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Revista Portuguesa de Imunoalergologia

versão impressa ISSN 0871-9721

Rev Port Imunoalergologia vol.23 no.2 Lisboa jun. 2015

 

CASO CLÍNICO

 

Angioedema associado a ganglioneuroma – A propósito de um caso clínico

 

Luís Amaral, Alice Coimbra, José Luís Plácido

Serviço de Imunoalergologia, Centro Hospitalar de São João EPE, Porto, Portugal

 

Contacto

 

RESUMO

O angioedema adquirido por défice de C1 inibidor está geralmente relacionado com diferentes doenças linfoproliferativas, autoimunes, bem como adenocarcinomas, mas tem sido raramente associado a outras neoplasias. Descrevemos o caso de uma criança do sexo feminino, com 8 anos, com história de angioedema facial recorrente (labial e palpebral unilateral) sem urticária ou prurido, com 5 anos de evolução e sem resposta a corticoides orais (CO) e anti‑histaminicos (AH). Sem história familiar e sem factor desencadeante identificado. Em maio de 2012 recorreu ao serviço de urgência por quadro de dor abdominal intensa, tendo realizado ecografia abdominal que demonstrou a presença de massa mediastínica. Foi referenciada para oncologia Pediátrica e internada para biópsia excisional de massa, sendo diagnosticado ganglioneuroma maduro. Foi feita a exérese total da massa paravertebral. Sem registo de episódios de angioedema posteriores. Neste artigo reportamos o caso de uma criança com angioedema recorrente, realçando as dificuldades e a importância de uma investigação clínica completa no esclarecimento etiológico do angioedema.

Palavras‑chave: Angioedema adquirido, deficiência de C1 inibidor, ganglioneuroma.

 

ABSTRACT

Acquired angioedema is usually related with lymphoproliferative disorders, autoimmune diseases and adenocarcinomas but it is rarely associated with other forms of neoplasia. We report the case of an eight year old girl with recurrent episodes of unilateral labial and palpebral facial angioedema, without urticaria or pruritus that did not respond to oral corticosteroids (OC) and antihistamines (AH). No family history of angioedema nor trigger was identified. In may 2012, she went to the ER for se vere abdominal pain and ultrasound demonstrated the presence of a mediastinal mass. She was referred to Pediatric Oncology and admitted for excisional biopsy of the mass which permitted the diagnosis of ganglioneuroma. Total excision of the paraspinal mass was successful. No further episodes of angioedema were reported. In this article, we report the case of a child with recurrent angioedema, emphasizing the difficulties and the importance of a thorough clinical investigation in the clarification of angioedema etiology.

Keywords:Acquired angioedema, C1 inhibitor deficiency, ganglioneuroma.

 

INTRODUÇÃO

Angioedema é um termo utilizado para definir uma situação de edema subcutâneo ou submucoso de instalação súbita e caráter transitório, envolvendo áreas bem delimitadas, com sensação de dor ou queimadura1.

Os três principais elementos do angioedema adquirido (AAE), descrito pela primeira vez por Caldwell em 19722, são a deficiência adquirida do inibidor de C1 (C1‑INH), hiperativação da via clássica do complemento e angioedema recorrente. É considerada uma condição muito rara, com pouco mais de 100 doentes relatados na literatura3. Cerca de 30 a 40% dos doentes apresentam algum tipo de neoplasia linfoide ou outras, gamopatia monoclonal de significado indeterminado (MGUS) em mais de 40% e doenças autoimunes em 5‑10% dos casos3. Em alguns doentes não é possível identificar, pelo menos no momento do diagnóstico, patologia associada.

Esta patologia afeta tipicamente os tecidos subcutâneos da face e a submucosa das vias aéreas superiores e do trato gastrointestinal. Manifesta‑se por episódios, com duração de dois a cinco dias, de edema subcutâneo e submucosa (afectando face, membros, órgãos genitais), dor abdominal grave por edema da mucosa gastrointestinal e edema laríngeo que pode causar asfixia fatal. Do ponto de vista clínico os sintomas que caracterizam AAE não podem ser diferenciados dos condicionados pelo angioedema hereditário (HAE), em que, na maioria dos casos, se verifica uma deficiência de C1‑INH e que se deve à presença de mutações em um dos dois alelos que codificam esta proteína4.

A bradicinina, péptido vasoativo, desempenha um papel fundamental na fisiopatologia do angioedema por deficiência do C1‑INH5.

O HAE decorre geralmente da produção deficiente  de C1‑INH com função normal (tipo I) ou quantidade normal de C1‑INH com função alterada (tipo II), o que corresponde a 85% e 14% dos casos, respetivamente. No tipo I, a região do gene rica em sequências Alu apresenta o gene defeituoso, o que explica porque pacientes do tipo I não produzem níveis normais de C1‑INH e não há expressão de C1‑INH.

No tipo II, o defeito é usualmente localizado próximo do sítio ativo ARG 444 ou no exão 85. Mais recentemente, foram identificadas mutações missenseno exão 9 do gene que codifica o fator de coagulação XII (F12) ou fator de Hageman em doentes com história familiar de angioedema e sem alteração de C1‑INH6.

Foram ainda identificadas famílias com HAE sem alteração de C1‑INH e sem identificação de alterações genéticas no F12. Assim, para os doentes com história familiar de angioedema e sem alterações de C1‑INH, foi proposto o termo FXII‑HAE quando se detetam as mutações no gene do F12 e U‑HAE quando nenhum defeito genético é identificado7.

No AAE ocorre uma diminuição do C1‑INH pelo aumento do seu catabolismo, estando frequentemente associado a doenças linfoproliferativas, outras neoplasias, doenças autoimunes ou à presença de anticorpos anti‑C1‑INH, sem doença de base detetável3,8. A maioria dos doentes com AAE demonstra depleção de componentes da via clássica do complemento, com níveis baixos de C1q (componente mensurável do complexo C1, C1q‑rs), o que não é observado nos doentes com HAE. Por outro lado, nem todos os doentes que apresentam diminuição de C1q têm anticorpos anti‑C1‑INH detetáveis3.

A abordagem terapêutica no AAE deve ser orientada, em primeiro lugar, para o tratamento da doença de base. Nas agudizações o mais preocupante é o envolvimento das vias aéreas superiores e nesses casos o tratamento de escolha consiste na administração de concentrado purificado de C1‑INH ou, na falta deste, na infusão de plasma fresco congelado (PFC). Alguns doentes tornam‑se progressivamente não respondedores a esta terapêutica9. Nestes casos o icatibant (antagonista do receptor de bradicinina) ou o ecallantide (inibidor de calicreína) podem ser eficazes. A entubação orotraqueal e outras medidas de suporte de vida podem ser necessárias9‑11.

A profilaxia a longo prazo é indicada em doentes com episódios frequentes, com um ou mais episódios graves por mês, incapacidade em mais do que 5 dias por mês ou 1 episódio potencialmente fatal10‑12.

A profilaxia a curto prazo está indicada em procedimentos estomatológicos, endoscópicos e cirúrgicos programados. Os androgénios sintéticos atenuados, como o danazol ou o estanazolol, são a terapêutica de eleição, sendo responsáveis pela diminuição na frequência e gravidade das agudizações8,9.

Também pode estar indicado a utilização de inibidores da ativação do cininogénio e do plasminogénio como o ácido tranexâmico ou ácido e‑aminocaproico9‑12.

O tratamento da doença associada pode resolver AAE em alguns doentes3.

Os autores apresentam um caso clínico de uma criança seguida na Consulta de Imunoalergologia do Centro Hospitalar de São João.

CASO CLÍNICO

Criança de 8 anos, sexo feminino, caucasiana, sem antecedentes pessoais relevantes. Relativamente aos antecedentes familiares existia história de neoplasia mamária (avó materna) e neoplasia gástrica (tia‑avó materna).

Sem história familiar de atopia ou de angioedema. Desde os 3 anos apresentava episódios de angioedema facial recorrente (labial e palpebral unilateral), sem urticária ou dificuldade respiratória, sem edemas dos membros inferiores e sem dor abdominal ou outras queixas gastrointestinais. Descritos cerca de 6 a 7 episódios de angioedema por ano, que não cediam aos corticóides orais (CO) nem anti‑histaminicos (AH) e com resolução espontânea ao final de 48 a 72 horas. A mãe associava estes episódios à ingestão de ibuprofeno e à ingestão de corantes. Negava sistematicamente uma possível associação destes episódios a picadas de insetos, exposição ao latex ou ao exercício físico.

Na sequência de múltiplos recursos ao serviço de urgência, motivadas pelas queixas descritas, foram pedidos exames analíticos pela pediatra assistente. Destacam‑se hemoleucograma, ionograma, função renal, hepática, proteinograma e função tiroideia sem alterações. As serologias para citomegalovírus (CMV), vírus Epstein‑Barr (EBV) e parvovírus B19 revelaram‑se negativas, bem como o estudo de autoimunidade com anticorpos antinucleares, anti‑dsDNA, anticardiolipina, anti‑ENA, antimúsculo liso e autoanticorpos tiroideus negativos, não apresentando outras alterações.

Foi referenciada à Consulta de Imunoalergologia onde se realizaram testes cutâneos por picada (TCP) com aeroalergénios e alimentos, que foram negativos. As provas de provocação oral com ibuprofeno e paracetamol foram negativas. Ingeria alimentos com corantes (ex. gomas e bolos), com boa tolerância.

Perante o quadro clínico e exames complementares de diagnóstico prévios, foi pedido o estudo do complemento, realizado fora de contexto de crise, que revelou atividade CH50 de 135 UA (V.R: 63‑145 UA), fração C4 de 13 mg/dL (V.R: 12‑26 mg/dL), o doseamento do C1‑INH era de 45 mg/dL (V.R: 15‑55 mg/dL) e a função de C1‑INH normal (93%). A fração C1q apresentava valor ligeiramente inferior ao dos parâmetros normais, 14 mg/dL (V.R: 24‑48mg/dL).

Em maio de 2012 apresentou quadro de dor abdominal difusa intensa, tendo realizado ecografia abdominal que detetou uma massa mediastínica. Foi referenciada para consulta de Oncologia Pediátrica, tendo realizado pesquisa de catecolaminas urinárias que revelaram aumento da dopamina, ácido vanilmandélico (VMA) e ácido homovanílico (HVA). No cintilograma com iodo radioactivo confirmou‑se a presença de “… massa paravertebral torácica direita … com expressão heterogénea de receptores α‑adrenergicos”.

Internada para biópsia excisional de massa, estabelecendo‑se diagnóstico de ganglioneuroma maduro. Mantém seguimento em Oncologia Pediátrica para vigilância, não apresentando novos episódios de angioedema.

DISCUSSÃO

O ganglioneuroma (GN) é uma neoplasia benigna rara, da família dos tumores neuroblásticos periféricos (PNT), que surgem predominantemente na infância e incluem histotipos malignos, como o neuroblastoma e o ganglioneuroblastoma nodular14,15. Histologicamente define‑se por ser composto predominantemente por um estroma de células ganglioneuromatosas com um componente menor de neuroblastos diferenciados ou células ganglionares maduras. O GN pode ser diagnosticado de novo em indivíduos saudáveis ou, ocasionalmente, resultar da diferenciação espontânea ou induzida por quimioterapia de um PNT maligno. Este difere dos PNT malignos, pois surge mais tardiamente na infância e produz quantidades normais ou ligeiramente elevadas de catecolaminas, sendo muitas vezes assintomático. No entanto o GN pode crescer lentamente, sendo que os sintomas geralmente resultam do efeito de compressão do tumor em tecidos vizinhos16. A ressecção cirúrgica é o tratamento de escolha, embora às vezes possa ser arriscada, em particular quando os grandes vasos estão envolvidos17.

O prognóstico é geralmente favorável, pois esta neoplasia é normalmente benigna, sendo que raramente se torna maligna e a frequência de metastização ou recorrência é reduzida16.

Ao contrário da maioria dos casos de AAE reportados, neste caso clínico não foram detetadas alterações da função de C1‑INH e há apenas uma redução ligeira de C1q em contexto de crise. O mecanismo que leva a diminuição dos níveis e função C1‑INH, bem como do angioedema, permanece ainda por esclarecer. O AAE, tal como o HAE, parece ser em grande parte mediado pela bradicinina9. Os autores colocam a hipótese de existir uma produção aumentada de bradicinina e de outros mediadores inflamatórios, por parte do tecido neoplásico, o que teria sido eventualmente resolvido pela ressecção cirúrgica da massa tumoral.

A literatura sobre GN na infância é escassa, mesmo em questões relevantes, como o curso clínico, a abordagem cirúrgica e as características histoquímicas.

Não há nenhuma série publicada de crianças com este diagnóstico reportando associação desta patologia ao angioedema recorrente, tal como observado nesta criança.

A evolução favorável da clínica de angioedema após ressecção do GN sugere relação causal, não se podendo, contudo, apontar o mecanismo envolvido.

 

REFERÊNCIAS

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Contacto:

Luís Amaral

Serviço de Imunoalergologia

Centro Hospitalar São João, EPE

Alameda Prof. Hernâni Monteiro

4200 – 319 Porto

E-mail: luis.m.amaral@gmail.com

 

Financiamento: Nenhum.

 

Declaração de conflitos de interesse: Nenhum.

 

Data de recepção / Received in: 22/10/2014

Data de aceitação / Accepted for publication in:18/02/2015

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