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Nascer e Crescer

versão impressa ISSN 0872-0754

Nascer e Crescer vol.20 no.4 Porto  2011

 

Falta de açúcar...?

 

Armando Pinto1

1 Oncologista Pediátrico do IPO do Porto

 

Foi no Serviço de Pediatria do Hospital Geral de Santo António, no Porto, que iniciei o Internato de Pediatria na passada década de 80.

A preferência pela especialidade nasceu ainda durante o curso, porém o exacto local do estágio dimanou da ligação que já tinha com aquele Hospital, localizado na freguesia onde nasci e habitei, ao qual me dirigia primeiro como utente e depois como estudante de medicina, para ocupar os tempos vagos, iniciando-me na actividade clínica guiado por um grande amigo de infância, o Dr. José Manuel Calheiros. Ajudou ainda o facto de, na altura, o Director ser o Dr. Baltazar Valente, conhecido da minha mãe e também – eis uma notável curiosidade – a circunstância de estar ali um médico regressado da Suíça que alcançara imensa fama e prestígio na Cidade, por aliar a sua espontaneidade à invulgar capacidade de comunicação e sobretudo ao contagioso entusiasmo que transmitia quando falava da sua profissão: o Dr. Octávio Cunha.

O Serviço tinha instalações novas, constava que por acaso, pois haviam feito umas obras para ampliar outro Serviço, porém, como os planos estavam mal feitos e as camas de adulto «não passavam» nos corredores, foram obrigados a entregar o espaço ao Serviço de Pediatria.

Passei ali anos absolutamente marcantes para a minha vida profissional e pessoal. Uma parte de mim, do meu eu, uma fracção da minha identidade, permanece ligada para sempre àquele Serviço, àquele Hospital e àquelas pessoas, com as tonalidades e contrastes inerentes a quem vive intensamente.

Um dos acessos ao Serviço de Pediatria fazia-se por um elevador. Este era guiado por um ascensorista – bem sei que estão pasmados, mas era exactamente assim, uma criatura que… só fazia aquilo! – um homem de meia idade, de tez morena e aparência indiana, de baixa estatura mas bem «recheado», falador, perguntador, «metido», conhecia-nos a todos e dava-se a comentários mais ou menos atrevidos, que tinham nomeadamente a ver com as suas preferências por este ou aquele, aquela ou aqueloutra. O homem era epiléptico, «Doutor, se eu não tomo os comprimidos vêm-me uns ataques, espumo-me todo e só acabam na Urgência», sendo em consequência lento, melado, pegajoso mesmo, tornando-se insuportável naqueles dias em que, também nós, estávamos… insuportáveis.

Uma ocasião, numa manhã soalheira, quente e mandriona, daquelas que acontecem no Verão na Cidade do Porto, estava eu na Enfermaria acompanhado de um colega estagiário de Clínica Geral, um homem muito «bem-posto», com um impecável ar de médico que nos superava sobremaneira, bem mais idoso que nós, quase imberbes, pois havia feito o curso de medicina como «estudante-trabalhador» – que na altura permitia uma espécie de «curso rápido» – enquanto exercia a actividade de Propagandista Médico – profissão hoje designada por Delegado de Informação Médica – estava eu, dizia, num intervalo, quando o convidei para um café, ao que ele aderiu com prazer.

Chamei o elevador e, quando as portas descerraram naquela lentidão que todos reconhecem, apareceu o Sr. Manuel, o pressuroso ascensorista, mais ávido do que nunca de uma pequena conversa, «Então vão para um cafezinho?», perguntou olhandonos frontalmente, enquanto mantinha o gordo dedo indicador no botão de sinalização de destino, «É isso mesmo, fiz agora um Dextrostix e estou aqui com uma falta de açúcar…!», respondeu o colega de clínica geral com a concertada voz grave de locutor que o caracterizava.

As portas do elevador aproximaram-se, fechando-nos no contentor andante, onde as pessoas se vêem obrigadas a prescindir do espaço razoavelmente aceite para a proximidade, dando azo a que até os pensamentos se tenham que abafar, não vá o forçado parceiro corpulento posto à nossa frente adivinhar quanto incomodam os seus repugnantes dentes desalinhados e escuros, as portas fecharam, dizia eu, o elevador iniciou a descida, indiferente à agonia do Sr. Manuel, entregue à tentativa de alcançar o sentido do citado, «… açúcar…textix…», enquanto coçava, talvez com o mesmo dedo usado no botão, o lustroso couro cabeludo visível através da rala cabeleira desbotada,

«textix… textix…».

Para quem, como foi o meu caso, não estava ciente do que revoluteava naquela pequena cabecinha, nada se sentia de relevante a passar, porém o Sr. Manuel ia ansioso, antecipando a reabertura das portas sem resolver a insistente dúvida, aflito como quando se fica inesperadamente sem pé, «…textix… açúcar…», enquanto o «contentor» prosseguia, indiferente, a descida.

O inevitável sobreveio, impôs-se, as portas desataram a abrir, aparentemente mais apressadas do que seria desejável, e nós encetamos os primeiros movimentos de abandono do elevador, todavia fomos interrompidos com uma pergunta absolutamente inesperada: «Doutor, o senhor disse que está com falta de açúcar nos testículos!?».

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