SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.20 número2Pancitopenia num lactenteUnexplained Physical Complaints índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Nascer e Crescer

versão impressa ISSN 0872-0754

Nascer e Crescer v.20 n.2 Porto jun. 2011

 

Fasceíte necrotizante e síndrome de choque tóxico estreptocócico numa criança com varicela

 

Otília Cunha1, Teresa Cunha da Mota1, Milagros Garcia Lopéz1, Elsa Santos1, Lurdes Lisboa1, Helder Morgado2, Filipa Flôr de Lima3, Cristina Castro3, Augusto Ribeiro1

1 Serviço de Cuidados Intensivos Pediátricos

2 Serviço de Cirurgia Pediátrica

3 Serviço de Pediatria - H São João

CORRESPONDÊNCIA

 

RESUMO

Introdução: A fasceíte necrotizante é uma infecção grave dos tecidos moles, geralmente causada por Streptococcus pyogenes. É uma complicação rara da varicela e o diagnóstico numa fase precoce é pouco frequente.

Caso clínico: Apresenta-se o caso clínico de uma criança de oito anos de idade com varicela, complicada de fasceíte necrotizante e síndrome de choque tóxico estreptocócico, que necessitou de procedimentos invasivos e de um internamento prolongado em Unidade de Cuidados Intensivos Pediátrica.

Conclusão: Os autores alertam para a importância do diagnóstico precoce das potenciais complicações da varicela, nomeadamente da fasceíte necrotizante, pois a precocidade da actuação é determinante para o seu prognóstico. A fasceíte necrotizante deve ser considerada sempre que uma criança com varicela se apresente com eritema, calor e induração da pele e tecidos moles, associado a uma recorrência da febre ou à sua persistência ao quarto dia após o início do exantema.

Palavras-chave: varicela, fasceíte necrotizante, Streptococcus pyogenes.

 

Necrotizing fasciitis and streptococcal toxic shock in a child with chickenpox infection

ABSTRACT

Introduction: The necrotizing fasciitis, a severe infection of soft tissues, usually caused by Streptococcus pyogenes, is a rare complication of chickenpox; early diagnosis is uncommon.

Case report: We present a case of an eight-year-old child with chickenpox, complicated by a necrotizing fasciitis and streptococcal toxic shock, which required invasive pro­cedures and prolonged hospitalization in an Intensive Care Unit Pediatric.

Conclusions: The authors emphasize the importance of the potential complications of chickenpox, particularly the necrotizing fasciitis, as an early diagnosis and intervention are crucial for the outcome. The necrotizing fasciitis should be consid­ered whenever a child with chickenpox presents with erythema, warmth, and induration of the skin and soft tissues, associated with a recurrence of fever or its persistence by the fourth day after the rash onset.

Keywords: chickenpox, necrotizing fasciitis, Streptococcus pyogenes.

 

INTRODUÇÃO

A varicela na criança é habitualmente uma doença benigna e autolimitada. Contudo, pode associar-se a complicações fatais. A varicela constitui o factor de risco mais importante para a aquisição de doença invasiva por Streptococcus pyogenes. Esta relação parece dever-se ao facto da varicela lesar a integridade da barreira cutânea, criando assim uma porta de entrada, bem como à imunodepressão causada pelo próprio vírus da varicela.(1)

Também alguns autores defendem um maior risco desta complicação associado ao uso de anti-inflamatórios não esteróides em crianças com varicela.(2,3)

A fasceíte necrotizante é uma doença invasiva causada habitualmente por Streptococcus pyogenes, embora o Staphylococcus aureus também possa estar implicado.(4) Caracteriza-se por uma destruição rápida e consequente necrose da fáscia muscular e tecido subcutâneo, atingindo por vezes a epiderme. Pode complicar-se de Síndrome de choque tóxico (SCT) que se caracteriza por início súbito de choque, falência multiorgânica e uma elevada mortalidade (30-60%).(5) O seu reconhecimento atempado e o tratamento com antibioterapia sistémica com cobertura anti-estreptocócica e anti-estafilocócica, bem como o desbridamento cirúrgico precoce, são fundamentais para redução da morbilidade e mortalidade.

Os autores pretendem alertar para a importância do diag­nóstico precoce das potenciais complicações da varicela, nomeadamente da fasceíte necrotizante, pois a precocidade da actuação é determinante para o prognóstico.

 

CASO CLÍNICO

Criança de oito anos, sexo feminino, raça branca, com antecedentes de asma, medicada habitualmente com budesonido e formoterol, sem vacinas extra-calendário. Irmão de quatro anos com varicela duas semanas antes da sua admissão hospitalar.

Cinco dias antes da admissão, iniciou febre associada a exantema vesiculopapular generalizado. Foi observada no segundo dia de doença pelo seu médico assistente, que diagnos­ticou varicela e medicou com aciclovir oral. Para o controlo da febre recorreu ao uso de ibuprofeno alternado com paracetamol. Ao quinto dia de evolução, mantinha febre elevada e surgiram lesões de celulite na parede torácica anterior direita, registando­se um agravamento clínico, com mal-estar geral, períodos de confusão e agitação, dispneia, diarreia e noção de baixa diurese, pelo que recorreu ao serviço de urgência.

Na admissão, apresentava-se febril com temperatura axilar 40,4ºC, consciente, mas desorientada (Escala de Glasgow de 13). Tinha um aspecto tóxico com sinais de má perfusão periférica, taquipneia (FR 60 cmp), taquicardia (FC 150-180 bpm), tensão arterial não mensurável e saturação transcutânea de O2 de 90% em ar ambiente. A auscultação cardiopulmonar não apresentava alterações. Eram evidentes lesões de varicela dispersas pelo corpo e sinais de celulite na região torácica anterior direita. Iniciou oxigenioterapia com O2 a 15 l/min por máscara com reservatório, volemização com soro fisiológico (4 bólus de 20 ml/kg) e antibioterapia com ceftriaxone e clindamicina endovenosos. Por deterioração do estado de consciência e hipotensão refractária, iniciou suporte ventilatório e suporte inotrópico com dopamina, tendo sido transferida para o Serviço de Cuidados Intensivos Pediátricos (SCIP).

Na avaliação analítica apresentava: hemoglobina 13.5 g/dl; leucócitos 14200/µl com 71.2% de neutrófilos, plaquetas 158000/µl; APTT 67.6”, TP 20.6”, fibrinogénio 394 mg/dl, D-dímeros 13,56µg/ml, glicose 37 mg/dl, ureia 1.36 g/l, creatinina 36.2 mg/ dl, sódio 127 mEq/l, potássio 5,1 mEq/l, CPK 1440 U/l. TGO 1061 U/l, TGP 122U/l. Proteína C reactiva 319.2 mg/l. A gasometria venosa revelou: pH: 7.17, pCO2 37.2 mmHg, pO2 22.4 mmHg, HCO3 14.4 mmol/l, lactatos 6.81 mmol/l. Perante a hipótese de sindroma de choque tóxico associou-se vancomicina.

 Inicialmente no SCIP, apresentou choque refractário a ami­nas, que respondeu bem fl hidrocortisona (100 mg/dia, três dias). Necessitou de suporte politransfusional com plasma fresco con­gelado, antitrombina III, plaquetas e concentrado eritrocitário.

No segundo dia de internamento, por insuficiência renal aguda (oligoanúria, hipercaliémia e anasarca) necessitou de hemodia­filtração veno-venosa contínua, que manteve durante 33 dias.

Dado o agravamento dos sinais inflamatórios/infecciosos da parede torácica anterior sugestivos de fasceíte necrotizante, foi realizada fasciotomia ao sétimo dia de internamento. Posteriormente necessitou de desbridamento cirúrgico regular, três vezes por semana, e tratamento local com sistema de pressão negativa (Sistema EZCare). (Figura 1)

 

FIGURA 1 - Ferida torácica em fase de cicatrização (Sistema de EZCare)

 

Na hemocultura foi isolado um Streptococcus pyogenes sensível ao tratamento instituído.

O aparecimento de um exantema com descamação das mãos (Figura 2) na segunda semana de internamento constituiu mais um dado a favor de SCT estreptocócico.

 

FIGURA 2 - Descamação das mãos em criança com SCT estreptocócico

 

Foi submetida a sedo-analgesia e relaxamento muscular com perfusão de midazolam, fentanil e vecurónio durante o período em que necessitou de ventilação mecânica, tendo sido possível a extubação ao 55º dia de internamento. Necessitou de nutrição parentérica durante cerca de um mês e meio, tendo posteriormente tolerado alimentação por sonda naso-duodenal, que manteve durante 25 dias.

Como outras complicações, teve uma pneumonia nosocomial por Stenotrophomonas maltophilia e outra por Pseudomonas aeruginosa, uma trombose da veia femoral esquerda (no local de inserção do cateter da hemodiafiltração) e hipertensão arterial.

Posteriormente teve uma evolução clínica favorável, verificando-se a normalização da função hepática e da função renal nas terceira e sexta semanas de internamento, respectivamente. A proteína C reactiva normalizou a partir da quarta semana de internamento.

Teve alta hospitalar 89 dias após a admissão. FL data da alta encontrava-se deprimida, sob tratamento com FL uoxetina e com uma fraqueza muscular generalizada (miopatia dos cuidados intensivos), dependente de cadeira de rodas. Mantinha necessidade de ventilação não invasiva nocturna, sem necessidade de aporte suplementar de oxigénio. Encontrava-se normotensa (sob tratamento com amlodipina) e com diurese preservada.

 

DISCUSSÃO

A fasceíte necrotizante é um diagnóstico a considerar sempre que uma criança com varicela se apresente com eritema, calor e induração da pele e tecidos moles, associado a uma recorrência da febre ou à sua persistência ao quarto dia após o início do exantema.(6)

As frustres manifestações cutâneas iniciais podem dificultar o seu diagnóstico, sendo frequentemente subdiagnosticada e confundida com celulite.(7) No entanto, a rápida progressão e extensão da lesão inflamatória local, a presença de anestesia central, equimose, crepitações, bolhas ou necrose são sugestivas de fasceíte necrotizante.(8) Quando estas manifestações se associam a exantema escarlatiniforme, vómitos, diarreia, mialgias, depressão do estado de consciência e taquicardia, deve-se suspeitar de SCT estreptocócico.

Alguns autores defendem que o uso de anti-inflamatórios não esteróides em crianças com varicela aumenta o risco de fasceíte necrotizante, alegando que o seu uso, ao mascarar os sintomas (dor), pode atrasar o diagnóstico e, ao suprimir as funções granulocitárias (quimiotaxia e fagocitose), pode aumentar o risco de infecções mais graves.(2,3)

Esta criança apresentava alguns factores de risco para doença invasiva por Streptococcus pyogenes, nomeadamente: tratar-se do segundo caso índex de varicela, o uso crónico de corticóide inalado, a persistência de febre cinco dias após o aparecimento do exantema e o uso de anti-inflamatório não esteróide (ibuprofeno).

O caso clínico apresentado, pelo isolamento do Streptococcus pyogenes no sangue, a presença de choque, falência renal, hepática, coagulação intravascular disseminada e fasceíte necrotizante preenche critérios de SCT estreptocócico.

Com a apresentação deste caso, os autores alertam para uma complicação rara, mas potencialmente fatal da varicela, cujo diagnóstico precoce permite uma intervenção atempada, fundamental para a redução da sua morbilidade e mortalidade.

 

BIBLIOGRAFIA

1. Laupland KB, Davies HD, Low D, Schwartz B, Green K, Mc-Geer A. Invasive group A streptococcal  disease in children and association with varicella-zoster virus infection. Pediatrics 2000; 105:1-7.         [ Links ]

2. Lesko SM, O’Brien KL, Schwartz B, Vezine R, Mitchell AA. Invasive group A streptococcal infection and nonsteroidal antiinflammatory drug use among children with primary varicella. Pediatrics 2001; 107:1108-15.         [ Links ]

3. Zerr DM, Alexander ER, Duchin JS, Koutsky LA, Rubens CE. A case-control study of necrotizing fasciitis during primary varicella. Pediatrics 1999; 103: 783-90.         [ Links ]

4. Gerstron AA. Varicella-zoster virus infection. Pediatr in Rev 2008; 29:5-11.         [ Links ]

5. Morelli JG. Cutaneous bacterial infections. In: Behrman RE, Kliegman RM, Jenson HB, Stanton BF. Nelson Textbook of Pediatrics. 18th ed. Philadelphia: Saunders; 2007; 2738-9.         [ Links ]

6. Schwart B, Breiman R, Hardegree MC, Jacobs R, Orenstein W, Rabinovich NR. Severe invasive group A steptococcal infections: a subject review. Pediatrics 1998; 101:136-40.         [ Links ]

7. Hsieh T, Samson LM, Jabbour M, Osmond M. Necrotizing fasciitis in children in eastern Ontário: a case-control study. CMAj 2000; 163;393-6.         [ Links ]

8. Prego J, Sehabiague G, Leonardis D, Gutiérrez C. Varicela complicada con fascitis necrotizante. Importancia de un diagnóstico oportuno. Arch Pediatr Urug 2001; 72(S): S84-S87.         [ Links ]

9. Clark P, Davidson D, Letts M, Lawton L, Jawadi A. Necrotizing fasciitis secondary to chickenpox infection in children. Can J Surg 2003; 26: 9-14.         [ Links ]

10. Escobar E, Villaescusa J, Pardillo R, Fernández R, Moreno C, Hernández A, Garcia O. Fascitis necrosante por Streptococcus pyogenes. An Pediatr (Barc) 2006; 64: 167-9.         [ Links ]

 

CORRESPONDÊNCIA

Otília Cunha

E-mail:cunha.otilia@gmail.com

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons