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Revista Portuguesa de Imunoalergologia

versão impressa ISSN 0871-9721

Rev Port Imunoalergologia vol.25 no.1 Lisboa mar. 2017

 

ARTIGO ORIGINAL

 

Reações anafiláticas em crianças admitidas numa Unidade de urgência pediátrica

Anaphylactic reactions in children admitted to a pediatric emergency department

 

Andreia Filipa Mota1, Barbára Kong Cardoso2, Maria Fátima Jordão2, Elza Tomaz2, Luís Caturra1, Filipe Inácio2

1 Serviço de Pediatria, Hospital de São Bernardo, Centro Hospitalar de Setúbal

2 Serviço de Imunoalergologia Hospital de São Bernardo, Centro Hospitalar de Setúbal

 

Contacto

 

RESUMO

A anafilaxia é uma reação de hipersensibilidade sistémica, de início súbito, clínica e gravidade variáveis, cujo diagnóstico é clínico. Sendo uma emergência médica, é um desafio diagnóstico, particularmente em pediatria. Os autores realizaram um estudo retrospetivo com consulta dos processos clínicos das 38 978 crianças admitidas num serviço de urgência pediátrica hospitalar (SUPH) de 01/01/2010 e 31/12/2014, com o objetivo de calcular a incidência e caracterizar a população e as reações anafiláticas. Dos processos analisados identificaram‑se 27 episódios de anafilaxia em 24 crianças: 54 % do sexo feminino; média de idade 5,5 anos. A incidência foi de 69,2/100 000, em 5 anos, tratando‑se do primeiro episódio em 10 crianças. Clinicamente todas as crianças apresentaram envolvimento cutâneo e 74 % respiratório, 33 % gastrointestinal e 15 % cardiovascular. Em 63 % das reações os alimentos foram a causa identificada, em 11 % a picada de himenóptero e em 7 % a aplicação de produtos cutâneos. As opções terapêuticas foram: 93 % anti‑histamínicos H1, 89 % corticoides, 70 % oxigénio suplementar, 59 % adrenalina, 44 % salbutamol inalado e 27 % soro fisiológico, em diferentes associações. Em dez episódios houve necessidade de internamento.

Onze crianças (46 %) foram referenciadas à consulta de imunoalergologia. Não se verificaram óbitos.

A anafilaxia é causa rara de recurso ao SU, sendo a alergia alimentar a causa mais comum no grupo analisado.

Apenas em 59 % dos casos houve administração de adrenalina, sendo que as recomendações internacionais advogam o seu uso precoce em todos os casos. Menos de metade das crianças foram referenciadas à consulta de imunoalergologia, atitude que impossibilita a investigação para diagnóstico etiológico e o desenho de um plano de prevenção e terapêutica adequado.

Palavraschave: Adrenalina, alergia, anafilaxia, pediatria, serviço de urgência.

 

ABSTRACT

Anaphylaxis is a systemic acute hypersensitivity reaction, showing a large variation in clinical presentation and severity. It is a medical emergency requiring an immediate recognition and represents a challenge mainly in younger population. The aim of our study was to evaluate the incidence of anaphylaxis and characterize it in children admitted to a pediatric emergency department during a 5‑year period. Revision of 38.978 files of patient with less than 18 years admitted to the pediatric emergency department between 01/01/2010 and 31/12/2014 was performed. From the analyzed data 27 anaphylactic reactions were identified; 24 children‑54 % females, mean age 5,5 years were involved. For 10 of them this was a first episode.

The incidence was 69.2/100 000 in 5 years. All children had cutaneous manifestations and 74 % had respiratory, 33 % gastrointestinal and 15 % cardiovascular involvement. In 63% of the reactions food was the eliciting factor, in 11 % hymenoptera stings and in 7 % skin care products. The treatment options were in 93 % a first generation antihistaminic, in 89 % corticosteroid, in 70% supplementary oxygen, in 59 % adrenaline, in 44 % inhaled salbutamol and in 27 % normal saline solution, in different combinations. Hospitalization was required in 10 episodes. Eleven children (46 %) were referred to an allergy consultation. There was no mortality. Anaphylaxis is a rare reason for admission in the emergency department. Food related reactions were the most common cause in our study group. Only in 59% of the episodes adrenaline was used, in spite of the guidelines recommend it as first line of treatment, for every anaphylactic reaction. Less than 50% of the children were referred to a specialty consultation, lacking the majority the access to both, a correct diagnostic workup and a personalized emergency and therapeutic plan.

Key‑words: Adrenaline, allergy, anaphylaxis, emergency department, pediatrics.

 

INTRODUÇÃO

A palavra anafilaxia deriva do grego ανα‑/ana (sem) e φύλαξις/filaxia (proteção) e foi usada pela primeira vez em 1902 por Portier e Richet quando definiram reações fatais em cães, após administração de extrato de anemona‑do‑mar1.

A anafilaxia define uma reacção de hipersensibilidade sistémica, de início súbito, cuja apresentação clínica e gravidade se distribuem num amplo espetro, desde a resolução espontânea ao desfecho fatal27.

A ambiguidade e disparidade dos sistemas de codificação, a ausência de dados e exames laboratoriais específicos que permitam o diagnóstico rápido, reprodutível e inequívoco, a existência de estudos epidemiológicos baseados apenas em populações distintas são fatores que impossibilitam a generalização dos dados e o conhecimento da sua verdadeira incidência e prevalência24,612.

Muito embora o verdadeiro impacto da doença seja desconhecido23,6,89,10,12 e o diagnóstico seja um desafio clínico, particularmente em idade pediátrica23,13, a anafilaxia é uma emergência médica transversal a todas as idades, impondo‑se o conhecimento do algoritmo de atuação a todos os médicos, especialmente aos que trabalham em serviços de urgência2,13.

Após a identificação da reação anafilática e com o intuito de evitar novos episódios, os doentes devem ser encaminhados à consulta de imunoalergologia, com o objectivo de identificação do agente etiológico e delineação de estratégias de evicção78,1416.

Os autores pretendem expor o que julgam ser a ponta do icebergue de uma patologia de importância crescente em idade pediátrica, sensibilizando os profissionais de saúde para o estabelecimento do diagnóstico e atuação em conformidade terapêutica. Concomitantemente, pretendem alertar para a dificuldade de codificação que subestima o peso da morbimortalidade e custos em saúde associados a esta patologia.

OBJETIVOS

Avaliar a incidência da anafilaxia no serviço de urgência pediátrica hospitalar (SUPH) e caracterizar a população e as reações anafiláticas quanto à etiologia, às manifestações clínicas e ao seu tratamento e encaminhamento à data da alta.

MATERIAL E MÉTODOS

Estudo retrospetivo baseado na análise dos processos clínicos das crianças/adolescentes (0 aos 17 anos e 364 dias) que recorreram ao SUPH do Centro Hospitalar de Setúbal, EPE – Hospital de São Bernardo, Portugal, por anafilaxia, no período de 1 de janeiro de 2010 a 31 de dezembro de 2014 (5 anos).

Solicitou‑se ao departamento de estatística o fornecimento dos dados de diagnóstico do sistema informático ALERT®, segundo o International Classification of Diseases 9 (ICD 9), dos utentes admitidos no serviço de urgência pediátrico no referido período. Selecionaram‑se os códigos: 909.0, 995.3, 995.6, E905.3, E906.4, E930.0, E930.9, E931.7, E942.0, E945.6, E947.9, E948.0, E948.4, E948.6, E948.8‑E948.9, E949.6, E949.9, V14, V14.0, V14.6, V14.9 e V15.0. Analisaram‑se os processos clínicos dos 156 episódios selecionados, identificando‑se 27 episódios de anafilaxia (códigos ICD 9: 995, 995.3, 995.6, V14.9 e V15.0). Base de dados e análise estatística realizada em Microsoft Office Excel 2007®.

O estudo teve a necessária autorização do Departamento de Ética e das direções clínicas dos Serviços de Imunoalergologia e Pediatria do Centro Hospitalar de Setúbal, EPE.

RESULTADOS

Admitiram‑se no SUPH 38 978 crianças, num total de 188 172 episódios de urgências pediátricas‑médicas, 27 dos quais por anafilaxia, envolvendo 24 crianças, 54 % (n=13) do sexo feminino e média de idade de 5,5 anos (±5,216), entre os 5 meses e os 16 anos. A incidência de anafilaxia foi de 69,2/100 000 em 5 anos.

Em metade das crianças tratava‑se do primeiro episódio de reação anafilática. Clinicamente, observou‑se envolvimento cutâneo em 100 % das crianças e respiratório em 74 %, gastrointestinal em 33 % e cardiovascular em 15 % (Figura 1).

Em 63 % dos casos a etiologia identificada foi de origem alimentar, 53 % dos quais às proteínas do leite de vaca, em 1 1% deveu‑se à picada de himenóptero (abelha) e em 7 % à aplicação de produtos cutâneos. Em 19 % dos episódios não se identificou o agente etiológico (Figura 2).

Em todos os episódios foram adotadas medidas farmacológicas.

O uso isolado dos anti‑histaminicos verificou‑se em 7,4 % dos episódios ligeiros, isto é, manifestando‑se por prurido mucocutâneo generalizado e/ou broncospasmo ligeiro sem hipoxemia e/ou taquicardia ligeira, enquanto a adoção de dois ou mais fármacos se verificou em 92,6 %. O recurso a todas as classes farmacológicas verificou‑se em 11,1 %, tendo todas as crianças sido admitidas na Unidade de Internamento de Curta Duração (UICD) (Figura 3).

Em 63 % dos episódios as crianças tiveram alta para domicílio, tendo tido um período de observação inferior a 6‑8 horas. Três destas crianças (18 %) foram referenciadas à consulta de Imunoalergologia. Das crianças não referenciadas à consulta de Imunoalergologia (54 %), em 7 tratava‑se do primeiro episódio de reação anafilática.

Dez crianças, 37 % dos episódios de anafilaxia, foram admitidas na UICD. Em três das crianças era o primeiro episódio de reação anafilática. À data da alta, 80 % foram referenciadas à consulta de Imunoalergologia. Em 58,3 % dos casos houve notificação informática da alergia (SUPH [45,8 %], UICD ou consulta externa [12,5 %]). O dispositivo de autoadministração de adrenalina foi prescrito a três crianças à data da alta e a cinco em consulta posterior.

Não houve mortalidade.

DISCUSSÃO

O National Institute of Allergy and Infectious Disease (NIAID), a Food Allergy and Anaphylaxis Network (FAAN) e a European Academy of Allergy and Clinical Imunology (EAACI) definiram recentemente os critérios de diagnostic da anafilaxia8,11, subdividindo‑a em alérgica e não alérgica3,8. A anafilaxia alérgica, mediada por IgE, resulta da libertação de mediadores dos mastócitos e/ou basófilos após exposição a um alergénio (alimento, antibióticos, picada de himenóptero, látex, entre outros), para o qual o doente se encontra sensibilizado. A anafilaxia imunológica, não IgE mediada, é rara em idade pediátrica4,6,8,17, resulta da citotoxicidade mediada por IgM ou IgG, imunocomplexos, ativação do complemento ou da cascata de coagulação3,6,8. A ativação direta dos mastócitos pelo exercício físico, frio ou após contacto com grandes quantidades de análogos da histamina ou seus derivados, pode originar anafilaxia de causa não imunológica4,8. Classifica‑se como anafilaxia idiopática a existência de pelo menos seis episódios de anafilaxia sem agente etiológico identificado durante um ano, ou mais de dois episódios de anafilaxia em dois meses. A multiplicidade de agentes prováveis e os diferentes mecanismos subjacentes à anafilaxia impede, em alguns casos, o conhecimento da etiologia3,6,78.

A incidência e prevalência da anafilaxia na população em geral durante a vida, ainda que inferida, estima‑se entre 0,05 a 2 %45,7,17.

A escassez de dados em idade pediátrica impede o conhecimento da prevalência e incidência nesta faixa etária6, muito embora se verifique um aumento recente no número de hospitalizações e na mortalidade2,4,8,17. A barreira dos programas de codificação de diagnósticos médicos, que não preveem o diagnóstico de “anafilaxia”, mas apenas de alguns subtipos de “choque anafilático”2,911, promovem a dispersão diagnóstica e impedem o verdadeiro conhecimento da prevalência e incidência1011.

Tal como os autores verificaram no presente estudo, o recurso ao sistema de codificação como o ICD, que embora permita monitorizar a morbimortalidade de grande parte das doenças a nível internacional, limita o conhecimento de algumas patologias ao não incluir todas as suas variantes ou ao apresentar classificações dúbias, como é o caso das doenças de hipersensibilidade10.

Como já referido, a anafilaxia é uma reação de hipersensibilidade sistémica, de início súbito até 2 horas após contacto com o alergénio, cuja apresentação clínica e gravidade são variáveis2,46,8,13. A anamnese pormenorizada é a chave diagnóstica e o passo fundamental na identificação do agente etiológico, processo dificultado pela inespecificidade e variabilidade da sintomatologia, secundária à hipersensibilidade individual, dose e via de contacto, particularmente nos lactentes4,79,11,13,18.

A alergia alimentar é considerada a principal causa de anafilaxia na idade pediátrica, cuja variação geográfica determina o tipo de alimento(s) causador(es)2,46, 8,1213,15,17,1921.

Para lactentes nascidos em Portugal, e considerando a dieta mediterrânea e o processo de diversificação alimentar existente, o leite de vaca e o ovo apresentam‑se como os alimentos mais frequentemente envolvidos78,13,17,19. No entanto, em crianças mais velhas e adolescentes, há não só maior diversidade de alimentos causadores8,12,19, nomeadamente os frutos secos, o amendoim e o marisco8,13,17,22, como também a maior autonomia nas opções alimentares e os comportamentos de desafio e risco predispõem a reações anafiláticas mais graves8,15,21. Por outro lado, a ingestão do alimento causador não é a única via de contacto, podendo o mesmo ocorrer por via cutânea ou inalatória, bem como devemos considerar a possibilidade de reações cruzadas e a presença de alimentos ocultos68. No presente estudo, os principais agentes etiológicos identificados foram os alimentos (63 %), em particular o leite de vaca e seus derivados (53 %) e o ovo (18 %). Concomitantemente, os autores identificaram uma reação anafilática ao peixe em criança alérgica a este alimento, após a ingestão de alimentos acondicionados em recipiente higienizado que previamente contivera peixe (alergénio oculto).

Em alguns casos a reação anafilática ocorre após a ingestão de determinado alimento seguido da prática de exercício físico24,8,18,20, o que define anafilaxia associada ao exercício físico dependente de alimentos, pela primeira vez descrita em 19793,18,20 e cuja prevalência actual se estima entre 5‑15%20. O maior débito circulatório promovido pelo exercício físico favorece a maior absorção intestinal e diminui o limiar de ativação dos mastócitos e basófilos23,8,18,20.

No presente estudo, o caso de ingestão de tomate seguido da prática de exercício físico ilustra o descrito. Para além do exercício físico, os anti‑inflamatorios não esteroides e o consumo de álcool funcionam como importantes cofatores de gravidade da reação anafilática24,8,18,20.

As reações alérgicas ao veneno de himenópteros, apesar de raras, aumentam de frequência com o aumento da idade2,6,8,19,22, como se verificou no presente estudo, em que os três casos ocorreram na adolescência e cursaram com sintomatologia grave, motivando internamento. Os produtos cutâneos, excluindo o contacto com látex, são raros agentes causadores de anafilaxia2,6,8,19,22. Contudo, representaram 7 % (n=2) dos episódios descritos, o que alerta para a importância da acuidade da história clínica na investigação etiológica. Por fim, as reações alérgicas a fármacos (β‑lactamicos, anti‑inflamatorios não esteroides, relaxantes musculares e agentes biológicos), ocorrem principalmente em adolescentes e adultos2,46,8,19,22, não se tendo identificado nenhuma reação neste estudo. Em 19 % dos episódios não foi possível identificar o agente etiológico, o que testemunha a dificuldade diagnóstica e promove a recorrência e a maior morbimortalidade4,11.

Em idades mais jovens, os órgãos e sistemas mais frequentemente envolvidos são a pele e mucosas, as vias respiratórias e o trato gastrointestinal, enquanto o envolvimento do sistema cardiovascular é comum em adolescentes e adultos24,68,13,2223. Porém, a literatura não dispõe de dados que excluam o envolvimento cardiovascular em lactentes e crianças mais pequenas, admitindo um provável subdiagnóstico23,8,13,2223. O presente estudo corrobora os dados da literatura, na medida em que a pele e mucosas (100 %) e o sistema respiratório (74 %) foram os principais sistemas envolvidos. Apesar de descrito na literatura um aumento recente na mortalidade, no presente estudo esta foi de 0 %.

Como já referido, a anafilaxia é uma emergência médica, pelo que na fase aguda, mais importante que a investigação etiológica é o estabelecimento do diagnóstico, que é clínico2,4. Por forma a uniformizar a linguagem médica, os critérios de diagnóstico de anafilaxia foram revistos em 2006 (Quadro 1)2. No entanto, mantém baixa especificidade, apesar de elevada sensibilidade8,11.

Apesar da inexistência de exames complementares rápidos e inequívocos, na fase aguda pode‑se dosear a histamina ou da β‑triptase, que não sendo específicos ou preditivos do grau de gravidade suportam o diagnóstico34,69,2426.

O pico de histamina ocorre cinco minutos após o início da reação e normaliza 30‑60 minutos depois, devendo o seu doseamento restringir‑se às reações com duração inferior a uma hora34.

A β‑triptase aumenta frequentemente em reações anafiláticas de etiologia medicamentosa ou secundárias à picada de himenópteros, sendo rara na etiologia alimentar8,2425. O aumento da β‑triptase ocorre 30 a 90 minutos após o início dos sintomas, com pico às 2 horas, seguindo‑se a normalização pelas 24‑48 horas4,8,26. Na prática, o método mais utilizado é o doseamento da β‑triptase que idealmente deve ser realizada a partir de três amostras de sangue, a primeira logo que possível após o início do tratamento, a segunda após 1 a 2 horas do início dos sintomas e a terceira à alta ou em consulta posterior3.

Após uma reação anafilática, emerge identificar o agente etiológico, por forma a evitar o futuro contacto com o mesmo. A estratégia de investigação pode requerer avaliações in vivo, baseada em testes cutâneos por picada usando extrato ou o agente etiológico em natureza 3 a 4 semanas após a reação anafilática8,14,26. Se estes testes forem negativos, ou no caso de o agente etiológico suspeito ser um fármaco, podem realizar‑se testes cutâneos por picada e intradérmicos2728. No caso de suspeita de um alimento pode‑se recorrer às provas de provocação oral (PPO), o gold‑standard do diagnóstico de reação alérgica a alimentos. No entanto, se a história for clara e reprodutível e os testes cutâneos e/ou doseamento de IgE específica suportarem o diagnóstico, a PPO pode ser dispensada78,24,26. Os testes in vitro permitem o doseamento da IgE específica, a avaliação da sensibilização a alergénios major e a avaliação prognóstica relativa à persistência temporal das reações78,29. O teste de ativação de basófilos poderá vir a ter um papel importante no estudo de reações de hipersensibilidade a fármacos e alimentos, nomeadamente na avaliação de aquisição de tolerância, embora atualmente a sua utilização careça de mais estudos28.

Após a identificação do agente etiológico, a primeira medida protetora é a evicção de contacto com o mesmo. No entanto, numa reação anafilática é mandatório iniciar de imediato terapêutica farmacológica. A adrenalina é a primeira linha de tratamento na dose 0,01 mg/kg da solução de 1:1000 (dose máxima: 0,5mg), que se pode repetir após 5 minutos2‑5,7‑8,13,16‑17. A administração deve ser intramuscular na face anterolateral da coxa2‑3,6‑8,16,30, pela maior rapidez e biodisponibilidade34,68,14. Os efeitos α1‑adrenergicos da adrenalina (vasoconstrição, aumento da resistência vascular periférica e diminuição do edema das mucosas) e β2‑adrenergicos (broncodilatação e menor libertação de mediadores pelos mastócitos e basófilos) potenciam‑se gerando o efeito terapêutico pretendido28,16,30‑31.

A não utilização ou atraso na administração da adrenalina é fator de risco para maior gravidade da reacção anafilática e anafilaxia bifásica até às 12 horas, condicionando maior mortalidade2,4,8,1617, 3133. Não se reconhecem contraindicações absolutas ao uso de adrenalina em idade pediátrica3,6,7. Como coadjuvantes da adrenalina, recorre‑se aos anti‑histaminicos H1 e H2, corticosteroides, administração de fluidos endovenosos e broncodilatadores ou adrenalina nebulizados23, 68,14. Os anti‑histaminicos H1, sem eficácia comprovada no tratamento da anafilaxia, permitem o alívio sintomático do prurido cutâneo, nasal e ocular, da urticária e do angioedema2,68,20,34.

Por outro lado, o uso de corticoides sistémicos não é suportado por ensaios clínicos, controlados e randomizados, e não demonstrou reduzir a ocorrência de reacções bifásicas em doentes pediátricos2,68,20,35. A administração de adrenalina inalada não reúne consenso, podendo ser utilizada como adjuvante se broncospasmo e/ou angioedema, do mesmo modo que os β2‑agonistas inalados67.

A administração de bolus de soro fisiológico visa o repreenchimento vascular em situações de compromisso circulatório (taquicardia/hipotensão)4,67.

A administração de oxigénio suplementar deverá ocorrer sempre que haja compromisso respiratório e/ou angioedema com hipoxemia, ou nos doentes que necessitam de doses repetidas de adrenalina4,67.

Contudo, a administração dos fármacos de segunda linha nunca deverá atrasar ou substituir a administração da adrenalina3,67.

No estudo realizado, apenas em três episódios caracterizados por envolvimento cutâneo, respiratório e cardiovascular, se recorreu ao uso de fármacos de todas as classes farmacológicas, com posterior internamento (>24 horas) para vigilância clínica. Apesar de a adrenalina ser o fármaco de primeira linha, no presente estudo apenas se usou em 59 % dos episódios, o que corrobora a literatura no que respeita à subutilização da adrenalina.

Concomitantemente, e apesar de não existirem estudos que aconselhem o uso de corticoides, os mesmos foram utilizados em 89 % dos episódios do presente estudo. Os anti‑histaminicos H1 foram administrados em 93 % dos episódios, nem sempre em associação com a adrenalina.

Nos seis episódios considerados menos graves recorreu‑se ao uso isolado de anti‑histaminicos H1 (n=2) ou em associação com corticoides (n=4). O uso de oxigénio suplementar (70 %), com ou sem associação aos broncodilatadores inalados (44 %), restringiu‑se aos episódios que cursaram com broncospasmo e/ou angioedema. A expansão com soro fisiológico (26 %) restringiu‑se aos episódios com envolvimento cardiovascular ou com envolvimento gastrointestinal.

Atualmente, e de acordo com as guidelines internacionais e da Direção Geral de Saúde (DGS), a alta dos doentes com compromisso respiratório deverá ocorrer após 6‑8 horas de monitorização clínica, ou após 12‑24 horas se envolvimento cardiovascular24,32, o que em 63 % dos episódios analisados não se verificou. A alta precoce e o não cumprimento terapêutico aumentam as recorrências por anafilaxia bifásica até 20%24.

Contudo, tais dados não são possíveis de concluir no presente estudo, pois os doentes com alta precoce ou tratamento desadequado poderiam na recorrência dos sintomas ter sido observados noutra instituição de saúde.

Aquando da alta, a prescrição do autoinjetor de adrenalina deverá ser realizada se anafilaxia a alimento, látex, aeroalergénios ou a outros alergénios potencialmente não evitáveis, bem como em situações de anafilaxia induzida pelo exercício físico, coexistência de asma mal controlada com alergia alimentar, anafilaxia idiopática, anafilaxia a himenópteros, crianças com reação cutânea grave ou alterações das células mastocitárias2,32. A não prescrição de adrenalina para ambulatório aumenta o risco de mortalidade17,32. Em Portugal dispomos de dispositivos autoinjetores de adrenalina em duas doses fixas (0,15 mg e 0,3 mg), devendo‑se prescrever de acordo com o peso da criança8,14. No presente estudo, este dispositivo foi prescrito apenas a 3 crianças à data da alta do SUPH, o que está de acordo com a baixa taxa de prescrição descrita na literatura.

Concomitantemente, à data da alta é recomendação das guidelines nacionais e internacionais a orientação da criança à consulta de Imunoalergologia para posterior investigação, educação, prescrição do dispositivo para autoadministração de adrenalina (no caso de ainda não ter sido) e desenho de estratégias preventivas23,58,13,15,17,32,36.

No estudo apresentado, verificou‑se que das crianças admitidas na UICD (N=10; 37 %) e das crianças observadas no serviço de urgência (n=17; 63 %), apenas oito e três, respetivamente, foram referenciadas à consulta de Imunoalergologia. Dos não referenciados à consulta de Imunoalergologia (n=13; 54 %), em sete tratava‑se de uma primeira reação anafilática.

Por fim é importante referir que em Portugal é actualmente obrigatório o registo de qualquer episódio de anafilaxia no Catálogo Português de Alergias e outras Reações Adversas (CPARA), de modo a melhorar o conhecimento da prevalência e incidência desta patologia, bem como dos fatores desencadeantes3. No presente estudo apenas onze crianças tinham notificações no sistema informático do SUPH.

CONCLUSÃO

De acordo com o presente estudo, a anafilaxia é uma causa rara de recurso ao SU e apresenta baixa mortalidade.

No entanto, deve considerar‑se o subdiagnóstico pelo não reconhecimento ou notificação, em parte suportado pelos dúbios sistemas de codificação de diagnósticos médicos. Do mesmo modo que a deficiente comunicação entre os sistemas dificulta a acessibilidade dos profissionais de saúde às notificações, com inevitável perda de informação. Aguarda‑se para breve a 11.ª revisão do ICD, esperando‑se que esta apresente uma classificação mais completa das doenças de hipersensibilidade.

Por enquanto, e a nível nacional, os autores relembram as redes de bases de dados promovidas pela Sociedade Portuguesa de Alergologia e Imunologia Clínica (SPAIC), que permitem a correta notificação e a melhor caracterização destes episódios. O subdiagnóstico é fator essencial na recorrência dos episódios e na maior morbimortalidade.

A alergia alimentar foi a causa mais comum no grupo analisado, o que reforça a sua prevalência em idade pediátrica e alerta para a necessidade de ensino, particularmente pela facilidade de acesso aos alimentos, a possibilidade de agentes ocultos e de ocorrência de reacções cruzadas.

A subutilização da adrenalina, a par da escassa referenciação às consultas de especialidade nos resultados apresentados, torna a prática clínica desajustada, contribuindo para a não identificação do agente etiológico, ensino de comportamentos preventivos, e aumenta a morbimortalidade.

Por forma a melhorar e uniformizar o conhecimento científico e a prática médica, emerge a necessidade de formação de profissionais de saúde para o reconhecimento diagnóstico e atuação terapêutica em conformidade.

 

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Contacto:

Andreia Filipa Mota

Serviço de Pediatria

Hospital São Bernardo, Centro Hospitalar de Setúbal

Rua Camilo Castelo Branco,

2910‑446 Setúbal

Telef. 265 549 000

 

Financiamento: Nenhum.

 

Declaração de conflitos de interesse: Nenhum.

 

Data de receção / Received in: 06/07/2016

Data de aceitação / Accepted for publication in: 22/12/2016

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