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Revista Portuguesa de Imunoalergologia

versão impressa ISSN 0871-9721

Rev Port Imunoalergologia vol.24 no.2 Lisboa jun. 2016

 

RESUMO DE ATUALIZAÇÃO

 

Hipersensibilidade a fármacos – Tratar, documentar e dessensibilizar

 

Joana Caiado

Assistente Hospitalar de Imunoalergologia

Serviço de Imunoalergologia, Hospital de Santa Maria, Centro Hospitalar de Lisboa Norte

 

Contacto

 

As reações de hipersensibilidade a fármacos (RHF) têm aumentado de forma importante à medida que vários medicamentos, nomeadamente anti‑inflamatórios não esteroides (AINEs) e antibióticos, vão sendo utilizados com maior frequência. Estima‑se que cerca de 7 % da população em geral já referiu ter tido uma reação de hipersensibilidade a pelo menos um fármaco.

Paralelamente ao aparecimento de novas armas terapêuticas em Oncologia e a maior longevidade dos doentes oncológicos, tem‑se igualmente verificado um aumento da incidência de reações a quimioterapia e terapêuticas biológicas.

Assim, a consulta de alergia medicamentosa tem vindo a impor‑se como uma área diferenciada da Imunoalergologia ao longo das duas últimas décadas. O seu objectivo é orientar estes doentes, não só documentando as reações, mas também oferecendo‑lhes alternativas terapêuticas, e a possibilidade de induzir tolerância aos fármacos que desencadearam a reação, arma terapêutica de extrema importância na Oncologia, área em que a substituição da quimioterapia em caso de uma reação alérgica pode colocar em risco o prognóstico destes doentes.

A documentação de uma RHF passa pela execução de uma história clínica completa, incluindo não apenas a caracterização detalhada da reação como também a exclusão de outros potenciais fatores desencadeantes, nomeadamente alimentares ou infeciosos. Uma ferramenta muito útil para orientação da anamnese é o questionário de alergia medicamentosa desenvolvido pelo grupo de interesse de Hipersensibilidade a Fármacos da Academia Europeia de Alergologia e Imunologia Clínica (EAACI/ENDA) e que foi já traduzido para português e publicado na Revista Portuguesa de Imunoalergologia em 2001.

As RHF podem ter diversas apresentações clínicas e são consideradas imediatas se ocorrerem nas primeiras 6 horas após a administração do fármaco ou não imediatas se ocorrerem depois disso. As RHF imediatas podem ser imunológicas ou não e incluem urticária, angioedema, conjuntivite, dispneia/broncospasmo, sintomas gastrintestinais (náuseas, vómitos, diarreia), ou anafilaxia (quando há dois ou mais sistemas afectados) que pode envolver hipotensão grave (choque anafilático). As RHF não imediatas podem ter apresentações mais variáveis, como rash maculopapular, eritema fixo, vasculite, doenças bolhosas, como a necrólise epidérmica tóxica (TEN), síndrome de Stevens‑Johnson (SJS), pustulose exantemática generalizada aguda (AGEP), exantemas flexurais e intertriginosos simétricos relacionados com fármacos (SDRIFE) ou síndrome de hipersensibilidade induzida por fármacos (HSS/ DRESS/DiHS).

O tratamento destas reações depende essencialmente da gravidade e da altura em que o doente é observado pelo médico. Pode exigir um tratamento emergente em regime de internamento, como é o caso da anafilaxia ou reações bolhosas sistémicas, ou serem tratadas em ambulatório e posteriormente referenciadas à Imunoalergologia para investigação etiológica, em caso de serem apresentações clínicas mais ligeiras.

Para complementar a história clínica, estão disponíveis testes in vivo e in vitro que podem ser úteis auxiliares de diagnóstico.

Os testes cutâneos têm como objetivo avaliar o grau de sensibilização ao fármaco. De acordo com o tipo de reação inicial, imediata ou tardia, podem ser efectuados testes cutâneos intradérmicos ou epicutâneos, respetivamente.

Nos testes cutâneos em picada (prick) é habitualmente utilizada a solução do fármaco não diluído (1:1) e no caso de estes serem negativos efetuam‑se testes intradérmicos com várias diluições do fármaco até à concentração não irritativa (com leitura aos 20 minutos), como descrito na literatura. Deverá ser ainda efectuada uma leitura tardia às 48 horas, especialmente quando há suspeita de reações não imediatas. A limitação dos testes intradérmicos prende‑se com o facto de vários fármacos não terem apresentação parentérica e por haver poucos estudos que avaliem as concentrações consideradas não irritativas, sendo exceções alguns antibióticos e fármacos usados em quimioterapia.

Os testes epicutâneos são especialmente úteis no diagnóstico de reações tardias. Os fármacos são habitualmente dissolvidos em petrolatum ou em soluções salinas e inseridos em câmaras de Finn para posterior aplicação no dorso; deve fazer‑se uma primeira leitura às 48 horas e uma segunda às 72‑96 horas.

A avaliação diagnóstica das RHF é no entanto dificultada pela inexistência de estandardização de testes in vivo e in vitro para vários fármacos.

Alguns testes in vitro podem também ser úteis como complemento diagnóstico. É o caso das IgE específicas para alguns fármacos, nomeadamente beta‑lactamicos.

Muitos têm sido os esforços para o aperfeiçoamento de alguns métodos que permitam a identificação de IgE específicas para outros fármacos, como é o caso da insulina, platinos e relaxantes musculares.

Estão ainda disponíveis outros testes in vitro, na sua maioria não estandardizadas, sendo apenas utilizados em investigação. São exemplos o teste de ativação de basófilos e o teste de transformação linfocitária.

No caso dos testes de diagnóstico não serem conclusivos, o próximo passo é a realização de provas de provocação medicamentosa, gold standard para a identificação do fármaco responsável. Estas podem ser efetuadas com objetivo de exclusão/confirmação de diagnóstico ou para procura de um fármaco alternativo.

As provas de provocação devem ser efetuadas em Hospital de Dia e consistem na administração de pequenas doses do fármaco a testar, de forma progressiva e crescente, até se atingir a dose terapêutica. A via oral é a preferencial e não devem ser administradas mais de 4 tomas, sendo que a primeira não deve ser inferior a 1:100 da dose total, para não correr o risco de dessensibilizar, o que pode dar origem a um resultado falso negativo.

Após um diagnóstico definitivo, todos os doentes deverão ser portadores de um relatório com a lista dos fármacos a evitar e que poderão fazer em alternativa.

Há no entanto várias situações em que os doentes não têm alternativas terapêuticas ou estas não são igualmente eficazes. Assim, para os casos em que ocorrem RHF graves que condicionem a manutenção dessa linha terapêutica foram desenvolvidos protocolos de dessensibilização, i.e. protocolos que permitem a aquisição de tolerância temporária a um determinado fármaco.

A dessensibilização tem como objetivo a indução de um estado de tolerância que é transitória (aproximadamente 2,5 vezes a semivida do fármaco) e baseia‑se

Na administração de doses subóptimas crescentes do fármaco em intervalos fixos, sendo a primeira toma pelo menos 1:10 000 da dose‑alvo, até que esta seja atingida.

A dessensibilização está indicada em várias situações clínicas, como são exemplos:

• Agentes quimioterápicos em várias neoplasias (citostáticos e terapêuticas biológicas)

• Ácido acetilsalicílico

– Antiagregação plaquetária cardiopatia isquémica pós-angioplastia; / síndrome antifosfolípido/trombocitose na gravidez

– Doença respiratória exacerbada pelos AINESs

• Alopurinol na gota (nefrolitíase, gota tofosa)

• Antibióticos na sífilis / fibrose quística / HIV

– Penicilina na sífilis (gravidez)

– Fibrose quística: elevada probabilidade de hipersensibilidade por necessidade de múltiplos ciclos  de antibioterapia de forma recorrente e intermitente (beta‑lactamicos, quinolonas)

• Insulina na diabetes insulinodependente

• Vitamina B12 na anemia perniciosa

Assim, na ausência de alternativas terapêuticas eficazes, a dessensibilização permite que doentes com história prévia de RHF possam, com maior segurança, retomar o fármaco inicialmente prescrito. Deverão ser excluídos doentes com história de reações cutâneas graves (SJS, TEN, DRESS, vasculite, AGEP), ou citopenias imunes (reações de tipo II e III da classificação de Gel e Coombs).

O desenho do protocolo baseia‑se essencialmente no tipo de reação inicial: os protocolos de dessensibilização rápida em que a dose‑alvo do fármaco é atingida em algumas horas aplicam‑se a reações imediatas e de dessensibilização lenta indicadas em história de reações não imediatas que requerem vários dias a semanas até que a dose requerida seja atingida.

Este procedimento induz um estado de tolerância transitório, sendo necessária a toma diária do fármaco no caso de ser oral (como é o caso da aspirina ou alopurinol), ou repetir a dessensibilização em todas as administrações subsequentes em caso de a toma não ser contínua (como é o caso da quimioterapia ou penicilina).

Dada a especificidade destes procedimentos (testes cutâneos, provas de provocação e dessensibilização medicamentosa), doentes com suspeita de RHF deverão ser referenciados a centros de Imunoalergologia com experiência na avaliação e tratamento.

 

REFERÊNCIAS

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Contacto:

Joana Caiado

Serviço de Imunoalergologia, Hospital de Santa Maria

Centro Hospitalar de Lisboa Norte

Av. Prof. Egas Moniz

1649‑035 Lisboa

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