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Revista Portuguesa de Imunoalergologia

Print version ISSN 0871-9721

Rev Port Imunoalergologia vol.20 no.4 Lisboa Oct. 2012

 

Anafilaxia recorrente numa criança

Recurrent anaphylaxis in a child

 

José Geraldo Dias1, Marta Chambel2, Filipa Sousa3, Sara Prates2, Paula Leiria Pinto2

1Serviço de Imunoalergologia, Hospital de Santa Maria, Centro Hospitalar Lisboa Norte

2 Serviço de Imunoalergologia, Hospital de Dona Estefânia, Centro Hospitalar de Lisboa Central

3 Unidade de Imunoalergologia, Hospital Dr. Nélio Mendonça, Funchal

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RESUMO

Introdução: Perante um episódio de anafilaxia é fundamental identificar a sua etiologia, pois o seu tratamento passa pela evicção dos factores desencadeantes. Caso clínico: Menino de 8 anos, com asma ligeira e rinite persistente não atópica, que teve primeiro episódio de anafilaxia aos 6 anos. Posteriormente, teve novos episódios, todos sem factor desencadeante identificado. Constatou-se que era medicado com ibuprofeno ou paracetamol antes dos episódios, tendo-se realizado prova de provocação oral com paracetamol, que foi positiva, desencadeando novo episódio de anafilaxia.

O ibuprofeno já tinha sido administrado pela mãe, sem reacção adversa. Realizou testes cutâneos, doseamento de IgE específica sérica e teste de activação de basófilos com paracetamol,  que foram negativos. Discussão: Este caso realça as dificuldades da anamnese na determinação da etiologia de um episódio de anafilaxia. Este doente deverá ser portador de dispositivo de adrenalina injectável, tendo em conta que existem inúmeros fármacos com paracetamol na sua composição, podendo contribuir para a ocorrência acidental de um novo episódio.

Palavras-chave: Anafilaxia, criança, paracetamol.

 

ABSTRACT

Background : When anaphylaxis occurs, is important to identify its etiology because its treatment involves triggers’ avoidance. Case report: Eight-year-old boy with mild asthma and nonatopic persistent rhinitis, which experienced his first episode of anaphylaxis at 6 years old. Later, he had new episodes, all of them without any triggering factor identified. We noticed that he was treated with paracetamol or ibuprofen before the episodes and an oral challenge test with paracetamol was performed, which was positive, triggering a new episode of anaphylaxis. Ibuprofen had been administered by his mother, without adverse reaction. Skin tests, serum specific IgE and basophil activation test with paracetamol were performed and were all negative. Discussion: This case illustrates anamnesis’ difficulties in determining the etiology of an episode of anaphylaxis. This patient should always carry self-injectable epinephrine device, because there are a lot of over-the-counter drugs with paracetamol in its composition, which could be responsible for accidental ingestion that may contribute to a new episode.

Keywords: Anaphylaxis, child, paracetamol.

 

INTRODUÇÃO

Anafilaxia é uma reacção alérgica grave que ocorre após o contacto com substâncias alergénicas1.

Pode ser provocada pela ingestão, pela injecção, pela inalação ou pelo contacto directo com alergénios2.

Sendo a anafilaxia potencialmente fatal, é fundamental identifi car a sua etiologia, pois o seu tratamento passa pela evicção dos factores desencadeantes. A anafilaxia idiopática é um diagnóstico de exclusão, pelo que é essencial avaliar uma possível associação com alimentos, fármacos, picada de insecto, látex, meios de contraste radiológico e exercício físico, isolado ou na presença de ingestão alimentar2,3.

Os alimentos são a causa mais comum de anafilaxia em ambulatório, sendo responsáveis por 30% das fatalidades por anafilaxia. Seguem-se os fármacos, a segunda causa mais frequente. Os antibióticos (principalmente os beta-lactâmicos) são os principais responsáveis por anafilaxia medicamentosa, seguindo-se os anti-inflamatórios não esteróides (AINEs)3.

Neste artigo reportamos o caso de uma criança com múltiplos episódios de anafilaxia, realçando as dificuldades da anamnese e a importância da prova de provocação na identificação da sua etiologia.

CASO CLÍNICO

Menino de 8 anos, seguido desde os dois em consulta de Imunoalergologia por asma ligeira e rinite persistente não atópica, sem história de hipersensibilidade medicamentosa ou alimentar conhecida. Refere primeiro episódio de anafilaxia aos 6 anos, descrito como quadro de urticária generalizada, dificuldade respiratória e vómitos, sem factor desencadeante identificado, que motivou recurso ao serviço de urgência (SU), onde foi medicado com broncodilatadores inalados e anti-histamínico oral, com melhoria em poucas horas. Nesta altura fazia medicação diária com antagonista dos leucotrienos, anti-histamínico oral e corticóide nasal. No mês seguinte teve dois episódios semelhantes, um deles com perda de consciência, também sem etiologia identificada, tendo sido prescrito dispositivo de adrenalina auto-injectável. Posteriormente, voltou a ter novos episódios de anafilaxia, num total de cinco num intervalo de 10 meses, todos com necessidade de recorrer ao SU, sem factor desencadeante identificado, com resolução em poucas horas após terapêutica com adrenalina intramuscular, sem internamento.

A mãe negava sistematicamente uma possível associação dos episódios de anafilaxia com ingestão alimentar ou medicamentosa, com picada de insecto, com exposição ao látex ou com exercício físico. Os episódios eram precedidos de cefaleias, habitualmente medicadas com paracetamol ou ibuprofeno, tendo-se constatado que a criança era medicada com estes fármacos cerca de 30 a 45 minutos antes do início dos sintomas. A mãe negava, no entanto, qualquerassociação dos episódios de anafilaxia com a ingestão deparacetamol ou ibuprofeno, afirmando que a criança os ingeria noutras situações sem reacção.

Analiticamente destacava-se eosinofilia de 920/μL, IgE sérica total de 99,4 kU/L e triptase sérica de 3,6 μg/L (normal). Assumindo-se o ibuprofeno como a causa maisprovável dos episódios, programou-se uma prova de provocação oral (PPO) com paracetamol para exclusão deste fármaco como possível causa dos episódios.

No dia da PPO a mãe referiu que, desde o último episódio de anafilaxia, administrara ibuprofeno por duas ocasiões, não se tendo verificado qualquer reacção. Cerca de 10 minutos após a terceira toma de paracetamol (dose acumulada: 290mg – 50% da dose recomendada por toma), iniciou urticária do tronco e membros, seguida de tosse seca e broncospasmo, pelo que se administrou adrenalina intramuscular, anti-histamínico e corticóide endovenosos.

Após 45 minutos administrou-se novamente adrenalinapor angioedema da face e agravamento da urticária, com resolução completa do quadro clínico em 3 horas.

Após a PPO o doente passou a fazer evicção rigorosa de paracetamol e quando necessário faz medicação com ibuprofeno, sem que tenha voltado a ter episódios de anafilaxia. Actualmente, nega queixas brônquicas, tem exame funcional respiratório normal e refere apenas queixas intermitentes de rinite, que resolve com anti-histamínico oral.

Posteriormente à PPO, com a finalidade de procurar clarificar o mecanismo subjacente à reacção e após consentimento informado, foram realizados testes cutâneos, doseamento de IgE específica sérica e teste de activação de basófilos com paracetamol. Os testes cutâneos por picada (TCP) foram efectuados com paracetamol injectável (solução a 10 mg/mL) não diluído e os testes intradérmicos (TID) com as diluições de 1/1000, 1/100 e 1/10 da mesma solução em cloreto de sódio 0,9%, tendo sido todos negativos. Com a colaboração do Laboratório de Imunologia Clínica do Instituto de Medicina Molecular, realizou-se o doseamento de IgE sérica específica para o paracetamol pelo método ImmunoCAP® (Phadia – Thermo Fisher Scientific, Uppsala, Suécia) e o teste de activação de basófilos Basotest® (ORPEGEN Pharma, Heidelberg, Alemanha) com uma solução diluída de paracetamol (1mg/mL), que foram ambos também negativos.

DISCUSSÃO

O paracetamol é um fármaco antipirético e analgésico largamente consumido. Está disponível para a população em geral, sem necessidade de prescrição médica. Num estudo de avaliação de segurança dos analgésicos não narcóticos em doses terapêuticas, o paracetamol foi classificado como o mais seguro. Tendo em conta o seu perfil de segurança, na investigação da causa de um episódio de anafilaxia a maioria dos doentes não menciona ou não é questionada sobre a ingestão de paracetamol4.

Enquanto a hepatotoxicidade associada ao paracetamol está bem descrita, existem poucas publicações que reportem reacções adversas após a ingestão de paracetamol nas doses recomendadas. Desta forma, verifica-se um número reduzido de reacções de hipersensibilidade ao paracetamol descritas na literatura, particularmente em idade pediátrica, tendo sido alvo de revisões anteriores5,6.

As reacções de hipersensibilidade ao paracetamol incluem rinoconjuntivite, urticária/angioedema, síndrome de Stevens -Johnson, eritema fixo e anafilaxia7. A anafilaxia ao paracetamol é rara, tendo sido descritos apenas 7 casos em crianças6. A sua patogénese, contrariamente à hepatotoxicidade associada ao paracetamol, não está devidamente esclarecida.

Para além do seu efeito analgésico e antipirético, o paracetamol é um fraco inibidor da ciclooxigenase. Desta forma, à semelhança do que se verifica com o ácido acetilsalicílico (AAS) e com outros AINEs, a inibição da síntese de prostaglandinas poderá ser o mecanismo responsável pela hipersensibilidade ao paracetamol8. No entanto, o paracetamol é geralmente bem tolerado em cerca de 94% dos doentes com hipersensibilidade ao AAS e a outros AINEs5,6,8, e alguns doentes com anafilaxia ao paracetamol, incluindo o doente reportado, toleram outros AINEs6. Estes dados sugerem a existência de outro mecanismo, nomeadamente mediado pela IgE8.

Na maioria dos estudos publicados, os testes cutâneos com paracetamol têm sido negativos6,9, tendo sido descritos apenas um número reduzido de casos com resposta imediata positiva nos testes cutâneos e/ou com IgE específica detectável5-7. Salienta-se que nunca foi comprovado na literatura um caso de hipersensibilidade ao paracetamol com um mecanismo mediado por IgE em idade pediátrica6.

De igual forma, nesta criança, apesar do início agudo e do tipo das manifestações clínicas sugerirem um mecanismo mediado por IgE, não foi possível demonstrá-lo, pois os testes in vivo e in vitro foram negativos.

É importante realçar que os testes cutâneos de leitura imediata e os testes in vitro (determinação de IgE específica, testes de libertação de histamina e de leucotrienos, teste de activação dos basófilos) não estão normalizados e os seus valores preditivos são controversos10.

Alguns autores reportam doentes com IgE específica sérica negativa, apesar de ter sido provado o mecanismo mediado por IgE5, o que indica a baixa sensibilidade deste método. Apesar de terem sido descritos 9 casos de hipersensibilidade ao paracetamol com testes cutâneos positivos em adultos5-7, estes testes têm habitualmente utilidade reduzida para compostos de baixo peso molecular como é o paracetamol. Assim sendo, o diagnóstico de hipersensibilidade ao paracetamol é estabelecido, na maioria dos casos, através de uma história clínica detalhada e pela prova de provocação oral ou sintomatologia reprodutível após ingestão acidental6.

Recentemente, Rutkowski et al publicaram uma série de 32 doentes com suspeita de hipersensibilidade ao paracetamol7.

Através da prova de provocação oral, comprovou-se a hipersensibilidade ao paracetamol em 50% dos casos, verificando-se a positividade dos testes cutâneos em apenas 3/16 doentes (18,8%). Não foi realizado o doseamento de IgE específica sérica em nenhum doente, mas nestes 3 doentes (2 com TCP positivos e 1 com TID positivos) foi possível demonstrar o mecanismo IgE mediado. A maioria dos doentes alérgicos ao paracetamol tolerava outros AINEs, sendo que apenas 25% tinha hipersensibilidade a outros AINEs. Tendo em conta que apenas 3 doentes tiveram testes cutâneos positivos e que a maioria dos doentes tolerava outros AINEs, o mecanismo responsável pela reacção ao paracetamol poderá ser outro ainda não conhecido. Os autores sugerem a realização de testes cutâneos antes da prova de provocação tendo em conta que a IgE específica para o paracetamol pode ser a responsável pela reacção.

CONCLUSÃO

Este caso ilustra as dificuldades da anamnese na determinação da etiologia de um episódio de anafilaxia e alerta para a importância da exclusão da etiologia medicamentosa na anafilaxia recorrente, nomeadamente no que concerne ao paracetamol e aos AINEs, mesmo em idade pediátrica.

Este doente deverá ter em sua posse dispositivo de adrenalina injectável, tendo em conta que existem inúmeros fármacos de venda livre com paracetamol na sua composição, podendo contribuir para a ocorrência acidental de um novo episódio. Sendo raros os casos de hipersensibilidade ao paracetamol, a descrição deste caso clínico pretende alertar para a potencial gravidade das reacções que podem ocorrer com doses terapêuticas deste fármaco largamente usado.

REFERÊNCIAS

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Contacto

José Geraldo Dias

Serviço de Imunoalergologia

Hospital de Santa Maria, Centro Hospitalar Lisboa Norte

Av. Prof. Egas Moniz

1649 -035 Lisboa

E-mail: ze.geraldodias@gmail.com

 

Financiamento: Nenhum.

Declaração de conflitos de interesse: Nenhum.

 

Data de recepção / Received in: 12/07/2012

Data de aceitação / Accepted for publication in: 18/07/2012

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