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Nascer e Crescer

versão impressa ISSN 0872-0754

Nascer e Crescer vol.20 no.3 Porto  2011

 

Tratamento dietético no metabolismo energético

 

Júlio César Rocha1

1 Centro de Genética Médica Jacinto de Magalhães

2 Dep. Genética, Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge, IP

 

O metabolismo representa um conjunto de transformações químicas que ocorrem no organismo, através de reacções catalisadas por enzimas, constituindo as vias metabólicas. O metabolismo contempla uma fase de degradação ou de catabolismo, na qual os glícidos, lípidos e proteínas são convertidos em produtos mais simples, libertando energia na forma de ATP, calor e equivalentes redutores, bem como uma fase de síntese ou anabolismo, na qual os precursores mais simples permitem sintetizar moléculas mais complexas tais como lípidos, polissacarídeos, proteínas e ácidos nucleicos. Em condições fisiológicas, as proteínas não constituem um substrato preferencial das vias metabólicas responsáveis pela obtenção de energia. Contrariamente, os glícidos e os lípidos são os nutrientes por excelência com função energética. Nesse sentido, esta apresentação terá como objectivo discutir as abordagens da terapêutica nutricional e dietética em alguns exemplos de doenças hereditárias do metabolismo causadas pelo défice de uma das enzimas envolvidas nas vias metabólicas relacionadas com estes dois nutrientes.

Em situações de jejum, o nosso organismo socorre-se preferencialmente das reservas de ácidos gordos armazenados ao nível do tecido adiposo para fazer face às necessidades celulares de ATP. Paralelamente, os ácidos gordos constituem igualmente uma importante fonte energética para o músculo cardíaco e esquelético. A oxidação em beta dos ácidos gordos ocorre a nível mitocondrial, após o seu transporte, o qual é mediado pela carnitina. A oxidação dos ácidos gordos ocorre em ciclos com­postos por 4 passos enzimáticos, sendo que no final de cada ciclo, é libertada uma molécula de acetil-CoA, sendo encurtado o ácido gordo em 2 carbonos. As enzimas envolvidas em cada ciclo de oxidação são específicas para o comprimento da cadeia dos ácidos gordos. Por exemplo, no primeiro passo enzimático, as desidrogenases são específicas para ácidos gordos de ca­deia muito longa (VLCAD), média (MCAD) e curta (SCAD). No terceiro passo enzimático, volta a ocorrer uma reacção de de­sidrogenação, também específica para os AG de cadeia curta (SCHAD) e longa (LCHAD). Estas reacções de desidrogenação serão as responsáveis pela formação de equivalentes redutores (FADH2 e NADH) os quais levarão posteriormente à síntese de ATP na cadeia respiratória. A propósito do metabolismo da oxidação dos ácidos gordos, serão focados aspectos relativos ao tratamento dos défices em MCAD e LCHAD. Nestes doentes, dada a impossibilidade de proceder adequadamente à oxidação dos ácidos gordos, as condições de jejum prolongado ou de infecção aguda podem precipitar crises agudas com hipoglicemia e encefalopatia como denominadores comuns. Adicionalmente, poderá também surgir cardiomiopatia, fraqueza muscular e episódios de rabdomiólise. Mais ainda, é de realçar o facto de, dada a impossibilidade de proceder à síntese adequada de corpos cetónicos (3-hidroxibutirato e acetoacetato), poder ocorrer hipoglicemia acompanhada de hipocetose. Neste sentido, os princípios gerais do tratamento nutricional assentarão na limitação dos períodos de jejum, bem como, no exemplo da LCHAD, no controlo adequado da ingestão de ácidos gordos de cadeia longa e na suplementação em ácidos gordos de cadeia média. Assim, em termos dietéticos, será fundamental identificar os alimentos mais ricos em gordura, especialmente constituída por ácidos gordos de cadeia longa, de modo a poder fazer o controlo da sua ingestão, confrontando esses dados com os relativos ao controlo metabólico.

Nas situações de activação das vias de oxidação dos AG, e porque o cérebro não consegue, por mecanismos ainda não completamente esclarecidos, oxidar ácidos gordos, há neces­sidade de formar outros compostos que funcionem como fonte de energia alternativa. Estes compostos, designados de cor­pos cetónicos são produzidos a partir de acetil-CoA, através da síntese e posterior degradação do 3-hidroxi-3-metilglutaril-CoA (HMG-CoA). Uma outra doença metabólica pode surgir na sequência do défice na enzima líase do HMG-CoA: Aciduria 3-hidroxi-3-metilglutárica. Esta doença manifesta-se igualmente por hipoglicemia hipocetótica, recomendando-se assim, do mesmo modo, a limitação de longos períodos de jejum. Paralelamente, recomenda-se igualmente a restrição do aporte lipídico, bem como o controlo do aporte do aminoácido leucina, na medida em que a enzima em questão também participa na via de catabolis­mo do referido aminoácido.

A gliconeogénese e a glicogenólise são também duas outras vias metabólicas cruciais no metabolismo energético. Em conjunto, ambas terão como objectivo principal, o auxílio na regulação da concentração sanguínea de glicose, especialmente nos perí­odos de jejum, assegurando desta forma, glicose em quantidade suficiente para os órgãos glicodependentes. A glicogenose tipo I constitui uma doença hereditária do metabolismo do glicogénio causada pela deficiência da enzima glicose-6-fosfatase (tipo Ia) ou do sistema de transporte associado à glicose-6-fosfato (Ib).

Nestas condições, a libertação de glicose pelo fígado fica comprometida, podendo surgir hipoglicemia após curtos períodos de jejum. O atraso de crescimento e a hepatomegalia têm como causa primordial a infiltração lipídica a nível hepático, enquanto, o aumento da taxa da glicólise, acarretará acidose láctica, asso­ciada a dislipidemia, caracterizada principalmente por aumento das concentrações séricas de triglicerídeos. Particularmente na glicogenose tipo Ib, a neutropenia e a alteração da função dos neutrófilos aumenta significativamente o risco de infecção, mais notória ao nível da pele e tracto respiratório, constituindo por esse motivo um factor de aumento significativo da morbilidade. Em ambos os casos, o objectivo primário passará pela gestão da glicemia, tentando optimizar o crescimento e minimizando as alterações metabólicas secundárias. O interesse das várias abordagens terapêuticas (nutrição entérica contínua nocturna, refeições frequentes, administração de amido de milho cru, entre outras) deve ser discutido em equipa multidisciplinar, no sentido de encontrar a melhor solução para o doente em particular. Em suma, o tratamento dietético deve proporcionar ao doente uma adequada gestão da sua glicemia, uma vez que o fígado não o conseguirá fazer por força da doença instalada.

O último exemplo seleccionado para elucidar o papel do nutricionista no tratamento das doenças hereditárias do metabolismo energético consiste na doença causada pelo défice no complexo enzimático da desidrogenase do piruvato. Sendo este complexo enzimático mitocondrial responsável pela oxidação do piruvato a acetil-CoA, o seu défice impossibilitará a utilização adequada das fontes glicídicas como substrato para a síntese de ATP. É assim natural a constatação do facto do prognóstico da doença não ser animador, manifestando-se com ataxia, hipo­tonia e convulsões, embora este quadro possa variar de acordo com a severidade do défice. Na medida em que, como referido, o cérebro não consegue fazer uso dos ácidos gordos como fonte de energia, há necessidade de forçar o fígado a sintetizar corpos cetónicos que desta forma possam suprir as necessidades cerebrais em ATP. Esta abordagem nutricional tem por base a adop­ção de uma dieta cetogénica, com limitação franca do aporte glicídico e elevação significativa do aporte lipídico. Paralelamente, a administração de doses farmacológicas de tiamina poderá surtir algum efeito, na medida que a vitamina constitui um dos cofactores essenciais ao bom funcionamento do complexo enzimático. A elevação do lactacto, piruvato e alanina, podem ser úteis no diagnóstico bem como na monitorização do tratamento, o qual não pode ser considerado amplamente efectivo.

Das várias centenas de doenças hereditárias do metabolismo já descritas até aos dias de hoje, há que realçar o facto de muitas delas estarem justamente envolvidas nas vias do metabolismo energético. Apenas foram elencados alguns exemplos a título de demonstração da diversidade de abordagens nutricionais e dietéticas que terão de ser adoptadas como coadjuvantes no tratamento dos doentes afectados. A monitorização clínica frequente, a análise crítica dos resultados analíticos e a discus­são multidisciplinar das abordagens terapêuticas seleccionadas, constituem pedras basilares no seguimento efectivo destes do­entes, no sentido de optimizar o seu prognóstico.

 

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