SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.33 número1EDITORIALA difusão da obra pedagógica de Dewey em Portugal: O contributo de Adolfo Lima índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Revista Portuguesa de Educação

versão impressa ISSN 0871-9187

Rev. Port. de Educação vol.33 no.1 Braga jun. 2020

https://doi.org/10.21814/rpe.15051 

ARTIGOS

 

As missões francesas e o modernismo na fundação da filosofia acadêmica no Brasil

French missions and modernism in the instauration of academic philosophy in Brazil

Las misiones francesas y el modernismo en la fundación de la filosofía académica en Brasil

 

Ricardo Henrique Resende de Andradei
https://orcid.org/0000-0002-3009-4242

André Luis Machado Galvãoii
https://orcid.org/0000-0003-2339-4148

iUniversidade Federal do Recôncavo da Bahia, Centro de Formação de Professores em Amargosa, Brasil

iiUniversidade Federal do Recôncavo da Bahia, Centro de Formação de Professores em Amargosa, Brasil

 

Endereço para Correspondência

 

RESUMO

Este artigo aborda a influência das missões francesas no século XX e o surgimento do modernismo artístico paulista como fatores que contribuíram para a criação da filosofia acadêmica a partir da fundação da Universidade de São Paulo em 1934. Utilizou-se de vasta bibliografia que documenta a chegada dos franceses em suas missões acadêmicas, artísticas e culturais e os impactos intelectuais provocados pelo ensino de filosofia na recém-criada Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. Os objetivos principais deste trabalho são: descrever a importância da experiência universitária francesa no nascimento da investigação filosófica profissional no Brasil em um ambiente marcado por uma renovação cultural modernizante, a partir da Semana de Arte Moderna em 1922, e destacar a perspectiva dos professores franceses sobre os estudantes universitários brasileiros naquele período.

Palavras-chave: Missões francesas; Modernismo; Filosofia acadêmica; Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras; Universidade de São Paulo

 

ABSTRACT

This article deals with the influence of French missions in the 20th century and the appearing of São Paulo’s artistic modernism as factors that contributed to the creation of the academic philosophy at the University of São Paulo in 1934. In order to document the arrival of the French and of their academic, artistic and cultural missions and the intellectual impacts caused by the teaching of philosophy at the newly created Faculty of Philosophy, Sciences and Letters, a vast bibliography was used. The main objectives of the present work are: to describe the importance of French university experience in the birth of professional philosophical research in Brazil, an environment marked by a cultural recovery since the Modern Art Week of 1922, and to highlight the perspective of French teachers on Brazilian university students in that period.

Keywords: French missions; Modernism; Academic philosophy; Faculty of Philosophy, Sciences and Letters; University of São Paulo

 

RESUMEN

Este artículo aborda la influencia de las misiones francesas en el siglo XX y el surgimiento del modernismo artístico paulista como factores que contribuirán para la creación de la filosofía académica a partir de la fundación de la Universidad de São Paulo en 1934. Se utilizó de vasta bibliografía que documenta la llegada de los franceses en sus misiones académicas, artísticas y culturales y los impactos intelectuales causados por la enseñanza de la filosofía en la recién creada Facultad de Filosofía, Ciencias y Letras. Los objetivos principales de este trabajo son: describir la importancia de la experiencia universitaria francesa en el nacimiento de la investigación filosófica profesional en Brasil en un ambiente marcado por una renovación cultural modernizadora desde la Semana del Arte Moderno en 1922 y resaltar la perspectiva de los profesores franceses sobre los estudiantes universitarios brasileños en ese periodo.

Palabras-clave: Misiones francesas; Modernismo; Filosofía académica; Facultad de Filosofía, Ciencias y Letras; Universidad de São Paulo

 

1.Introdução

O grupo dos liberais fundadores da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras/FFCL – fulcro da fundação da Universidade de São Paulo/USP em 1934 – liderado pelo proprietário do jornal Estado de São Paulo, Júlio de Mesquita Filho, inspirou-se na experiência alemã, com relação aos seguintes temas: autonomia da universidade, entendida como liberdade acadêmica; indissolubilidade entre ensino e pesquisa; e pesquisa científica independente e desinteressada. Porém, por conta das resistências das velhas escolas, levou-se algum tempo para que o espírito da FFCL estabelecesse sua hegemonia sobre as demais. Fernando Azevedo (1958) achava que a FFCL deveria ser o “eixo de gravitação” de toda a experiência universitária da USP, “um centro de irradiação filosófica e um foco poderoso de atividades científicas” (pp. 216-217), em contraposição às antigas escolas, que eram até então meros centros de formação profissionalizante, nos moldes do bacharelismo clássico. A FFCL era a parte do projeto uspiano que concernia à formação de uma elite pensante capaz de responder aos desafios científicos e tecnológicos, destinada a produzir de acordo com os padrões da mais elevada cultura (em sentido europeu) e em longo prazo.

Se a inspiração inicial foi imitar as universidades alemãs no que diz respeito à estrutura de funcionamento, quanto ao predomínio do corpo docente que veio a constituir a FFCL, este foi essencialmente francês (quase todos bastante jovens e inexperientes na época, não obstante, absolutamente promissores), embora também contassem com alemães e italianos (esses mais experientes). A intenção óbvia da importação de docentes estrangeiros era a incorporação de conhecimentos e hábitos de pesquisa moderna praticados nas nações mais desenvolvidas. Ora, a predileção pelos franceses, não obstante a inexperiência patente dos professores indicados, se justifica pelo menos de duas maneiras: primeiro havia, desde o século XIX, uma inegável hegemonia cultural francesa entre os membros das elites brasileiras, para eles a França figurava como berço da civilidade moderna; em segundo lugar, por uma razão de caráter mais político, os liberais temiam que alemães e italianos, oriundos de países onde já dominavam ideologias autoritárias, pudessem contaminar o ambiente universitário brasileiro. Na ocasião, a Itália era dominada pelo fascismo e a Alemanha estava em plena escalada do nazismo.

Uma universidade fundada por liberais deveria sustentar e difundir o ideal político liberal e os fundadores dessa experiência pretendiam evitar os valores e atitudes contrárias. Temiam que ideias fascistas e nazistas pudessem vir na bagagem intelectual dos professores e no Brasil ir ao encontro do regime da escravidão, algo já então manifesto pela comunidade de imigrantes italianos que havia se incorporado a São Paulo. Por outro lado, cedendo às pressões dos membros dessa comunidade e do próprio regime de Mussolini, aceitaram alguns professores; contudo, apenas aqueles aptos às cadeiras relacionadas às ciências mais duras, tais como: ciência pura, análise matemática, geometria, estatística, geologia, mineralogia e, é claro, língua e literaturas italianas. Nada que pudesse comprometer a formação moral dos jovens, pervertendo suas inclinações políticas. Essas seriam áreas politicamente neutras. Nas humanidades, somente os professores oriundos da França – pátria dos ideais de “igualdade, liberdade e fraternidade” – deveriam prevalecer sobre quaisquer outros: filosofia, sociologia, economia política, política, geografia humana, letras clássicas e língua e literaturas francesas. Já em outras áreas, como química e história natural, optou-se por contratar alemães (alguns de origem judaica) que fugiam da ascensão do nazismo. Desse modo, tentou-se preservar o veio liberal-democrático que deveria caracterizar a Faculdade de Filosofia, a “cabeça” da revolução uspiana desde o seu início (Vataghin, 1992, pp. 151-173). Além da expressiva ascedência francesa no nascimento da USP, deve-se ainda assinalar a sua relação com o modernismo artístico e cultural que surgia no Brasil no início do século XX.

 

2. Influência francesa no modernismo brasileiro

Vários são os caminhos que levam à conexão entre os movimentos e tendências artístico-culturais franceses e algumas das mais importantes expressões da arte moderna no Brasil, principalmente na primeira metade do século XX. Essa relação, denominada de “afeto cultural franco-brasileiro” por Silviano Santiago (2009), pode-se identificar, entre outras formas, na tentativa dos então jovens escritores brasileiros de “aclimatar as ousadíssimas teorias vanguardistas europeias ao então acanhado ambiente cultural brasileiro, tendo a agressiva antropofagia como proposta teórica” (Santiago, 2009, p. 22). A vereda antropofágica de Oswald de Andrade ajuda a conceber esse “afeto cultural”, partindo da ideia de que só a antropofagia une os cidadãos, os pensamentos, enfim, as culturas, retomando o seu Manifesto Antropofágico de 1928. Deglutir o que há de bom de outras culturas ajuda a fortalecer o deglutidor, herdando e aperfeiçoando suas potencialidades, tal como acreditavam algumas tribos de nativos ao devorarem seus inimigos.

Não obstante a Semana de Arte Moderna, realizada em São Paulo em fevereiro de 1922, ser considerada por muitos autores o “marco zero” do modernismo no Brasil (Simioni, 2013), a relação entre França e Brasil nas manifestações artístico-culturais ocorre antes, durante e depois desse histórico evento. Nesse sentido, cabe considerar alguns índices dessa relação expostos por Camargos (2003), desde a adoção da “Marselhesa” pelos republicanos como hino nacional brasileiro antes de adotar o atual, cuja letra tem a autoria de Osório Duque Estrada, à modernização (ou afrancesamento) do Rio de Janeiro no início do século XX, com um alinhamento à arquitetura francesa como forma de “civilizar” a capital federal. Para a autora, nesse período, no Brasil, “vivia-se de acordo com paradigmas determinados pela cultura eurófila aristocrática, especialmente de corte francês” (Camargos, 2003, p. 139).

Ao se considerarem apenas as contribuições francesas para a arte moderna brasileira, é possível afirmar que essa história começa na segunda década do século XX, com a ida de artistas brasileiros para períodos de estudo em Paris. Alguns dos expoentes do que viria a ser o movimento modernista brasileiro experimentaram períodos de estudos na cidade-luz, como Victor Brecheret, Tarsila do Amaral, Oswald de Andrade, Anita Malfatti, Di Cavalcanti, entre outros. Sobre esse contato dos artistas brasileiros com o ambiente parisiense, Amaral (2012) o considera uma oportunidade de renovação da arte brasileira:

atualizar as ideias estéticas a partir de modelos europeus recentes, sobretudo na área de artes plásticas, surgiu como uma possibilidade de renovação para a arte brasileira. Cubismo, expressionismo, ideias futuristas, dadaísmo, construtivismo, surrealismo e o “clima” parisiense onde imperava, nos anos 20, o art déco resultaram em inspirações que, direta ou indiretamente, alimentaram os artistas modernistas brasileiros nos anos 20 e 30. Paris, em particular, forneceria o ambiente propício para essas inspirações de ruptura. (p. 11)

Durante esse contato com a arte e cultura europeias, os brasileiros redescobriram o seu torrão natal, voltando seus interesses para aspectos culturais das terras tupiniquins. É o que sinaliza Simioni (2013), ressaltando o caso de Tarsila de Amaral, que em carta a familiares afirmava o seu desejo de ser cada vez mais brasileira, ao destacar que a abordagem artística de nações diferentes estava em alta no contexto parisiense daquela época. Assim, o contato de brasileiros com a realidade artístico-cultural francesa tornou-se também um importante meio para a inserção da identidade cultural brasileira nas obras de jovens artistas modernistas que adiante trariam para o outro lado do oceano novas e revolucionárias tendências que se expandiriam para os mais variados matizes do cenário artístico de um Brasil ainda arcaico, tanto no desenvolvimento econômico, quanto nos costumes e concepções da sociedade local sobre as novas tendências artísticas que surgiam.

As vanguardas europeias – muitas delas erigidas e desenvolvidas à sombra dos prédios e monumentos parisienses – ajudaram a enxergar o primitivismo brasileiro. Segundo Figueiredo e Glenadel (2009), muitos artistas plásticos e escritores descobriram seus países originários em Paris e, segundo elas, “descobrir nosso primitivismo nos anos 20 significava desenterrar as duas heranças rasuradas até então pelo olhar eurocêntrico: a herança indígena e a herança africana”(p. 50). E esse desterro se revelaria no modernismo artístico que o Brasil experimentaria logo depois, que seria responsável por trazer novas abordagens a essas heranças, inserindo-as nos debates acerca dos temas relacionados à arte e ao próprio conceito de formação do povo brasileiro.

Porém, não há como não enxergar paradoxos nessa influência francesa sobre os artistas brasileiros. Se havia a “redescoberta” da cultura brasileira, e o olhar mais aguçado sobre seus costumes e tradições, como conciliar com a forte incidência até mesmo do idioma francês nas manifestações da arte moderna tupiniquim? Amaral (2012) relata a publicação de poemas em francês de Sergio Milliet e a parceria entre Oswald de Andrade e Guilherme de Almeida, que resultou na escrita de uma peça teatral em francês, intitulada Mon Coeur Balance, Leur Âme. Sobre essa influência, Amaral (2012) conclui: “É claro que não foi somente a influência de Paris que trouxe armas para o modernismo em sua tentativa de renovação no Brasil... mas sem dúvida era Paris o parâmetro para todos os jovens artistas, escritores e poetas” (p. 13).

Se a influência francesa foi marcante para o início do movimento modernista no Brasil, nas primeiras décadas do século XX, é possível afirmar, ainda, que essa relação intercultural entre essas nações, esse já mencionado “afeto cultural” teve um novo capítulo com as missões francesas a partir de 1934. E a disseminação dos ideais modernistas, principalmente em São Paulo, de alguma forma também contribuiu para “preparar o terreno” para as transformações que seriam introduzidas não só no ensino, mas na cultura brasileira, com a chegada das missões francesas.

Com a chegada de professores franceses para ocupar as cadeiras da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras/FFCL da Universidade de São Paulo/USP, novas diretrizes foram traçadas para a formação de um pensamento nacional, a partir de ideais e teorias que poderiam trazer as luzes parisienses para servir de farol diante das sombras do imberbe conhecimento científico e acadêmico então desenvolvido no Brasil.

De fato, para além da influência francesa nas artes modernistas brasileiras, as missões acadêmicas trouxeram a São Paulo uma nova leva de docentes franceses que, mesmo em sua maioria jovens e com pouca experiência acadêmica, contribuiriam significativamente para solidificar não só a FFCL/USP, mas também a pesquisa em ciências humanas no país. Dentre esses jovens docentes, Claude Lévi-Strauss, autor da célebre obra Tristes Trópicos, estabeleceu uma relação pessoal com Mário de Andrade, um dos expoentes do modernismo brasileiro. Em entrevista ao jornal A Folha de São Paulo, em 2004, o filósofo francês falou dessa relação com Andrade, quem considerava um grande escritor, com enorme cultura, relatando ter sido com ele que realizou seu primeiro estudo de folclore em terras tupiniquins, visitando feiras e festas de pequenas localidades. Para Lévi-Strauss, nessa entrevista, a grande influência francesa na vida acadêmica brasileira estava relacionada também ao fato da disseminação da cultura e língua francesas no país naquela época, em que, na universidade, professores e alunos falavam bem o idioma francês e admiravam personalidades oriundas da França.

Mas nem todos aderiram às ideias trazidas pelos ventos que sopravam do Velho Continente rumo às terras brasileiras. Enquanto expoentes do modernismo nacional se apropriavam das tendências advindas de fora, alguns autores relutavam contra tal conduta, adotando uma postura nacionalista ufanista, com um cariz xenófobo, enxergando apenas dentro do país e de sua história avanços artísticos e culturais que merecessem cuidado e divulgação. Segundo Miceli (2010), “esses autores se enxergavam como nacionalistas fanáticos em contraposição àqueles contemporâneos entusiastas do diálogo com a Europa” (p. 9). Entre tais artistas, destacavam-se Elísio de Carvalho, Plínio Salgado, João do Rio e até mesmo Menotti Del Picchia e Ronald de Carvalho, considerados dissidentes do modernismo, uma vez que participaram inclusive da Semana de Arte Moderna de 1922.

A arte moderna brasileira foi fortemente influenciada pela cultura e arte francesas do século XX. Isso fica evidente nas produções artísticas no Brasil nesse período e também na construção do pensamento nacional, cujo caminho recebeu não apenas influência, mas a colaboração direta dos docentes que vieram a São Paulo para entrar para a história da USP e do país. Após as primeiras décadas do século XX, é possível afirmar que a arte e a cultura do Brasil jamais foram as mesmas, graças à renovação originada pelo contato com outras pessoas e culturas, principalmente advindas do território francês.

3. As missões francesas na fundação da USP

As missões francesas dirigidas à USP tiveram, na década de 30, basicamente três fases: a primeira em 1934, a segunda de 1935 a 1937, e a terceira de 1938 a 1940. A primeira missão foi marcada pela contratação de três professores universitários (Émile Coornaert, Robert Garric e Pierre Deffontaines), um professor assistente (Paul Arbousse-Bastide) e dois professores efetivos de colégios (Étienne Borne e Michel Berveiller). A missão estava longe de ser a esperada por Teodoro Ramos (que se tornou o primeiro diretor da FFCL e que juntamente com George Dumas ficou encarregado de selecionar os novos mestres), pois nela não constavam, por exemplo, os notáveis do Instituto de Alta Cultura da França. O que, evidentemente, frustrou as altas expectativas do “grupo do Estadão”. Tratava-se de uma delegação transitória, pois a maior parte não almejava de fato ficar no Brasil durante três anos, que era o tempo pretendido por Ramos (Petitjean, 1996).

A segunda missão caracterizou-se pelas substituições dos professores que não renovaram o seu contrato em 1935 (quatro professores) e pela escolha de mais um para a segunda cadeira de Sociologia recém-criada. Para a constituição da nova missão, as ligações pessoais de Georges Dumas tiveram papel determinante. A delegação foi em média mais jovem do que a primeira, constituída por professores efetivos de liceus de províncias. Esta missão inova as relações científicas e diplomáticas entre Brasil e França, que se caracterizavam pela vinda de professores mais velhos, renomados e com posições mais altas na hierarquia institucional de ensino. Assim, foram contratados Pierre Monbeig, Fernand Braudel, Pierre Hourcarde, Jean Maugüé e Claude Lévi-Strauss. Esta foi a missão de maior duração, pois a maioria dos professores cumpriu os três anos e alguns ficaram ainda por mais tempo, até meados dos anos de 1940. Porém, também se caracterizou por ser agitada, repleta de conflitos permanentes de ordem pessoal, material e pedagógica. François Perroux é contratado em 1936, neste caso tratava-se de um renomado professor universitário, contudo ficaria apenas por um ano. Em 1937, Réne Courtin o substitui (Petitjean, 1996, p. 293).

Na terceira missão, a renovação dos contratos torna-se mais difícil em virtude da vigência do Estado Novo. Júlio de Mesquita Filho e os intelectuais que orbitavam em torno do jornal Estado de São Paulo já não possuíam a mesma influência de outrora. Nessa época os franceses conservavam uma relativa posição de desprestígio, em favor dos professores italianos e alemães, vindos de países de regimes ditatoriais, que eram mais semelhantes ao regime que vigorava no Brasil da ditadura de Vargas. Entram, em 1938, Jean Gagé, Pierre Fromont, Alfredo Bonzon e Roger Bastide. Em 1939, é contratado Paul Hugon. Com o início da Segunda Guerra, as substituições estancaram e a missão entra em um período de estabilidade (Petitjean, 1996, p. 295).

Etienne Borne foi, desde 1934, o primeiro professor encarregado de ministrar os cursos de Filosofia da recém-criada Faculdade. Em fevereiro de 1935 no navio Mendoza da Compagnie des Transports Maritimes chega a bordo, para substituir o seu compatriota, o “jovem normalien” Jean Maugüé. A partir deste importante personagem, a FFCL começa “a importar, peça por peça, um Departamento Francês de Filosofia” (Arantes, 1994, p. 61) contando com os serviços do médico e filósofo positivista Georges Dumas que, malgrado seu entusiasmo pela experiência civilizatória, não conhecia tão bem quanto se supunha o nosso país. Lévi-Strauss, no seu Tristes Trópicos (1955), recorda, entre suas ilusões sobre o Brasil, que, na ocasião em que foi convidado por Dumas, prometeram ao jovem professor de sociologia que encontraria, facilmente, indígenas nos arredores de São Paulo:

Seja como for, eu era demasiado ignorante para não alimentar ilusões como essas, tão favoráveis aos meus propósitos; tanto mais que o próprio Georges Dumas tinha ideias tão imprecisas como essas acerca do assunto: tinha conhecido o Brasil meridional numa época em que a exterminação das populações não tinha ainda chegado a termo; e sobretudo o convívio com ditadores, senhores feudais e mecenas de que ele tanto gostava não lhe tinha trazido quaisquer luzes sobre o assunto. (p. 55)

A filosofia francesa há muito chegava ao Brasil por diversos meios, contatos de viagem, “achados de livraria”, mas sempre de uma maneira avulsa, ao sabor dos ventos que sopravam em uma ou outra direção. A partir daquele momento, nas palavras de Paulo Arantes (1994), tentava se montar no Brasil “a própria usina que a produzia em escala acadêmica” (Arantes, 1994, p. 61). Este fato representou uma reviravolta da própria história de dependência cultural do Brasil em relação à Europa. As ideias filosóficas dispersas numa São Paulo cuja tônica até aquele momento era dada por “liberais krausistas” e “positivisas heterdoxos” (Vita, 1969, pp. 16-20), a partir de então teriam, não apenas que sofrer o condicionamento da disciplina acadêmica francesa, mas também que provar o sabor de uma nova produção local, mesmo com a condição de que os ingredientes permanecessem essencialmente estrangeiros.

O Brasil continuaria, evidentemente, dependente do mesmo fluxo externo de ideias filosóficas, contudo poderia dispor de um tirocínio formado nesses grandes centros, e por isso mesmo poderia contar com um crivo mais afinado ao compasso europeu e mais capacitado a livrar-se dos pastiches dominantes no meio intelectual brasileiro da época. A esperança dos pais fundadores do nascente Departamento Ultramar era que o magistério exercido por uma comunidade intelectual, não contaminada com a frivolidade e superficialidade que impregnava os hábitos mentais e a cultura letrada no Brasil, poderia surtir um efeito civilizador.

O projeto que funda a faculdade de filosofia a partir de uma missão francesa pretendia corrigir as falhas mais nocivas presentes na alta cultura brasileira sem que necessariamente esta interferência significasse um processo de aculturação e supressão dos traços nacionais. Contudo, o diletantismo vaidoso e inútil, o bacharelismo e a ostentação de uma fachada das belas letras não mais respondiam à modernização reclamada, agora não apenas pelas elites ilustradas, mas também por outras camadas que já passavam a reconhecer o acesso à cultura universitária como direito. De algum modo a missão francesa recolonizou o Brasil, mas como observou Mário de Andrade, em 1936, num artigo de jornal, esta colonização não foi impositiva, não visou destruir os nossos valores mais profundos, antes foi compressiva, solidária, e assim contribuiu para uma transição do “ruim nacional” para um “bom nacional”, sem que se impusesse “a desistência de nós mesmos” (Andrade, 1993, p. 3).

Sabia-se que a situação de dependência cultural do Brasil era placentária e não poderia ser superada sem um esforço renovado de assimilação sistemática, rigorosa, autoconsciente da cultura europeia. A imitação, que marcou de forma característica todos os aspectos da vida cultural brasileira, não poderia ser simplesmente estripada para fazer jorrar uma originalidade supostamente represada na “alma nacional”. Sabia-se que o melhor a fazer era submeter a cultura alienígena ao temperamento nacional e este ao esforço concentrado para digeri-la, antropofagicamente (como sugeriu Oswald de Andrade), em benefício da cultura brasileira. Para isso, seria essencial criar os meios e as condições para tornar possível um processo contínuo de formação, superando os hiatos e a intermitência que caracterizavam os ciclos e as correntes de pensamento que se alternavam no país.

As “elites despaisadas” (expressão com que Mário de Andrade caracterizou os homens e mulheres instruídos no Brasil de 1930) prefeririam o sotaque francês à influência cultural norte-americana, que vinha sempre acompanhada por um negócio a se fazer à guisa de contrapartida econômica ou por uma ameaça de dominação imperialista. A opção por constituir um Departamento de Filosofia nos moldes franceses também atenderia a um conjunto de expectativas médias relacionadas a alguns estereótipos culturais associados à cultura francesa. Nossas elites desterradas buscavam a modernidade por via de um acesso que substituísse a submissão pela admiração, a dependência pela colaboração, o estrangeiro pelo universal, e assim acreditavam que a vocação liberal, democrática e fraternal da cultura francesa redimiria. O paradigma era a cultura expressa em parte importante da filosofia e da literatura francófona do período moderno.

A cultura francesa do século XX era parte integrante e essencial da ideologia liberal dos renovadores paulistas, por isso empenharam-se em procurar na França jovens professores que fossem talentosos e promissores e que, sem qualquer perspectiva de se sustentarem como professores em Paris, preferiram arriscar uma carreira no Atlântico Sul a ter que ministrar aulas nas províncias do interior da França. Mesmo sendo formada basicamente por jovens inexperientes, a missão francesa que desembarcou no Brasil teve uma composição de notável qualidade técnica com nomes que posteriormente exerceram uma influência significativa no desenvolvimento da cultura e das Ciências Humanas na segunda metade do século XX. Nomes, tais como: o historiador Fernand Braudel; o antropólogo Claude Lévi-Strauss; o economista François Perroux; o sociólogo Roger Bastide; e o sociólogo, este com mais idade, Georges Gurvitch. Entre os filósofos cabe destacar o mais experiente e já consagrado dentre os que chegaram nas primeiras décadas, Martial Gueroult, um dos criadores do Método Estrutural de História da Filosofia, além de Etienne Borne, Gilles Gaston Granger e o próprio Jean Maugüé (Miceli, 1989).

Nas décadas seguintes, chegaram como professores visitantes Michel Foucault, Claude Léfort, Gérard Lebrun e Michel Debrun. A importação de uma “faculdade inteira”, em um meio ainda dominado pelos bacharéis em Direito e pelos diplomados pelas grandes faculdades tradicionais, representou, segundo as palavras de Florestan Fernandes (1975, p. 63), “uma verdadeira revolução cultural”. A influência da cultura humanística francesa em geral, e da história da filosofia em particular, foi muito visível, o que levou Michel Foucault a afirmar ironicamente que “o departamento de Filosofia é um departamento francês de Ultramar”1, expressão que serviu de título à obra de Paulo Eduardo Arantes (1994).

É necessário sublinhar que a articulação universitária entre França-Brasil e o projeto civilizador da América portuguesa inicia-se bem antes da fundação da USP. Desde o período colonial, os “aventureiros” franceses disputavam o domínio político das terras brasileiras com os portugueses, espanhóis, holandeses, entre outros. São notórias as alegadas redescobertas francesas do Brasil nos séculos XVI e XVII. Pintores, botânicos, zoólogos, geólogos, comerciantes e turistas franceses procuravam nos trópicos novas experiências ou algumas excentricidades da natureza ou da cultura. O naturalista Saint-Hilaire e o pintor Jean Baptiste Debret são apenas os nomes mais conhecidos entre aqueles que estudaram o Brasil a produzir admiração pelo país no restante do mundo. Assim, o Brasil Colônia, o Brasil Império e o Brasil República foram sempre objetos de interesse dos franceses, que, por sua vez, quase sempre foram admirados e muito bem acolhidos pelo povo brasileiro e especialmente por suas elites dominantes, que tentavam imitá-los nos hábitos mais comezinhos.

Assim, em 1908 deu-se início ao Groupement des universités et des grandes écoles de France pour les relations avec l’Amérique Latine, com o fito de dar continuidade e também expandir as relações intelectuais entre a França e os países da América Latina. A partir de 1912, o Groupement passou a ser financiado pelo Fond pour l’expansion universitaire et scientifique de la France à l’étranger e a partir de 1919 passa a receber apoio financeiro do Service des oeuvres françaises à l’étranger. Além disso, merece ainda menção o fato de que a Aliança Francesa, que havia sido fundada em 1889, recebeu um extraordinário impulso para difusão da língua e da cultura francesas no Brasil. Em 1922 foi fundado o Instituto Brasileiro de Alta Cultura, em 1925 foi inaugurado, em São Paulo, o Liceu Franco-Brasileiro, e em 1927 foi criada a Cátedra de Estudos Brasileiros na Sorbonne (Massi, 1991, pp. 29 e seguintes).

No plano político, vale salientar que a França passou a ser governada por uma coalizão de partidos de esquerda chamada de Front Populaire que entre 1936 a 1938 passou a realizar uma série de reformas que acabaram por beneficiar o intercâmbio entre o Brasil e a França, não obstante também produzissem alguma desconfiança quanto à inclinação esquerdista dos novos professores recém-chegados (Cordeiro, 2008, pp. 48-50). Contudo, conquanto esta suspeita não tenha se transformado em perseguição política, a presença dos professores franceses inaugura um novo patamar no cultivo da inteligência brasileira.

Ora, logo fica evidente que, além do interesse histórico dos brasileiros pelos franceses, havia por parte destes um pronunciado interesse pela América Latina, em especial pelo Brasil. E isso fica ainda mais claro quando são considerados os diversos esforços que durante o século XX foram materializados em instituições de intercâmbio e cooperação técnica, científica e cultural, publicações conjuntas, expedições etnográficas pelas selvas brasileiras, bolsas de estudos bilaterais, intercâmbios culturais diversos e a criação de fundos financeiros para o fomento de todas essas trocas, que reafirmavam e expandiam a presença da cultura universitária francesa no Brasil. Nos anos 1930, um francês que circulasse no ambiente acadêmico brasileiro poderia se sentir relativamente à vontade para usar seu próprio idioma, pois raros eram os jovens universitários que desconheciam por completo a língua de Balzac. A USP ficou conhecida como a “Universidade da língua francesa”, para ciúme dos professores norte-americanos, alemães e italianos que não encontravam a mesma facilidade para se comunicar com os estudantes brasileiros.

4. A perspectiva dos missionários franceses

O que impressionava os franceses era a seguinte questão: como foi possível aos brasileiros possuir tanta inteligência e criatividade com tão pouca leitura e bagagem erudita? Não havia no Brasil tradição erudita, fosse da filosofia ou até mesmo da literatura, a cultura letrada brasileira apenas roçava a superfície dos clássicos europeus, ficava evidente a ausência de um processo formativo continuado. O filósofo George Dumas (a quem Maugüé em seu diário, Les Dents Agacées, de 1982, chama de “esposador do Brasil”), numa carta de 1936 endereçada ao então Ministro da Educação Gustavo Capanema, quando este pensava em disseminar o projeto de criação de uma FFCL na Universidade do Distrito Federal (na época sediada no Rio de Janeiro)2, sem exatamente pretender replicar a experiência paulista, fornece uma percepção de como os estudantes brasileiros eram vistos por seus mestres franceses:

O ponto de partida de algumas considerações que expus é a contradição que existe entre o valor intelectual de tantos brasileiros e a relativa rareza de produção intelectual brasileira na área da crítica literária, filosofia, história e outros domínios intelectuais. Todos os professores franceses que vêm ao Brasil se impressionam com a cultura e inteligência dos ouvintes e estudantes que conhecem mais de perto, mas também se espantam pelo fato de que de tanta inteligência e tanta cultura se originem tão poucas obras que contem na produção mundial. (Dumas, cit. em Schwartzman et al., 2000, pp. 342-343)

Nesta mesma carta, Dumas traça ainda aquilo que considerava as funções essenciais da FFCL, deixando de lado aquela que foi a principal aspiração do grupo paulista e que se configurava como uma função política: formar as elites dirigentes. Dumas (cit. em Schwartzman et al., 2000) enfatizava apenas a dimensão acadêmica do empreendimento que deveria ajudar a superar o caráter pueril das elites brasileiras:

A questão é saber se ele [o Brasil] continuará a se comprazer com o gozo intelectual para o qual levam naturalmente seus gostos, ou se ele buscará associar este prazer intelectual a preocupação constante de fazer a cultura servir à formação do espírito; se ele continuará sendo um país cheio de charme onde se lê tudo e se produz pouco, ou se terá amanhã um lugar adequado entre as nações que colaboram na produção intelectual do mundo… . Elas terão as duas funções de todas as faculdades de letras e de ciências. Uma será de lhes fornecer professores de ensino secundário que juntarão aos conhecimentos aprofundados e precisos o espírito de método e de crítica e que guiarão as novas gerações não pela imposição das idéias, mas dando-lhes esta atitude reflexiva que os acostumará a pensar por si mesmos. A segunda função será a de formar pesquisadores, de dar conselhos, orientações e meios de trabalho para aqueles que sejam particularmente dotados para o trabalho pessoal em todos os domínios e que serão especialmente destinados por suas aptidões a passar rapidamente das cátedras do ensino secundário às cátedras do ensino superior. (pp. 343-345)

Conforme os testemunhos registrados da época, parece que de alguma forma a previsão confirmou-se em algum grau. No confronto entre a “tenuidade nacional” e a “densidade europeia” (expressões utilizadas por Gilberto Freire como um par antitético a revelar o contraste civilizacional no Brasil) deu-se um espanto recíproco. O assombro dos professores diante de tanta ignorância conjugada com uma extraordinária vivacidade intelectual e o encantamento dos estudantes pela elegância dos seus mestres e a resistência em seguir os rigorosos métodos de pesquisa marcaram a fundação da filosofia acadêmica.

O depoimento de Lévi-Strauss (1955) nos informa das impressões que teve sobre o perfil cultural dos estudantes que encontrou no Brasil:

Quanto aos nossos estudantes, queriam saber tudo; qualquer que fosse o campo do saber, só a teoria mais recente merecia ser considerada. Fartos dos festins intelectuais do passado, que de resto só conheciam de ouvido pois nunca liam as obras originais, mostravam um entusiasmo permanente pelos novos pratos. Seria preciso, no que lhes diz respeito, falar de moda e não de cultura: idéias e doutrinas não apresentavam aos seus olhos nenhum valor intrínseco, eram apenas considerados por eles como instrumentos de prestígio, cuja primazia tinham que obter. O fato de compartilhar uma teoria já conhecida por outros era o mesmo que usar um vestido pela segunda vez; corria-se o risco de um vexame. Em contrapartida, verificava-se uma concorrência encarniçada, com grandes reforços de revistas de divulgação, periódicos sensacionalistas e manuais, com o fito de obtenção do exclusivo do modelo mais recente no campo das ideias. Produtos selecionados dos “grupinhos acadêmicos”, os meus colegas e eu sentíamo-nos por vezes embaraçados: treinados para respeitarmos apenas as ideias amadurecidas, víamo-nos às voltas com o assédio de estudantes que manifestavam uma ignorância total quanto ao passado, mas que mantinham sempre um avanço de alguns meses em relação a nós quanto à informação. Todavia, a erudição, para a qual não sentiam vontade nem tinham método, parecia-lhes, apesar de tudo, um dever; e por isso as suas dissertações consistiam sempre, fosse qual fosse o tema tratado, numa evocação da história geral da humanidade, a partir dos macacos antropóides, para terminarem, após algumas citações de Platão, Aristóteles e Comte, com uma paráfrase do polígrafo viscoso cuja publicação tinha tanto mais valor quanto mais obscuro era e portanto maiores as possibilidades de não ser conhecido por mais ninguém. (pp. 129-130)

Vale registrar que os franceses, “missionários” da civilização europeia no Atlântico Sul, tiveram também que adaptar suas expectativas quanto ao “paraíso” que imaginavam ser o Brasil. Diante das mazelas sociais e das dificuldades de acesso às ideias mais profundas em função dos hábitos culturais arraigados, tiveram que adequar seus olhares e projetos diante do quadro nacional. Um dos testemunhos mais nítidos do espanto que a sociedade brasileira provocava nos jovens professores é do eminente historiador, na época um jovem e talentoso professor (que se tornou notório após os anos 1950), Fernand Braudel, que pouco mais de um ano após sua chegada atende ao apelo dos estudantes para registrar em uma pequena revista suas impressões sobre o Brasil, que ele compara no artigo à Argélia, que na época ainda era uma colônia francesa:

A sociedade brasileira é dotada de extrema flexibilidade. Seus elementos não são aglutinados, dispostos em quadros rígidos, observando ordem certa… . Há uma maleabilidade espantosa da massa social, móbil, predisposta sempre a se remodelar do princípio ao fim da escala, sob quaisquer condições econômicas, talvez demasiado maleáveis, com borrascas que outras sociedades não poderiam suportar, entregue ao sopro das idéias, a todo pano, e ao progresso com todas as suas inovações… . Aqui os movimentos verticais têm força de torrentes, mas se processam tanto no sentido ascensional como no naufrágio. Além disso, estranhas correntes horizontais arrastam o médico para o magistério, do magistério para a política, da política para as fazendas de café ou para as culturas de algodão. (Braudel, 1936, p. 8)

A adaptabilidade demonstrada pelo povo brasileiro não se traduzia, ao olhar dos novos professores franceses, em mobilidade econômica, social e cultural. Não indicava que haveria qualquer melhora em curto prazo no quadro global de misérias que se acumulavam desde os tempos da escravidão, que como se sabe foi abolida de forma a não permitir a reestruturação da população negra que, uma vez formalmente livre, continuou sem qualquer oportunidade de trabalho na zona rural ou nos centros urbanos. Não havia na trama do tecido social brasileiro, ao menos na percepção de Braudel, nada que sugerisse um livre trânsito de ideias, nada que indicasse o progresso dos valores políticos em comparação com o que ocorria na França. O que Braudel e alguns outros professores da missão viam na sociedade brasileira (Lévi-Strauss em Tristes Trópicos é contundente quanto a este aspecto) não autorizava qualquer esperança de um futuro próximo mais próspero economicamente, mais desenvolvido culturalmente. Triste Brasil.

De um lado, as mazelas gritavam por um enfrentamento sério e urgente, do outro lado, um grupo de pequenos burgueses estava a demandar nas aulas por “espetáculos de erudição”. Esta tensão foi muito mais acentuada entre os professores socialmente sensíveis e o primeiro grupo de estudantes, destinados quase exclusivamente a compor a elite de uma geração. Com o ingresso dos professores da rede pública, estes bem mais próximos do Brasil real, houve uma paulatina mudança, inclusive no âmbito do nível de exigência dos mestres franceses. A ideia continuava a ser elevar-se acima do que se considerava erudito, mas elevar-se não seria o mesmo que perder-se entre as nuvens.

Nem o mimetismo provinciano que abjura o que é nacional em favor do que é europeu, nem o nacionalismo ingênuo que se presta à folclorização da cultura. Ver do alto, mas sem perder o interesse pela terra, por seu passado, pelos processos sociais, antropológicos e políticos que lhes foram constitutivos. Tal como Maugüé em sua bibliografia (1982), Braudel também recomendava aos estudantes de História que não confiassem na transmissão oral, quase sempre “folclórica e mistificadora”, e que, além de frequentarem as bibliotecas e acervos documentais, também tratassem de compor sua biblioteca particular. Um historiador deveria saber, muito bem, português, latim e filosofia. Isto era o que se considerava uma “cultura geral de base”, sem a qual não seria possível formar-se bem. Uma cultura geral de base é antes de tudo uma experiência vivida entre os livros, no cultivo paciente da fruição direta, tão longe quanto possível das sínteses dos manuais ou das traduções de valor duvidoso (Cordeiro, 2008, pp. 78-79).

O testemunho mais conhecido e emblemático desses conflitos talvez seja ainda o de Lévi-Strauss em seu Tristes Trópicos. O antropólogo francês registra suas impressões pouco auspiciosas da experiência de ensino, deixando claro o seu descontentamento pessoal. As suas impressões quanto às condições estruturais são mais ou menos as mesmas que testemunharam os outros professores, em particular Braudel e Maugüé. A arquitetura era de profundo mau gosto, o trânsito da cidade era aturdido, caótico, toda a sociedade se mostrava desorganizada, na Universidade não havia bibliotecas bem equipadas, enfim, as precariedades eram muitas e dramáticas. Contudo, Lévi-Strauss manifestou com bastante contundência sua insatisfação quando, ao invés de ensinar os “aristocratas” que se matricularam durante os primeiros cursos, passou a ensinar os professores da rede pública, oriundos de uma população mais pobre e bem menos preparada intelectualmente. Não havia neste público uma cultura de base (o conhecimento do latim, da filosofia, do francês, e sequer o pleno domínio da língua portuguesa) e portanto tornava-se praticamente impossível cumprir os requisitos de leitura dos programas de estudo (Lévi-Strauss, 1955). Essas dificuldades serviram de desestímulo para muitos dos professores novatos, entretanto serviram também como estímulo à superação. Maugüé está, sem dúvida, entre aqueles “missionários” que compreenderam de maneira acertada o que deveria ser feito para se firmar uma verdadeira cultura de pesquisa filosófica no Brasil, por isso mesmo ele foi consagrado como o criador da filosofia acadêmica no Brasil (Andrade, 2017).

5. Considerações finais

As missões francesas foram o ponto de partida para o nascimento da filosofia acadêmica no Brasil. Graças à influência artística francesa na arte moderna e à montagem de uma “usina” própria de produção acadêmica, o Brasil pôde superar ao longo de pelo menos sete ou oito décadas o amadorismo e os cacoetes de uma filosofia laudatória e superficial feita por beletristas e autodidatas. Por outro lado, por influência das missões, o interesse dos filósofos acadêmicos pelo pensamento e pelas questões brasileiras arrefeceu a ponto de ser plenamente liquidado. Cruz Costa foi um dos poucos que, ao custo de sacrificar sua própria credibilidade acadêmica, demonstrou algum interesse pela matéria (Oliveira, 2012). A filosofia acadêmica nascida no Departamento Francês de Ultramar rompe, silenciosamente, com uma tradição iniciada por Sílvio Romero, continuada pelo Padre Franca e por fim retomada por Miguel Reale, que funda o Instituto Brasileiro de Filosofia para continuar a missão do cultivo da filosofia em terras brasileiras, desta vez com um cunho mais nacionalista e conservador.

Ademais, as missões francesas no século XX contribuíram significativamente para o desenvolvimento das artes nacionais e do próprio modernismo brasileiro, haja vista o diálogo entre professores e artistas no período. Muito mais do que apenas a troca de experiências entre franceses e brasileiros, esse diálogo representou um despertar para o estudo mais aprofundado das artes e de suas manifestações no período, considerando que Paris era o celeiro cultural da arte moderna no início do século. Os artistas modernistas, principalmente os de São Paulo, foram muito influenciados pelos ideais artísticos franceses, mas também pelos conceitos subjacentes ao pujante referencial teórico das Ciências Humanas que os professores gauleses trouxeram na bagagem para sua histórica estadia na FFCL.

A filosofia acadêmica brasileira nasce, então, como uma filha tardia da universidade europeia, uma faculdade integrada, mas ao mesmo tempo privilegiada, como foram as escolas isoladas e protegidas por Napoleão, a exemplo da École Politéchnique e da École Normale no início do século XIX. Com um modelo alemão e com um espírito francês, a FFCL tornou-se um terreno fértil não apenas para o desenvolvimento dos estudos aprofundados sobre filosofia, mas, sobretudo, como espaço para a maturação de um projeto de Ciências Humanas para o Brasil, no qual a filosofia seria quase sempre um elemento retardatário a servir de ponto de equilíbrio com a cultura europeia.

Todavia, deve-se insistir, para maior ênfase, que os contrastes entre a missão e os estudantes não foram poucos e nem suaves. Argúcia, inteligência e curiosidade filoneísta contrastavam, na década de 1930, com a ausência de um conhecimento sistemático dos clássicos. Essa notável combinação de contrastes desafiou os mestres franceses, dificultou, em alguma medida, o estabelecimento de uma atitude profissional, propriamente acadêmica, nos estudos da filosofia no Brasil. Mas é inegável que a vivacidade intelectual diagnosticada pelos missionários franceses e o pendor para a modernidade estética – com a concomitante persistência dos acadêmicos no preenchimento das lacunas de formação quanto ao conteúdo clássico – contribuíram para que em menos de um século as universidades brasileiras, influenciadas pela experiência uspiana, pudessem ajustar-se ao padrão europeu, ao menos na pesquisa histórica das ideias filosóficas.

 

Referências

Aleluia, J. R. S. (2014). A invenção do filósofo ilustrado: Notas arqueogenealógicas do ensino da filosofia no Brasil. Editora Cultura Acadêmica.         [ Links ]

Amaral, A. (2012). O modernismo brasileiro e o contexto cultural dos anos 20. Revista USP, 94, 9-18.         [ Links ]

Andrade, M. (1993). Vida literária. Editora Hucitec; EDUSP.         [ Links ]

Andrade, R. H. R. (2017). Jean Maugüé: O discreto charme do percussor da filosofia universitária brasileira. Entheoria: Cadernos de Letras e Humanas, 4(1), 13-36.         [ Links ]

Arantes, P. E. (1994). Um departamento francês de Ultramar: Estudos sobre a formação da cultura uspiana (Uma experiência nos anos 60). Paz e Terra, Editora FGV.         [ Links ]

Azevedo, F. (1958). A cultura brasileira. IBGE.         [ Links ]

Braudel, F. (1936). O conceito de país-novo. Revista Filosofia, Ciências e Letras do Grêmio Estudantil da FFCL/USP, 13-21.         [ Links ]

Camargos, M. (2003). Uma república nos moldes franceses. Revista USP, 59, 134-143.         [ Links ]

Cordeiro, D. S. (2008). A formação do discernimento: Jean Maugüé e a gênese de uma experiência filosófica no Brasil (Tese de doutorado). Universidade de São Paulo, São Paulo,         [ Links ] Brasil.

Fernandes, F. (1975). Universidade Brasileira: Reforma ou revolução. Alfa-Ômega.         [ Links ]

Figueiredo, E., & Glenadel, P. (2009). França-Brasil: Elementos para uma relação. Letras, 19(2), 47-59.         [ Links ]

Lévi-Strauss, C. (1955). Tristes trópicos. Martins Fontes & Portugália Editora.         [ Links ]

Massi, F. P. (1991). Estrangeiros no Brasil: A missão francesa na Universidade de São Paulo (Dissertação de mestrado). Universidade de Campinas,         [ Links ] Campinas, Brasil.

Maugüé, J. (1982). Les dents agacées. Buchet/Chastel.         [ Links ]

Miceli, P. (1989). História das Ciências Sociais no Brasil (Vol. 1). Vértice, Editora Revista dos Tribunais; IDESP.         [ Links ]

Miceli, S. (2010). Para uma história social da falsa vanguarda. In A. Prado, Itinerário de uma falsa vanguarda: Os dissidentes, a semana de 22 e o Integralismo, (pp. 9-13). Editora 34.         [ Links ]

Oliveira, F. V. (2012). Fantasmas da tradição: João Cruz Costa e a cultura filosófica uspiana em formação (Tese de doutorado). Universidade de São Paulo, São Paulo,         [ Links ] Brasil.

Paim, A. (1981). A UDF e a idéia de universidade. Rio de Janeiro, Brasil: Tempo Brasileiro.         [ Links ]

Petitjean, P. (1996). As missões universitárias francesas na criação da Universidade de São Paulo (1934-1940). In A. I. Hanburgue (Org.), A ciência nas relações Brasil-França (1850-1950), (pp. 259-330). Edusp, FAPESP.         [ Links ]

Santiago, S. (2009). Presença da língua e da literatura francesa no Brasil (Para uma história dos afetos culturais franco-brasileiros). Letras, 19(2), 11-25.         [ Links ]

Schwartzman, S., Bomeny, H. M. B., & Costa, V. M. R. (2000). Tempos de Capanema. Paz e Terra, Editora FGV.         [ Links ]

Simioni, A. P. (2013). Modernismo brasileiro: Entre a consagração e a contestação. Perspective, 2. http://dx.doi.org/10.4000/perspective.5539        [ Links ]

Vataghin, L. (1992). Fundação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo: Contribuição dos professores italianos. Revista USP, 34, 151-173. http://dx.doi.org/10.11606/issn.2316-901X.v0i34p151-173        [ Links ]

Vita, L. W. (1969). A filosofia contemporânea em São Paulo. IBF/Editorial Grijalbo.         [ Links ]

 

Recebido em 16 de setembro de 2018

Aceite para publicação em 13 de março de 2020

 

Endereço para Correspondência

Toda a correspondência relativa a este artigo deve ser enviada para: Ricardo Henrique Resende de Andrade

Rua Deraldo Bulhões, 407, Centro, Amargosa-Bahia CEP 45300-000

E-mail: reseandrade@gmail.com

 

 

NOTAS

1Em agosto de 1965, o já renomado filósofo francês Paul Michel Foucault ministrou na USP uma série de conferências e numa delas afirmou, com uma ponta sarcasmo, que os brilhantes professores que ele encontrou formavam um “legítimo Departamento Francês Ultramar” (Aleluia, 2014, pp. 74-75).

2Em abril de 1935, pelo decreto municipal n.° 5.513, foi criada a Universidade do Distrito Federal (UDF), composta de cinco escolas: Ciências, Educação, Economia e Direito, Filosofia, e Instituto de Artes. O principal objetivo da nova universidade era encorajar a pesquisa científica, literária e artística e “propagar as aquisições da ciência e das artes, pelo ensino regular de suas escolas e pelos cursos de extensão popular”. Na verdade, a UDF pretendia não apenas produzir profissionais, mas formar “os quadros intelectuais do país”, tal como já estava a fazer a USP (Paim, 1981).

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons