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Nascer e Crescer

versão impressa ISSN 0872-0754

Nascer e Crescer vol.20 no.4 Porto  2011

 

Caso electroencefalográfico

 

Tânia Monteiro1, Esmeralda Martins2, Rui Chorão3

1 S. Neurologia Pediátrica, H Maria Pia, CH Porto

2 U. Metabolismo, S. Pediatria, H Maria Pia, CH Porto

3 U. Neurofisiologia Pediátrica, H Maria Pia, CH Porto

 

ABSTRACT

Introduction: The suppression-burst (SB) electroen­cephalographic pattern is rather common during the neonatal period and suggests severe encephalopathy. When significant hypoxic-ischemic insult is excluded, brain malformations and metabolic disorders have to be ruled out. Two distinctive epi­leptic syndromes are described: early epileptic encephalopathy with SB (Ohtahara syndrome) and early myoclonic epilepsy (EME). The later is frequently associated with neurometabolic disorders, one of the most common being nonketotic hypergly­cinemia (NKH).

Case report: A baby girl presented with multiple erratic clo­nic and myoclonic seizures from the second day of life, refrac­tory to antiepileptic drugs. She was hypotonic, lethargic and had episodes of apnea. The electroencephalogram (EEG) showed multiple bursts of multifocal epileptiform activity with long periods of almost flat tracing; this pattern persisted beyond the neonatal period, it was present at the last EEG performed at age four mon­ths. Barbiturate-induced coma with mechanical ventilation was induced. She died at the age of five months.

The second but not the first sample of cerebrospinal fluid (CSF) and blood revealed an increased CSF/serum glycine ra­tio (0,11 – normal<0,03). Post-morten liver tissue biopsy found a deficit at the glycine cleavage system (GCS) (6,6 mkat/ kg - nor­mal 45,0-195,0) and molecular studies detected a mutation in the gene GLDC molecular testing. This result allowed better parent’s genetic counseling.

Conclusions: Early myoclonic epilepsy presents with multi­focal seizures and SB on pattern on the EEG in the neonatal period, metabolic causes must be investigated, namely the neo­natal form of NHK. CSF and plasma aminoacids, including gly­cine levels, should be measured, simultaneously and sometimes repeatedly. Enzymatic and molecular analysis may confirm this diagnosis and are useful for parent’s genetic counseling.  

Keywords: Supression-burst EEG pattern, early myoclonic epilepsy, nonketotic hyperglycinemia

 

Apresenta-se o caso de lactente do sexo feminino, primeira filha de pais saudáveis não consanguíneos, parto eutócico às 36 semanas, Índice de Apgar 8/9/10, sem necessidade de ma­nobras de reanimação e somatometria adequada. Sem história familiar de doença neurológica.

No segundo dia de vida apresentava hipotonia e letargia e iniciou convulsões associadas a episódios de apneia. No quinto dia de vida, por agravamento progressivo, necessitou de suporte ventilatório, com transferência para uma Unidade de Cuidados Intensivos Pediátricos. À entrada apresentava crises mioclóni­cas e clónicas multifocais, hipotonia com flutuações do tónus, letargia, face inexpressiva e ausência de contacto visual. Reali­zou vídeo-EEG, que mostrava actividade epileptiforme multifocal com padrão de surto-supressão (Figuras 1 e 2). Os períodos de supressão eram assíncronos e com duração até 10 segundos ou mais. Registaram-se crises clínicas, clónicas, e crises eléctricas focais com localização variável. Este padrão persistiu para além do período neonatal (Figuras 3 e 4).

 

Figura 1 – Actividade paroxística multifocal (idade corrigida: 38 semanas 4 dias).

 

Figura 2 – Padrão de surto-supressão (idade corrigida: 38 semanas 4 dias).

 

Figura 3 – Actividade epileptiforme multifocal e registo de crises clónicas focais (idade: 4 meses).

 

Figura 4 – Persistência de actividade paroxística multifocal com trechos de supressão (4 meses de idade).

 

Fez ressonância magnética cerebral com um mês de vida, normal; repetiu aos cinco meses (atrofia difusa). Não foi realiza­da espectroscopia.

Manteve crises epilépticas refractárias à múltipla terapêuti­ca: fenobarbital, fenitoína, valproato de sódio, topiramato e piro­dixina. Necessitou de indução de coma com tiopental, mantendo ventilação mecânica com traqueostomia ao mês e meio de vida. Faleceu aos cinco meses de vida.

 

Qual o diagnóstico clínico-electroencefalográfico?

Qual a investigação complementar?

 

DIAGNÓSTICO

Epilepsia neonatal grave com padrão de surto-supressão (epilepsia mioclónica precoce)

Perante este diagnóstico é essencial excluir erros inatos do metabolismo, sendo uma das causas metabólicas mais frequentes a hiperglicinemia não cetótica (HGNC) ou encefalopatia glicínica.

Nesta doente a relação glicina no líquido cefalorraquidiano (LCR) / plasma com um mês de vida foi normal (0,03), assim como o estudo dos restantes aminoácidos no plasma e LCR. A segunda amostra, colhida aos três meses de idade, mostrou uma relação aumentada (0,11, com valor de referência <0,02).

No tecido hepático post-morten foi detectado défice no sis­tema de clivagem da glicina (6,6 μkat/ kg - normal 45,0 -195,0) e o estudo molecular com presença de uma mutação no gene GLDC, o que confirmou o diagnóstico de hiperglicinemia não cetótica (HGNC) de apresentação neonatal.

 

DISCUSSÃO

O padrão electroencefalográfico de surto-supressão, carac­terizado por uma sucessão de surtos de actividade paroxística intercalados por episódios de traçado de muito baixa amplitude ou plano é relativamente comum no período neonatal e frequen­temente associado a convulsões. Ocorre em casos de lesões anoxico-isquémicas, mas nestas é geralmente transitório, ao contrário do que acontece quando associado a malformações cerebrais ou doenças metabólicas.(1)

O síndrome de Ohtahara, também conhecido por encefa­lopatia epiléptica infantil precoce, é uma entidade rara, quase sempre associada a lesões estruturais graves. As crises miocló­nicas são raras, sendo frequentes os espasmos tónicos e crises focais. Na maioria dos casos o prognóstico é mau, com epilepsia refractária.(1)

A epilepsia mioclónica precoce, como no caso apresentado, manifesta-se com mioclonias erráticas e crises focais motoras. Há casos criptogénicos e até familiares, mas importa reter que se associa muitas vezes a doenças neurometabólicas – mais fre­quentemente HGNC, mas também a acidúrias orgânicas (D-gli­cérica, metilmalónica, isovalérica e propiónica). (1,4)

Na forma neonatal de HGNC, além do padrão de crises epilépticas, são característicos a hipotonia, letargia e apneia de causa central. (2-4)

A hiperglicinemia não cetótica é uma doença de transmissão autossómica recessiva em que ocorre um defeito no sistema de clivagem da glicina (SCG) que leva à sua acumulação nos te­cidos corporais, nomeadamente no cérebro, sendo responsável pela maioria dos sintomas, principalmente no período neonatal. (2-4) O SCG é um complexo de quatro proteínas (P,H,T,L), localiza­do no interior da membrana mitocondrial do fígado, rim, cérebro e placenta. A maioria das mutações ocorrem no gene da descarbo­xilase da glicina GLDC (locus 9p22, codifica a P-proteína, 70-75% dos casos). Estão descritas também mutações no gene AMT (lo­cus 3p21.2-p21.1, codifica a T-proteína, cerca de 20%) e GCSH (locus 16q23.2, codifica a H-proteína, em menos de 1%).(2)

O diagnóstico faz-se pelo aumento de glicina na urina, plas­ma e líquor, na ausência de uma acidúria orgânica, com aumen­to da relação glicina líquor/plasma (3,4) (diagnóstico se >0,08; se >0,04 requer pesquisa do défice enzimático do SCG (biópsia de fígado ou em linfoblastos) ou estudo molecular. Este, se bem que muitas vezes não necessário para o diagnóstico, interessa sobretudo para aconselhamento genético. (4)

Existem outras duas formas desta doença; uma rara, tran­sitória, com o mesmo fenótipo inicial da neonatal e uma forma tardia.(4)

As alternativas terapêuticas disponíveis são de eficácia li­mitada: a dieta hipoproteica; o benzoato de sódio, que promove a diminuição da glicina através da eliminação renal, principal­mente a nível plasmático; antagonistas do receptor do NMDA, como o dextrometorfano (actualmente não comercializado), que inibe o efeito excitotóxico da glicina no cérebro, sendo um poten­te antiepiléptico em alguns casos, e a quetamina que parece me­lhorar de forma parcial os sintomas neurológicos e a necessida­de de suporte ventilatório. As benzodiazepinas (diazepam) são consideradas mais eficazes que outros antiepilépticos, devido ao efeito competidor dos receptores de glicina. (3,4) Os outros antie­pilépticos são ineficazes; em particular, o valproato está contra-indicado na HGNC, por aumentar a concentração de glicina no líquor e, assim, as complicações neurológicas. (2)

O prognóstico destes doentes é, excepto nas formas transi­tórias, muito reservado, com mortalidade significativa no primeiro ano de vida e sequelas neurológicas importantes nos sobreviventes.(4)

 

CONCLUSÃO

O padrão electroclínico da epilepsia mioclónica precoce leva a suspeitar de doença metabólica, sendo a hiperglicinemia não cetótica uma das mais comuns. A investigação deve ser exaustiva nestes casos, de forma permitir o tratamento adequa­do precoce e o aconselhamento genético.

 

BIBLIOGRAFIA

1. Aicardi J, Ohtahara S. Severe neonatal epilepsies with suppression-burst pattern. In: Roger J, Bureau M, Dravet Ch, Genton P, Tassinari CA, Wolf P. Epileptic syndromes in in­fancy, childhood and adolescence. 4th ed. Montrouge: John Libbey Eurotext; 2005. p. 39-50.         [ Links ]

2. Dhamija R, Mack, JK. A 2-day-old baby girl with encepha­lopathy and burst suppression on EEG. Neurology 2011;77: e16-9.         [ Links ]

3. Neonatal non-ketotic hyperglycinemia: Report of five patients. Pediatr Int 2008;50: 121-3.         [ Links ]

4. Hoover-Fong JE, Shah S, Van Hove JL, Applegarth D, Toone J, Hamosh A. Natural history of nonketotic hyperglycinemia in 65 patients. Neurology;63: 1847-53.         [ Links ]

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