão capilar e hiperfiltração levam à hipertrofia glomerular, hipertensão intraglomerular e hipertensão sistémica, dando início a um ciclo de lesão glomerular progressiva (21).

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A subnutrição fetal programa a resistência à insulina e a diabetes tipo II, o que significa que as sementes da diabetes na próxima geração foram lançadas e são já aparentes nas crianças de hoje (6).

Estabelecida uma relação entre RCIU (e, em menor medi­da, também a prematuridade) e doenças do adulto, justifica-se a vigilância destas crianças até à vida adulta. A identificação dos indivíduos em risco numa fase pré-clínica permitirá a tomada de medidas que impeçam ou atrasem a manifestação da doença (22).

As políticas de saúde devem intensificar esforços em me­didas que promovam um adequado crescimento intrauterino e nutrição pósnatal, estimulando o aleitamento materno. Evita-se assim dilemas como promover ou não a rápida recuperação do crescimento durante a infância (23).

Crianças com RCIU, nascidas de termo ou prétermo, têm risco aumentado de alterações do desenvolvimento. Outros fac­tores, como a prematuridade ou as condições sociais adversas, frequentemente coexistem e têm efeito prognóstico aditivo. A vigilância do seu neurodesenvolvimento deve ser portanto asse­gurada, de forma a garantir-se a optimização dos resultados (15).

 

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