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Nascer e Crescer

versão impressa ISSN 0872-0754

Nascer e Crescer vol.20 no.4 Porto  2011

 

Caso hematológico

 

Raquel Lopes1, Luísa Araújo2, Emília Costa2, Sérgia Soares3, José Barbot2

1 S. Hematologia Clínica, CH Porto

2 U. Hematologia Pediátrica, CH Porto

3 S. Pediatria, H Pedro Hispano, ULS Matosinhos

CORRESPONDÊNCIA

 

ABSTRACT

Essential Thrombocythemia (ET) is a rare disease in pediatric age. The dominant clinical manifestations are thrombotic (arterial or venous) and/or hemorrhagic, but most of the cases are asymptomatic, and diagnosis made by routine hemogram.

A previously healthy adolescent, federated football player, was oriented to the paediatric haematology consultation, at the age of 15 years, because of the presence of sustained thrombocytosis. It was established the diagnosis of Essential Thrombocythemia based on the criteria of the World Health Organization (WHO) 2008.

The authors highlight the importance of establishing this diagnosis, even in pediatric age, to set the earliest possible a strategy of clinical surveillance, prevention of associated complications and the most adequate therapeutic approach.

Keywords: thrombocytosis, essential thrombocythemia, adolescent.

 

Adolescente do sexo masculino referenciado à Consulta de Hematologia Pediátrica, aos 15 anos de idade, para estudo e orientação de trombocitose de 1 210 000 plaquetas/mm3 detectada em análises de rotina.

Trata-se de um jovem previamente saudável, praticante de futebol de forma federada e filho de pais não consanguíneos. Sem história de patologias relevantes na família.

Assintomático até à data. Exame objectivo sem alterações.

Na primeira consulta era documentável, em três hemogramas realizados nos três meses precedentes, uma trombocitose superior a 1 000 000 plaquetas/mm3.

Restante quadro hematológico normal.

 

Quais as hipóteses de diagnóstico?

Que exames complementares solicitava?

 

COMENTÁRIOS

Na literatura pediátrica, trombocitose é definida na base de contagens de plaquetas que variam entre os 400 000/mm3 e 1 000 000/mm3. Esta variabilidade do limite superior da normalidade refere-se, no entanto, a grupos etários mais jovens. No presente caso tornava-se claro estar perante uma situação de trombocitose severa e sustentada a exigir investigação.

A abordagem de uma trombocitose (Figura 1) é condicionada pela sua principal vertente classificativa, ou seja, da possibilidade de se tratar de uma situação primária por produção autónoma da medula óssea ou, em alternativa, secundária/reactiva a uma variedade relativamente elevada de patologias. No presente caso, o grupo etário do doente apontava mais no sentido de uma trombocitose reactiva. Pelo contrário, a severidade e o carácter sustentado da trombocitose (que se veio a confirmar nos hemogramas realizados posteriormente) contrastava com o excelente estado geral deste jovem, que não apresentava qualquer sinal ou sintoma de doença susceptível de provocar este quadro. Neste contexto a investigação de trombocitose primária foi considera da prioritária. Mesmo assim, foram excluídas as patologias mais frequentemente associadas a trombocitose, nomeadamente de foro inflamatório/infeccioso, assim como o défice de ferro e a presença de hipoesplenismo. Deste modo, foram realizados estudos complementares dirigidos ao diagnóstico de Trombocitémia Essencial (TE).

 

Figura 1 – Um algoritmo diagnóstico para trombocitose (adaptado de Wintrobe`s Clinical Hematology. 12th ed. Lippincott, Williams&Wilkins; 2009. p. 1355).

 

A pesquisa das mutações JAK2 V671F e do gene MPL W515L/W515K foi negativa.

A biópsia de medula óssea mostrou proliferação muito aumentada da linhagem megacariocítica, com presença de alguns megacariócitos atípicos, na ausência de mielofibrose e depósitos de ferro normais.

Na investigação adicional, a determinação da massa eritrocitária foi normal, a pesquisa do gene de fusão BCR-ABL foi negativa e o cariótipo revelou-se normal.

O estudo da função plaquetária, através do PFA-100, revelou-se alterado (Epinefrina 273 seg. (n<165) e Colagéneo 146 seg. (n<118).

Este conjunto de resultados permitiu o diagnóstico de TE segundo os critérios da World Health Organization (WHO) 2008(1,2) e da British Society for Haematology (BCSH) 2010(3). Conforme pode ser observado na Tabela 1, este diagnóstico engloba critérios de inclusão (trombocitose sustentada, anatomopatologia concordante e presença da mutação JAK2 V617F e/ou ausência de trombocitose reactiva evidente) e critérios de exclusão de outras neoplasias mieloproliferativas (PV, MFP, LMC BCR/ABL1), síndromes mielodisplásicas (SMD) ou outras neoplasias mielóides.

 

Tabela 1 – Critérios da WHO de Trombocitémia Essencial (2008).

 

Com efeito, no caso apresentado, o diagnóstico foi realizado com base, não só, no aumento sustentado do número de plaquetas, assim como, na presença de hiperproliferação megacariocítica na biópsia de medula óssea que, por sua vez, contribuiu também para a exclusão de mielofibrose primária (MFP), síndrome mielodisplásica (SMD) e outras neoplasias mielóides. A policitemia vera foi excluída com base em valores normais de hemoglobina, hematócrito e massa eritrocitária. A pesquisa de BCR-ABL foi negativa. Finalmente, apesar da negatividade da mutação JAK2 e MPL, foi feita a exclusão de trombocitose reactiva, nomeadamente pela clínica e ausência de ferropenia ou patologia infecciosa/inflamatória.

A trombocitemia essencial (TE) faz parte do grupo de neoplasias mieloproliferativas (NMP) cromossomo Philadelphia (Ph) negativas4. Caracteriza-se pela hiperproliferação megacariocítica, de carácter clonal, com consequente trombocitose periférica, favorecendo fenómenos trombo-hemorrágicos(4). A incidência, segundo a OMS, é de 0,6 a 2,5 casos por 100 000 habitantes/ ano. A maioria dos casos ocorre em pacientes entre os 50 e 60 anos de idade(1), sendo uma doença rara na criança. A razão sexo F/M é cerca de 2:1(5).

A mutação JAK2 V617F (exão 14) é observada em cerca de 50-60% das TE(6), sendo menos frequente nas crianças do que nos adultos. Mutações no gene MPL, receptor de trombopoietina, representadas sobretudo na forma do alelo W515L ou W515K, estão presentes em 7-8% dos pacientes com TE(7), correspondendo a raros casos primários familiares em crianças e estando usualmente presentes nos casos JAK2 V617F negativos(8).

As manifestações clínicas dominantes são trombóticas (arteriais ou venosas) e/ou hemorrágicas, mas a maioria dos casos é assintomática ao diagnóstico e detectada em hemograma de rotina(3). Em idade pediátrica a doença está associada a um quadro clínico mais leve, assim como, a menores taxas de evolução para PV, MFP, SMD e leucemia aguda. Podem ocorrer sintomas vasomotores como cefaleia, síncope, dor torácica, eritromelalgia, distúrbios visuais ou parestesias das extremidades. Angina, enfarte do miocárdio, acidente vascular cerebral (AVC) e embolia pulmonar podem representar a primeira manifestação de trombocitose(6). As manifestações hemorrágicas são menos comuns e estão associadas a um número de plaquetas superior a 1 000 000/mm3, variando de epistaxis e gengivorragias até hemorragias digestivas ou do sistema nervoso central (SNC), muito raramente(5). Entre 25 a 48% dos doentes apresentam esplenomegalia(6). As provas de função plaquetária são consistentemente anormais, com PFA-100 aumentado. O esfregaço de sangue periférico pode mostrar plaquetas grandes e fragmentos de megacariócitos.

Actualmente, como já referido, o diagnóstico desta entidade, segundo a OMS, exige a presença dos 4 critérios enumerados na 1ªreferência no texto Tabela 1.

Perante este quadro:

 

Tratar ou não tratar?

Quando iniciar tratamento?

Quais os fármacos?

Pode manter actividade física de alta competição?

 

O doente, actualmente com 16 anos, tem sido mantido em vigilância sem tratamento dirigido, dado apresentar contagens plaquetárias entre 1 000 000 e 1 500 000/mm3, sem clínica trombótica ou hemorrágica associada.

A TE é uma doença crónica, de comportamento relativamente benigno e que não tem cura. De um modo geral e, de acordo com as as guidelines da British Society for Haematology (BCSH) 2010(3), a abordagem terapêutica na TE centra-se na redução do número de plaquetas e na prevenção das complicações trombóticas e hemorrágicas; devendo a estratificação pelo risco estar na base da decisão terapêutica.

Neste contexto, estamos perante um doente de baixo risco (idade inferior a 40 anos, com contagens plaquetárias inferiores a 1 500 000/mm3, sem história de eventos trombóticos ou hemorrágicos e sem factores de risco cardiovasculares). Nestes casos, de um modo geral, deve ser iniciada a aspirina, excepto se contra-indicada(3). De facto, há autores que defendem que doentes assintomáticos e de baixo risco poderiam ser apenas vigiados, optando por uma conduta expectante(9), com indicação de aspirina apenas nos casos com número de plaquetas inferior a 1 000 000/ mm3. Com efeito, o caso apresentado enquadra-se neste último grupo, pelo que a decisão de o manter sem aspirina é aceitável, tendo em conta o número de plaquetas e o possível risco hemorrágico que este fármaco poderia condicionar. Vários estudos(9) confirmam que a aspirina evita as complicações trombóticas e reduz os distúrbios microvasculares, tais como a eritromelalgia, acrocianose, cefaleia, tonturas, distúrbios visuais e parestesias das extremidades (palma das mãos e planta dos pés).

Para níveis de risco mais elevados, a base do tratamento são agentes redutores das contagens plaquetárias: hidroxiureia, anagrelide ou interferon alfa associados à prevenção das complicações trombóticas e hemorrágicas.

Finalmente, coloca-se a questão da possibilidade deste jovem manter a prática de futebol de forma federada pelo risco trombótico/hemorrágico a que esta patologia está associada. Com efeito, o presente contexto clínico coloca questões muito delicadas em termos de prática de desporto federado, nomeadamente pelo risco acrescido de hemorragia que um desporto de contacto como o futebol(10) condiciona. De um modo geral, a opinião dominante entre vários especialistas desta área, assim como, na literatura(10) sobre este assunto é de que a prática de futebol federado está contra-indicada.

 

BIBLIOGRAFIA

1. J.Thiele, H.M.Kvasnicka, A.Orazi, A. Tefferi, H. Gisslinger. Essential Thrombocythemia. In: WHO Classification of Tumors of Haematopoietic and Lymphoid Tissues. 4th ed. WHO; 2008. p. 48-50.         [ Links ]

2. Ayalew Tefferi. Essential Thrombocythemia and Thrombocytosis. In: John P. Greer, John Foerster, George M. Rodgers, Frixos Paraskevas, Bertil Glader, Daniel A. Arber, Robert T. Means Jr. Wintrobe`s Clinical Hematology. 12th ed. Lippincott, Williams&Wilkins; 2009. p. 1352-60.         [ Links ]

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4. RosaneI I. Bittencourt, Karin Poncelet, António Carlos C. Almeida, Katia Fassina, Tor G. Onsten. Trombocitose essencial: o que é essencial saber. Revista Brasileira de Hematologia e Hemoterapia 2010; 32:162-70.         [ Links ]

5. Brière JB. Essential Thrombocythemia. Orphanet J Rare Dis 2007; 2:3.         [ Links ]

6. Maria de Lourdes L. F. Chauffaille. Neoplasias mieloproliferativas: revisão dos critérios diagnósticos e dos aspectos clínicos. Revista Brasileira de Hematologia e Hemoterapia 2010; 32: 308-16.         [ Links ]

7. G Finnazzi and T Barbui. Evidence and expertise in the management of polycytemia vera and essential thrombocythemia. Leukemia 2008; 22:1494-502.         [ Links ]

8. Huichun Zhan, M D, and Jerry L. SpivaK, MD. The diagnosis and management of Polycytemia Vera, Essential Thrombocythemia, and Primary Myelofibrosis in the JaK2 V617F Era. Clinical Advances in Hematology & Oncology 2009;7:334-42.         [ Links ]

9. Biergegard G. Long-term management of thombocytosis in essential thrombocythaemia. Ann Hematol 2009; 88:1-10.         [ Links ]

10. Stephen g. Rice, MD, PhD, MPH, and the Council on Sports Medicine and Fitness. Medical Conditions Affecting Sports Participation. American Academy of Pediatrics. Pediatrics 2008; 121:841-48.         [ Links ]

 

CORRESPONDÊNCIA

Raquel Lopes

E-mail: raquelcrislopes@hotmail.com

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