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Revista Portuguesa de Educação

versão impressa ISSN 0871-9187

Rev. Port. de Educação vol.31 no.Especial Braga out. 2018

https://doi.org/10.21814/rpe.15076 

ARTIGOS

A modernização das universidades: Memórias contra o tempo

La modernisation des universités : Mémoires contre le temps

The modernization of universities: Memoirs against time

 

António Nóvoa

Instituto de Educação, Universidade de Lisboa, Portugal

 

Endereço para Correspondência

 

RESUMO

O discurso da modernização tomou conta das universidades, também em Portugal, sobretudo a partir dos anos 2006/2007. Na primeira parte destas minhas memórias, argumento que este discurso tem como base uma concepção urgente do tempo. Reside aqui o sucesso de conceitos e práticas que se definem num tempo curto: a empregabilidade, a excelência, a empresarialização, o empreendedorismo. Na segunda parte, defendo que não podemos fechar-nos num presente apressado que nos desvia da responsabilidade presente perante o futuro. A universidade tem de se pensar no tempo longo e lento que é necessário para uma educação de base científica e humanista, para o trabalho da ciência e da formação humana, para a participação democrática e para o exercício da responsabilidade pública.

Palavras-chave: Modernização; Otium; Negotium; Tempo; Universidades.

 

RÉSUMÉ

Le discours de la modernisation a envahi les universités, y compris au Portugal, en particulier à partir des années 2006/2007. Dans la première partie de ces mémoires, je soutiens que ce discours repose sur une conception urgente du temps. C’est la raison de la réussite de concepts et de pratiques qui se définissent dans un temps court : l’employabilité, l’excellence, la gestion entrepreneuriale, l’entrepreneurship. Dans la seconde partie, je soutiens que nous ne pouvons pas nous fermer dans un présent pressé qui nous éloigne de notre responsabilité vers l’avenir. L’université doit se penser dans le temps long et lent nécessaire à une éducation scientifique et humaniste, au travail de la science et de la formation humaine, à la participation démocratique et à l’exercice de la responsabilité publique.

Mots-clé: Modernisation ; Otium ; Negotium ; Temps ; Universités.

 

ABSTRACT

The discourse of modernization has invaded universities, including in Portugal, especially after the years 2006/2007. In the first part of these memoirs, I maintain that this discourse is based on an urgent conception of time. This is the reason for the success of concepts and practices that are defined in a short time: employability, excellence, entrepreneurial management, entrepreneurship. In the second part, I argue that we cannot close ourselves in a hurried present that takes us away from our responsibility for the future. The university has to adopt for itself a conception of long and slow time, that is necessary for a liberal education, for the work of science and human formation, for democratic participation and for the exercise of public responsibility.

Keywords: Modernization; Otium; Negotium; Time; Universities

 

Abertura

Nos 30 anos da Revista Portuguesa de Educação, a mais importante publicação periódica portuguesa no campo da Educação, escrevo algumas memórias contra o tempo, contra o discurso da “modernização das universidades”. São memórias pessoais, imprecisas, incertas, que deixo vir ao ritmo das palavras. Regressam a um tempo muito importante da minha vida quando, em circunstâncias difíceis, cumpri dois mandatos como Reitor da Universidade de Lisboa (2006-2013): primeiro, tive de lidar com a agenda modernizadora do Governo de José Sócrates; depois com a agenda da crise do Governo de Pedro Passos Coelho.

Ao longo de todo o caminho, uma intenção longamente pensada e reflectida1: a fusão das duas grandes universidades de Lisboa. Tratava-se de erguer uma universidade pública, renovada, fortalecida, enraizada na cidade, aberta ao mundo: uma Universidade de Lisboa (da língua e cultura portuguesa) para o mundo (da ciência, cosmopolita, internacional). No início, poucos acreditaram. No fim, todos se mobilizaram.

A fusão assentava em princípios simples e claros, expostos na Magna Charta Universitatum, assinada pelos reitores das universidades europeias, em 1988: liberdade académica, autonomia institucional, independência dos poderes políticos, económicos e ideológicos, indissociabilidade do ensino e da investigação, responsabilidade social e ambiental, internacionalização. Sempre a ideia da universidade como lugar de encontro e de participação, onde todos inscrevem a sua palavra.

1988 é também o ano da publicação da Revista Portuguesa de Educação. É possível que tenha sido o último momento em que estes princípios, simples e claros, puderam ser escritos sem o espectro das palavras da “modernização”: eficiência, governação, accountability, prestação de contas, avaliação, garantia de qualidade, etc.

O mundo do ensino superior estava a crescer exponencialmente, em Portugal e em todo o mundo, sobretudo na Ásia. Na Europa, o número de estudantes colocava uma enorme pressão sobre os orçamentos públicos. A questão do financiamento adquiria um significado cada vez maior. Ao mesmo tempo, importantes interesses económicos, ligados sobretudo à ciência e à tecnologia, e à sua relevância num mundo que se aproximava do terceiro milénio, faziam-se presentes. O mundo universitário estava a mudar. Talvez para sempre. Não necessariamente para melhor.

Os acontecimentos têm significados e consequências que, por vezes, os transcendem. Em 1998, os ministros do ensino superior da Alemanha, da França, da Itália e do Reino Unido reúnem-se em Paris e assinam a Declaração da Sorbonne. Tinham passado apenas 10 anos da Magna Charta, mas a linguagem já é muito diferente. Agora, define-se como prioridade “a criação urgente de um quadro comum de referência, com vista a melhorar a legibilidade dos diplomas, a facilitar a mobilidade dos estudantes tal como as suas aptidões para o emprego”.

Estava aberto o caminho para a Declaração de Bolonha que, um ano mais tarde, em 1999, seria assinada pelo conjunto dos ministros europeus responsáveis pelo ensino superior e pela ciência. Iniciava-se a primeira vaga da “agenda de modernização” das universidades, com o objectivo de “promover entre os cidadãos europeus a empregabilidade e a competitividade internacional do sistema europeu do ensino superior”.

Em Portugal, esta agenda demora uma década a ser concretizada. É certo que já estava muito presente na Estratégia de Lisboa, em 2000, mas, no ensino superior, só se torna efectiva com o acervo legislativo de 2006-2007.

Em linha com a segunda vaga do debate europeu, marcada pela comunicação da Comissão Europeia Realizar a agenda da modernização das universidades: Ensino, investigação e inovação (Maio de 2006), o Governo português produz um pacote legislativo com dois grandes momentos: primeiro, em 2006, adaptando os graus e diplomas do ensino superior ao Processo de Bolonha; depois, em 2007, com a definição de um novo Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior e a criação da Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior.

O biénio 2006-2007 marca, em todo o seu fulgor, a concretização em Portugal de uma matriz “modernizadora” das universidades, nas suas diversas facetas e consequências. Procurarei esboçar as traves-mestras desta ideologia, que se afirma com palavras tão corriqueiras, consensuais, de uso corrente, que só por provocação as podemos pôr em causa. Estas memórias são uma provocação2.

 

O tempo da universidade

A minha reflexão tem como referência o tempo, não como uma sequência de horas e de dias, mas como o elemento estruturante da vida institucional da universidade. O que melhor define a agenda da modernização é uma concepção urgente do tempo. Em linha com a sociedade de consumo e, mais recentemente, com a instantaneidade da sociedade digital, a universidade é concebida num tempo rápido, de resultados imediatos.

O tempo define possibilidades e prioridades, comportamentos e modos de estar, modelos de gestão e organização. Nesse sentido, a universidade é construída pelo tempo ou, melhor dizendo, pela forma como a pensamos na sua relação com o tempo. A universidade apressada é insensata e irreflectida.

“Tudo transita num galope ruidoso, veemente e efémero. Na verdade, a velocidade com que vivemos impede-nos de viver. Uma alternativa será resgatar a nossa relação com o tempo” – escreve Tolentino de Mendonça (2017, p. 120). E prossegue: “A lentidão continua a ser um antídoto contra a rasura normalizadora. A lentidão ensaia uma fuga ao quadriculado; ousa transcender o meramente funcional e utilitário” (p. 120).

Voltemos à antiga, mas hoje ainda mais actual, divisão entre o otium e o negotium. No eixo desta divisão está o tempo. Escolho Séneca como ponto de referência, sobretudo os seus diálogos Do ócio e Sobre a brevidade da vida. Para ele, a ocupação permanente, atarefada, sobrecarregada, impede a reflexão serena sobre as grandes questões da humanidade.

É esta a lógica do negotium, conceito que não deve ser lido, apenas, como “negócio”, mas sobretudo como um não-ócio, uma actividade constante e ininterrupta. Preencher todo o tempo não é uma maneira de o controlar, mas de o perder. Não há nada mais inútil do que perder tempo numa luta contra o tempo. Séneca (Sénèque, 1966) critica os occupati, aqueles que, absorvidos pelas ocupações permanentes, se tornam incapazes de dar sentido ao tempo, e necessitam da “celebridade” para a sua sobrevivência (serem vistos, reconhecidos, medidos, comparados).

Por sua vez, o otium representa uma relação serena, retirada, com o tempo. Em vez da ilusão das ocupações, o trabalho fecundo, desocupado. Para Séneca, o ócio, o retiro, são a melhor maneira de nos fazermos “úteis”, de assumirmos um longo compromisso público. O tempo preenchido leva-nos de uma tarefa a outra, numa agitação do frenesim e do alheamento. O tempo livre abre-nos as condições para um envolvimento profundo, para uma forma de conhecimento que, sem a pressa do activismo, nos permite pensar o futuro e as suas possibilidades.

A oposição otium/negotium é o tema central do nosso século, sobretudo para as universidades.

A universidade do otium precisa de retirar os ponteiros do relógio, de um tempo 24/7 que inscreve a “vida humana na duração sem descanso, definida por um princípio de funcionamento contínuo” (Crary, 2013, p. 8), para se projectar num tempo prolongado, numa prestação de contas que, como bem diz a antiga reitora de Harvard, Drew Faust, deve ser feita em relação ao passado e ao futuro, e não primordialmente em relação ao presente3.

Pelo contrário, a universidade do negotium vive num tempo da utilidade imediata, apressado, urgente, medido, avaliado. Paul Ricoeur (1969) teve essa intuição, num texto notável escrito há 50 anos, no qual explica que, voluntária ou involuntariamente, a universidade parece atraída pelo espaço de gravitação do poder, começa a fazer parte da “estrutura de poder” (p. 9). Dito de outro modo: a universidade está a entregar-se ao “tempo curto”, marcado pela realidade que já é, e a esquecer o tempo lento da realidade por vir.

 

Primeira Parte: A Universidade do Negotium

Nas suas diferentes iluminações, o negotium é a base da agenda da modernização das universidades. A maneira como se dizem quatro palavras começadas por E, o significado que lhes damos, muda de contexto para contexto. Nem sempre são utilizadas da mesma maneira. Não quero confundir o que deve ser distinguido. Não quero cair num discurso fácil, dicotómico. Mas, apesar de todas as variantes, estas palavras definem um denominador comum da “modernização”:

- Empregabilidade;

- Excelência;

- Empresarialização;

- Empreendedorismo.

O que têm em comum estas palavras? A resposta é simples: o tempo, um tempo apressado, ocupado, direccionado. É esta a chave de leitura das memórias que partilho convosco.

A empregabilidade empurra a universidade para o tempo curto da preparação profissional, da inserção na “vida activa”. A excelência impõe uma produção académica incessante, alimentando a vã glória daqueles que, num só ano, fabricam várias dezenas de papers. A empresarialização exige resultados imediatos, mensuráveis, palpáveis. O empreendedorismo joga-se no tempo agitado do risco e da “inovação”, no instante da realização.

Nenhuma destas palavras tem culpa. Todos as dizemos. Juntas, fecham a universidade no “pequeno presente”. A universidade sem tempo é uma universidade perdida, controlada pelas performances, pelas mesmas métricas das outras instituições. À força de querer ser útil, torna-se inútil.

Empregabilidade

O direito à educação permanente foi uma das principais batalhas da democratização do ensino, sobretudo a partir da década de 1960. Uma vez assegurada a presença de todos na escola, era justo olhar para aqueles que tinham ficado para trás.

Porém, a ideologia da lifelong learning, conceito muito diferente de “educação permanente”, que se vulgarizou a partir da década de 1980, não veio consagrar um direito, mas impor uma obrigação: para se manterem úteis, empregáveis, os indivíduos têm a obrigação de se actualizarem e de adquirirem novas “competências” para o mercado de trabalho.

Esta ideologia passou a ser a trave-mestra das políticas europeias na educação e no trabalho, e também na agenda da modernização das universidades. O quarto ponto da comunicação da Comissão Europeia (2006), Realizar a agenda da modernização das universidades: Ensino, investigação e inovação, quase merecia ser aqui transcrito na íntegra, mas limito-me às passagens mais marcantes:

No intuito de superar os desfasamentos persistentes entre qualificações dos diplomados do ensino superior e necessidades do mercado de trabalho, os programas universitários deveriam ser estruturados por forma a melhorar directamente a empregabilidade dos diplomados… Em termos mais gerais, as universidades devem procurar agarrar de modo mais directo os desafios e oportunidades oferecidos pela agenda da educação ao longo da vida… O êxito no mercado de trabalho deveria ser utilizado como um indicador (entre outros) da qualidade do desempenho universitário, e reconhecido e recompensado no quadro de sistemas de regulação, de financiamento e de avaliação. (pp. 7-8; negritos no documento original)

Estas orientações infiltraram-se no espírito das universidades, na sequência do Processo de Bolonha, com a redução do primeiro ciclo de estudos a três anos e uma inevitável tendência para a especialização e empregabilidade dos diplomados. O problema não é a empregabilidade só por si. É legítimo e natural que os estudantes, as famílias e a sociedade queiram ter a justa retribuição dos seus investimentos. O problema são as suas consequências na organização e na estratégia das universidades.

Em Portugal, depois das leis de 2006-2007, definiram-se políticas que procuraram orientar a escolha dos cursos pelos estudantes com base em critérios de empregabilidade. Em muitos países foi-se ainda mais longe, como no Reino Unido ou no Japão, procurando reservar o financiamento público apenas para os cursos do acrónimo STEM (Science, Technology, Engineering, Mathematics). Recentemente, ao lançar uma nova agenda em prol do ensino superior, a Comissão Europeia (2017) insiste nesta ideia, acrescentando apenas, entre parêntesis um (A), de Artes, pois “a interacção entre as STEM e a arte e design é um motor substancial da inovação e da criatividade” (p. 6). Ajeitam-se os acrónimos para tornar certas ideologias mais atraentes e credíveis.

Ao redefinir-se pelo prisma da empregabilidade, a universidade cede ao tempo imediato da preparação profissional e do mercado de trabalho em detrimento do tempo longo da educação superior e da ciência.

Excelência

Também a excelência, só por si, não é um problema. Mas o discurso da excelência trouxe a aclamação dos rankings, que deixaram de ser um factor de distinção para se transformarem num instrumento de governo das instituições. São úteis enquanto elementos de avaliação e de comparação, mas, ao definirem um ideal uniformizado de universidade, transformam-se num indesejável factor de homogeneização. Como se houvesse um modelo ideal de universidade. Não há.

O sucesso dos rankings deve muito à emergência da cultura do Publish or Perish, alimentada por um gigantesco universo editorial que, de facto, domina as carreiras universitárias e científicas. O número de artigos, ponderado pelos índices de citação e os factores de impacto, é o mais fácil de medir numa universidade rendida à quantificação. Tudo o resto – o ensino, o trabalho universitário, a relação com a sociedade – exige um juízo qualitativo, necessariamente subjectivo, que ninguém parece disposto a fazer ou a aceitar.

O produtivismo académico tornou-se a regra. São reconhecidos e recompensados os “escritores de papers”, capazes do milagre da multiplicação dos artigos. Neste ambiente, para quê gastar tempo com o ensino ou com a dedicação aos estudantes? O desequilíbrio entre ensino e investigação está bem patente nos editais dos concursos para professores. É a principal doença das universidades do princípio do século XXI, desviando-as da sua missão nuclear, a educação superior das novas gerações.

Por razões históricas, o caso português é um dos mais extremos, pois a ideologia da modernização assentou, mesmo, numa separação entre as carreiras docente e de investigação, entre os departamentos universitários e os centros científicos. A ciência chegou muito tarde a Portugal, sobretudo por culpa das universidades. E, quando chegou, a partir da década de 1990, fez-se intencionalmente à margem ou, pelo menos, nas margens das universidades. Era o mais fácil.

Com dinheiro, inteligência e forte legitimação de instâncias internacionais, construiu-se um sistema científico moderno. É verdade que os centros científicos viviam em grande parte das universidades (salários, infra-estruturas, etc.), mas não se sentiam parte delas. Parece um detalhe insignificante, mas não é: durante muito tempo, vários centros científicos designavam-se Instituto X ou Laboratório Y da FCT/MCTES4, recusando-se a acrescentar “da Universidade de Lisboa”.

Juridicamente, inventavam-se regimes para-públicos, para-privados, indefinidos, mistos, nos quais as cargas burocráticas e financeiras ficavam nas universidades e o dinheiro “livre” nos centros científicos5. Tudo isto funcionou maravilhosamente e permitiu, em poucas décadas, recuperar um atraso de séculos na ciência. Mas tinha dois problemas que poucos quiseram ver: a sustentabilidade da ciência e o enfraquecimento da universidade.

Primeiro, havendo dinheiro vivo, era fácil abrir bolsas e pós-bolsas, fazer contratos precários, sempre com um discurso de competição. A vários directores de Institutos e Laboratórios, ouvi eu dizer: “Não, Senhor Reitor, nós só os queremos cá [os jovens investigadores] enquanto eles forem produtivos, competitivos, enquanto ganharem projectos e trouxerem dinheiro para os centros. Depois, não nos interessam”. A ideologia da modernização assenta, sempre, em princípios de precariedade no trabalho, com o verniz da excelência e do empreendedorismo.

Segundo, o enfraquecimento da universidade. É natural que os países tenham centros e carreiras de investigação autónomas, em função das suas políticas e prioridades nacionais. Mas, nas universidades, estes dois mundos são indissociáveis. O que define a investigação universitária é a proximidade do ensino. O que define o ensino universitário é a proximidade da investigação. Quando cortamos esta ligação, perdemos a universidade6.

As universidades do século XXI reconhecem a importância da ciência, da sua centralidade, dentro e fora, sabem que o trabalho de investigação necessita de condições, de liberdade e de tempo, estão abertas a maneiras diferentes de estar na universidade (os professores não são todos iguais, têm perfis distintos, mais centrados na investigação ou no ensino, perfis que evoluem ao longo do tempo e da carreira e que devem ser contemplados na distribuição de serviço e na avaliação). É tempo de reunir o que nunca devia ter sido separado.7

A excelência define-se no curto prazo. Não se mede a produção científica no tempo longo. A bibliometria é uma medida rápida, com consequências imediatas na avaliação e na progressão nas carreiras. A universidade acelerada caminha a grande velocidade, mas não sabe para onde vai.

Empresarialização

Um dos pilares centrais da modernização é a empresarialização das universidades ou, se preferirmos, a adopção das ideias da “nova gestão pública”, assim definidas por Vital Moreira: “Paradigma da gestão privada: autonomia gestionária, responsabilidade, eficiência; Recurso às figuras institucionais do sector privado: sociedades, fundações; Troca do regime de direito público (direito administrativo, contabilidade pública, função pública, tribunais administrativos, etc.) pelo direito privado (“fuga para o direito privado”)”.

O tema assume particular relevância na comunicação da Comissão Europeia de 2006, mas terá um reforço na comunicação de 2017, Sobre uma nova agenda da UE em prol do ensino superior, com a proposta de uma mudança cultural ampla, que transforme as instituições de ensino superior em “actores empresariais”8 . Já não se trata de aprofundar a cooperação entre as universidades e as empresas, o que é obviamente de grande importância, mas de pensar, de organizar e de governar as universidades como se fossem empresas. Não são.

Em Portugal, esta ideologia teve como ponto alto o RJIES – Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior, aprovado em 2007. Alberto Amaral, o autor que de forma mais continuada e lúcida tem reflectido sobre o ensino superior, explica exemplarmente este movimento em vários textos, nomeadamente na obra que coordenou com Guy Neave: Higher Education in Portugal 1974-2009 – A Nation, a Generation: “Em Portugal, como muitos autores deste volume mostram, somente em 2007, na forma do Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior, os princípios do neoliberalismo foram oficial e explicitamente adoptados como orientação principal – uma nova Ortodoxia – para a política de ensino superior” (Neave & Amaral, 2012, p. 26).

Sem surpresa, toda a acção legislativa de 2006-2007 foi sustentada, e legitimada, por uma encomenda feita pelo Governo português à OCDE, em 2005, instituição que, há anos, vinha promovendo a “universidade empresarial”9 . Curiosamente, o especialista que dirigiu o estudo da OCDE, Abrar Hasan, seria o mesmo que receberia do Governo português nova encomenda, dois anos depois, para produzir um relatório sobre Independent legal status and universities as foundations, apresentado no dia 4 de Julho de 2007, 15 dias antes da aprovação do RJIES na Assembleia da República.

A ideia de passar as universidades a fundações públicas com regime de direito privado é muito diferente, segundo Vital Moreira, de as considerar fundações públicas de direito privado. Aliás, segundo este autor, que teve um papel central na ambição fundacional, é preciso distinguir “entre fundações públicas de natureza pública e regime parcialmente público (como as universidades-fundação) e fundações públicas de natureza privada, instituídas por entidades públicas ao abrigo do Código Civil”10 .

Pessoalmente, acredito que o estatuto fundacional pode ser uma saída possível para consagrar, finalmente, um regime jurídico de autonomia universitária. Mas não sei o que são fundações sem fundos (o único fundo relevante seria o “contrato” com o Estado), com conselhos de curadores nomeados pelo Governo (na 25.ª hora, o RJIES consagrou que seria por proposta das instituições), reguladas, no essencial, do mesmo modo que as outras universidades. Verdadeiramente, ninguém sabia – e continua a não saber – o que é esta “coisa”, como se percebe pelas referências feitas no parágrafo anterior: fundações públicas com regime de direito privado? Fundações públicas de direito privado? Fundações públicas de natureza pública e regime parcialmente público?

Onze anos depois o que podemos dizer? Em primeiro lugar, que a norma do RJIES que obrigava a uma “avaliação cinco anos após a sua entrada em vigor” continua por cumprir. Em segundo lugar, que permanece a confusão em relação a este regime jurídico, sem qualquer impacto relevante, nem negativo, nem positivo, no ensino superior português (aliás, no plano internacional, não se conhecem experiências significativas e relevantes, que tenham adoptado este estatuto fundacional misto).

As universidades portuguesas continuam demasiado iguais, sem projectos e estratégias que as diferenciem, sem a marca da diversidade, acima de tudo, sem liberdade para definirem as suas próprias orientações (ensino, ciência, recrutamento de estudantes, carreira docente, etc.). É tempo de pensarmos seriamente na autonomia das universidades, para além dos permanentes constrangimentos burocráticos e administrativos e de uma visão empresarial, “modernizadora”. É tempo de não cedermos às urgências do presente e de nos concentrarmos nas urgências do futuro.

Empreendedorismo

Também a palavra empreendedorismo, por si só, tem uma carga naturalmente positiva, pois remete para a livre iniciativa, a criatividade, a inovação. Quem pode ser contra estes princípios?

O problema está, uma vez mais, no tempo. O empreendedorismo define-se num tempo curto, imediato, um tempo de execução de projectos, de “negócios”. Não se pode pedir a alguém que espere 10 ou 20 anos para retirar benefícios das suas iniciativas. Mas 10 ou 20 anos é quase nada no tempo longo da universidade.

A LERU (League of European Research Universities) tem tido um papel muito importante na afirmação das universidades e na compreensão do seu impacto nas sociedades. Mas tem sido capaz de o fazer – contrariamente à maioria dos textos da União Europeia – realçando, sempre, as características únicas do trabalho universitário. Num dos seus documentos orientadores, da autoria de Geoffrey Boulton e Colin Lucas (2008), afirma-se:

As universidades devem contribuir para o processo de inovação, mas não como os seus principais impulsionadores. A inovação é, em primeiro lugar, um processo de relação entre os negócios e os mercados, no qual as universidades desempenham um papel menor. Mas o seu papel é muito importante na criação de um ambiente fértil que permita, mais tarde, o avanço das inovações. (p. 11)

Não se entenda erradamente esta afirmação. As universidades têm um papel decisivo na descoberta, na invenção e na transposição do conhecimento para a economia e para a sociedade. Mas este papel é dificilmente previsível e controlável e, por isso, não pode ser colocado numa lógica de investimento/benefício.

É este também o argumento principal desenvolvido por Mariana Mazzucato, no seu livro The Entrepreneurial State: Debunking Public vs. Private Sector Myths (2013), que examina o papel central que o Estado, e as universidades públicas, têm desempenhado, na lenta produção de ciência que, mais tarde, está na origem das grandes inovações tecnológicas, dos computadores à Internet, das biotecnologias às tecnologias limpas, da automação à inteligência artificial.

Uma coisa é certa: ninguém conseguiu prever as grandes inovações do último século. Mas foi porque as universidades conseguiram criar ambientes para um trabalho lento, sem se renderem aos resultados imediatos, que estas inovações puderam acontecer. Hoje, todas as tecnologias têm uma base científica. A grande “utilidade” das universidades é trabalhar no que ainda não se sabe, nem se conhece, é permitir que esta base cresça, se desenvolva, frutifique. Os resultados chegarão mais tarde.

Ao mesmo tempo, o empreendedorismo trouxe uma distorção perigosa entre as diversas áreas universitárias, com a balança a pender para as engenharias/tecnologias/saúde em detrimento das artes e humanidades. É verdade que, desde há alguns anos, se vem falando de empreendedorismo social ou cultural, e até artístico e desportivo, mas se o original levanta reservas, a cópia é ainda pior.

No princípio, era o tempo. Insisto: o negotium convida-nos ao tempo breve, rápido, o otium ao tempo longo, lento. A última década foi marcada pela apropriação, em Portugal, da agenda da modernização das universidades. Talvez ainda seja cedo para avaliar, com segurança, as consequências destas reformas. Mas nunca é cedo para pensar o lugar das universidades e o seu papel no futuro presente. É o que procurarei fazer na segunda parte, defendendo que, ao estabelecermos uma outra relação com o tempo, permitimos o surgimento de outras prioridades, estratégias e modos de organização.

Perante uma certa experiência científica, alguém perguntou: Mas para que é que isso serve? É conhecida a famosa réplica de Benjamin Franklin: E para que serve a criança que acabou de nascer? Louis Pasteur (1939) recorda esta história no seu bem conhecido discurso de 1854, para pedir que se dê tempo à criança: “É também assim como a descoberta teórica que tem apenas o mérito da existência. Ela desperta a esperança, e é tudo. Mas deixem-na cultivar-se, crescer, e então vereis no que se tornará.” (p. 131). É preciso dar tempo, devolver o tempo às universidades.

 

Segunda Parte: O otium das universidades

Para serem úteis, as universidades têm de inserir o tempo breve da “modernização” no tempo longo do trabalho pedagógico e científico. Não se trata de opor as quatro palavras da primeira parte a outras quaisquer palavras. O discurso dicotómico é fácil, mas reduz o pensamento a frases feitas. O que pretendo, isso sim, é prolongar e ampliar a maneira como as universidades são vistas e, infelizmente, como elas próprias se imaginam.

Assim, argumentarei em favor de quatro movimentos:

- Da empregabilidade à liberal education;

- Da excelência à valorização da pedagogia;

- Da empresarialização ao sentido de comunidade;

- Do empreendedorismo à responsabilidade pública.

Em vários momentos, cruzarei as metáforas do tempo e do espaço, inevitavelmente associadas. O tempo condiciona a vida universitária. O espaço, também. Os atuais ambientes não são propícios ao encontro, nem à participação, não favorecem a convergeciência (a ciência que se faz a partir da convergência de disciplinas e abordagens), nem permitem novas formas pedagógicas, não facilitam o trabalho sobre o comum, nem o exercício da cidadania. Mudar a relação com o tempo implica, igualmente, dar uma atenção especial aos ambientes universitários.

Liberal education

O termo liberal education não tem tradução literal em português. Talvez “educação humanística e científica” seja a melhor possibilidade. Em vez da empregabilidade, a compreensão de que nada substitui uma educação superior de base, nas grandes áreas do saber. Ceder à especialização contribui, na opinião de Michel Serres (2009), para a formação de duas populações de imbecis: os instruídos incultos, cientistas que não querem saber nada da cultura geral, humanística; e os cultos ignorantes, letrados que ignoram totalmente a matemática, a física ou a biologia.

Em 2011, durante o centenário da refundação da Universidade de Lisboa, criámos uma Licenciatura em Estudos Gerais, graças à iniciativa das Faculdades de Letras, de Ciências e de Belas-Artes. Era a maneira certa de marcarmos uma orientação no sentido da liberal education. Sem surpresa, a proposta foi recebida com desconfiança pela Agência de Avaliação e Acreditação e, de início, reprovada: “Não é uma decisão contra a proposta, mas há problemas na sua apresentação normalizada, não é possível formatá-la para entrar na plataforma digital, tem demasiados caracteres, e demasiadas disciplinas, e demasiados professores, e demasiadas opções, etc.”. Obviamente. Era essa a intenção. A censura administrativa, fria, “objectiva”, agora através da hiper-burocracia digital, é a pior das censuras. Insistimos. Mobilizámos forças dentro e fora da universidade. A Licenciatura em Estudos Gerais é, hoje, uma realidade marcante da Universidade de Lisboa.

A educação superior é, necessariamente, um processo de formação pessoal, de leitura, de conhecimento, de desenvolvimento. Precisa de tempo, o tempo que Bolonha nos retirou, o tempo que a empregabilidade não nos pode dar. Gostaria de me centrar no conceito de ambiente, nos seus diversos sentidos. As pessoas agem de acordo com um determinado ambiente, adaptam-se às suas configurações. Os comportamentos são facilitados ou dificultados em função dos ambientes físicos, sociais e culturais11 .

Precisamos de um novo ambiente educativo. Já não se trata de dar aulas atrás de aulas, ainda que uma boa lição magistral, enquanto momento de síntese, constitua uma experiência insubstituível. Os nossos estudantes devem ser colocados num ambiente de estudo, de pesquisa, de trabalho conjunto. É esta a matriz de uma educação superior.

Desde o início do século XXI, as tradicionais referências à psicologia, em particular à psicologia do desenvolvimento e à psicopedagogia, vêm sendo substituídas por um discurso centrado na aprendizagem (learning). Esta mudança deve-se, em grande parte, à presença recente, no debate pedagógico, dos especialistas das “novas tecnologias” e das “neurociências”, de tal maneira que já se ouve mesmo falar de “neurodidáctica”.

São temas decisivos, mas devemos evitar uma espécie de “aprendixorbitância”, uma vez que a educação superior não se define apenas nas fronteiras das aprendizagens. Há um tempo mais amplo, da relação humana, da lenta apropriação do conhecimento, da leitura, da investigação, da descoberta, um tempo durante o qual nos tornamos adultos. É isto que se espera de uma pedagogia que nenhum de nós quer ver reduzida a um conjunto de técnicas ou de didácticas.

Valorização da pedagogia

Hoje, tudo dentro da universidade empurra a pedagogia para um lugar menor, irrelevante, um lugar do tédio e do aborrecimento, das coisas sem interesse face ao esplendor da ciência e da tecnologia, um lugar obsoleto, sem vida, sem ânimo. Se não mudarmos o ambiente universitário, de pouco nos servirão as melhores intenções pedagógicas.

Mas não é possível falar da valorização da pedagogia universitária sem, ao mesmo tempo, nos interrogarmos sobre um modelo escolar estruturado em torno das aulas, isto é, das lectures, da transmissão lida de um determinado conhecimento.

A lecture impôs-se num tempo em que os livros eram raros e competia ao professor resumi-los em forma de lições a dar aos estudantes. As sebentas, de tão má memória, representam o pior do “ensino livresco”. A vida universitária adaptou-se a um ritmo pautado pelos horários das aulas, com o estudo, a investigação e o trabalho sobre o conhecimento remetidos para plano secundário.

Este mundo universitário já não faz sentido. É por isso que académicos como Christine Ortiz, antiga directora do MIT, se vêm lançando em novos projectos universitários, “sem aulas e sem salas de aula”. Vale a pena acompanhar a iniciativa Station1, que pretende, dentro de três ou quatro anos, acreditar-se como “universidade”: “Station1 é uma organização sem fins lucrativos, que está a construir as bases da universidade do futuro – um modelo de ensino superior baseado na inclusão e na equidade, na aprendizagem através de projectos na fronteira do conhecimento e da investigação, e na integração da ciência e da tecnologia em relação com o seu impacto na sociedade”12 .

Quer isto dizer que os livros e as lectures se tornaram obsoletos? Não. Mil vezes não. Na educação, nada substitui a palavra do mestre. Mas temos de reconhecer a pobreza em que se transformaram os nossos anfiteatros e salas de aula. São lugares sem vida, afastados da curiosidade e da descoberta. A revitalização da pedagogia exige um investimento intelectual idêntico ao que se faz na ciência e na investigação, exige a construção de novas práticas, a procura de novas maneiras de ensinar, um esforço para recuperar o entusiasmo perdido do gesto educativo.

Por vezes, entende-se erradamente o princípio fundamental da universidade, a ligação entre o ensino e a investigação. Não se trata, obviamente, de considerar que um professor apenas deve ensinar aquilo que investiga. Trata-se, isso sim, de compreender a importância da fertilização mútua entre o ensino e a investigação.

Nesse sentido, quase poderíamos dizer, como provocação, que nunca podemos ensinar bem aquilo que já sabemos, mas apenas aquilo que ainda não sabemos. O que quer dizer esta estranha afirmação? Do mesmo modo que, na ciência, nunca podemos envolver-nos com intensidade na descoberta do que já sabemos, também no ensino precisamos de trabalhar com os estudantes naquilo que, num determinado momento, provoca a nossa curiosidade, o nosso entusiasmo. A pedagogia não é uma questão técnica, é a capacidade de entrar numa relação humana com os estudantes a partir do conhecimento e do trabalho conjunto sobre o conhecimento.

Sentido de comunidade

Recentemente, nas suas provas de agregação, Jorge Ramos do Ó (2017) apresentou-nos um documento extraordinário sobre o ensino universitário com base numa reflexão sobre o “seminário de investigação e orientação”. São 500 páginas notáveis, de uma leitura intensa, sobre o sentido da educação superior, sobretudo pós-graduada. O autor propõe-nos uma viagem, longamente reflectida, pelo pensamento de Giorgio Agamben, Roland Barthes, Michel De Certeau, Jacques Derrida, Gilles Deleuze, Martin Heidegger, Paul Ricoeur e Michel Serres, entre muitos outros, com o objectivo de compreender o contrato de uma “reciprocidade essencial” que liga aquele que ensina ao ensinado.

Fala-nos de Paul Ricoeur e da sua esperança, mudando-se da Sorbonne para Nanterre, de ali encontrar uma instituição mais pequena, que “permitisse a criação de um relacionamento entre professores e alunos também menos anónimo, recuperando aquele sentido antigo de uma comunidade de mestres e discípulos” (ver Ó, 2017, p. 26). Que não haja ilusões, a relação professor-estudante é sempre assimétrica, mas não é de sentido único: “o ensino é o acto comum do mestre e do aluno” (Ricoeur, 1968, p. 989).

O sentido de comunidade que aqui nos interessa nada tem a ver com “identidade” (de valores, de princípios ou de culturas), mas com “relação”, isto é, com a construção pedagógica de um espaço e de um tempo onde seja possível trabalhar em comum. Por isso, a tarefa primeira do professor é conseguir que o estudante participe, e se inscreva, na universidade: “a comunidade forja-se na igualdade do trabalho e da intensidade que neles todos investem” (Ó, 2017, p. 33).

O discurso gestionário, da pressa, da eficiência, do rendimento, nunca poderá compreender este sentido de participação, sem o qual não há universidade. Nada substitui o tempo da participação, da procura, da hesitação, do erro, do encontro. Sem diálogo não há pedagogia, nem educação, nem universidade (Nóvoa & Amante, 2015).

Para conseguirmos fazer algo em comum, precisamos de construir as condições do tempo, seja o tempo da elaboração das perguntas para as quais vamos procurando respostas, seja o tempo da investigação de um problema que nos leva à busca de novos conhecimentos.

Vale a pena olhar para experiências como o novo currículo da Faculdade de Medicina de Harvard, lançado em 2015, com o título Pathways13 . O curso é pensado com base em quatro princípios: modelos colaborativos de aprendizagem (“os estudantes aprendem mais uns com os outros do que connosco, os seus professores”); percursos individualizados de formação (“temos 165 diferentes vias para 165 diferentes estudantes”); uma ligação longa com a profissão (“os nossos estudantes começam as experiências clínicas muito cedo e continuam ao longo de todo o curso”); e a valorização do trabalho fora da universidade, com períodos de trabalho junto das populações.

O futuro do ensino superior passa pelo enriquecimento em comum do pensamento e do trabalho pedagógico. Vale a pena, por isso, ouvir as palavras de Drew Faust, antiga reitora de Harvard - por muitos considerada a melhor universidade do mundo -, num discurso intitulado At the Heart of What We Do – Teaching and the University, proferido no dia 20 de Outubro de 2007:

O ensino está no coração de tudo o que fazemos em Harvard. Muitas vezes, ouve-se dizer que as pessoas não vêm para Harvard ‘por causa do ensino’, mas para ‘estarem perto dos maiores génios do planeta’. Não é verdade. As pessoas querem vir para Harvard para serem ensinados por estes génios, o que é bem diferente… O nosso ensino tem como objectivo trazer os estudantes para dentro da experiência de descoberta. Os estudantes não são apenas convidados a juntarem-se a este processo, a sua presença e participação definem o nosso próprio caminho14 .

Responsabilidade pública

Hoje, ninguém desconhece o poder das universidades. São instituições que adquiriram uma grande centralidade, tanto por acolherem um número impressionante de estudantes em todo o mundo (mais de 200 milhões), como pelo papel decisivo da ciência e do conhecimento no século XXI.

O discurso dominante parte desta constatação para projectar uma modernização das universidades que contribua “para tornar a inovação e o empreendedorismo parte integrante de estratégia global das instituições”, a fim “de reforçar o desenvolvimento de competências em matéria de empreendedorismo e de inovação” e de transformar os “avanços científicos em inovações comerciáveis” (Comissão Europeia, 2017, pp. 9-10).

Ninguém pode ser contra esta intenção, sobretudo numa época na qual a ciência e a tecnologia são decisivas para o bem-estar das pessoas e para o desenvolvimento, e não estão a cumprir este papel. Mas quando este discurso invade a totalidade do pensamento, as universidades são tomadas por um tempo curto, que as asfixia num desejo de serem “imediatamente” úteis. Se cedermos ao imediatismo, negaremos o que fez das universidades instituições únicas na sua longa história, quase milenar.

Devemos, isso sim, alimentar uma ambição mais vasta, que não seja de via única, marcada apenas pela vontade de transpor o conhecimento da universidade para a sociedade, mas também por uma relação que, hoje, coloca as universidades no centro dos debates sociais, culturais, económicos e políticos.

Assinalem-se, brevemente, três elementos da responsabilidade pública das universidades:

  1. trabalhar as possibilidades de uma vida em comum, combatendo a fragmentação das sociedades actuais, amplificada pela forma como, nas redes sociais, procuramos sobretudo os nossos “semelhantes”;
  2. construir “terceiros espaços”, dotados de uma institucionalidade própria, a fim de permitir uma relação continuada com as realidades sociais, seja no plano da inovação e desenvolvimento (e.g. parques tecnológicos) ou da relação com as profissões (e.g. hospitais universitários) ou das políticas públicas (e.g. observatórios);
  • imaginar a cidade como campus universitário, a univercidade de que falei tantas vezes como Reitor.

A afirmação da responsabilidade pública da universidade leva-nos a reforçar a sua concepção como “bem público”, contrariamente a visões empreendedoras que insistem na sua definição como “bem privado” (Marginson, 2016). Nesse sentido, o debate deve conduzir-nos a pensar a universidade e a ciência não apenas para o público, mas sobretudo com o público (Hazelkorn & Gibson, 2017).

A universidade tem de ser o lugar para pensar o que não é possível pensar noutros lugares. É esta a marca da sua distinção. E tem de ser, também, o lugar para dialogar com a vida das pessoas e a sociedade (a habitação, os transportes, a saúde, o envelhecimento, o trabalho, as relações intergeracionais…), bem como com os grandes temas da tecnologia (o digital, a inteligência artificial, a robotização…) e da humanidade (o planeta, a energia, a água, a mobilidade e as migrações, as desigualdades…). A universidade tem de criar o aparentemente “supérfluo” e “inútil” a fim de antecipar e abrir novas perspectivas, pelo pensamento e pela participação, pela ciência e pela tecnologia. É esta a sua principal responsabilidade pública.

 

Desfecho

Enquanto escrevo este texto, leio um apontamento recente de Michel Serres, C’était mieux avant! (2017). Não, dantes não era melhor, diz-nos o filósofo francês, era bem pior. Também a universidade do passado não era melhor, sobretudo em Portugal. Até à República, foi o triste monopólio coimbrão, que contribuiu para nos afastar da ciência e da cultura. Depois, vieram Lisboa e Porto, mas as universidades continuaram a arrastar-se sem autonomia, marcadas pelo servilismo e corporativismo, pela inércia dos seus professores, pela ausência de ciência e de espírito crítico. Podemos, e devemos, recordar alguns professores e cientistas extraordinários, mas foram sempre a excepção numa instituição sem brilho e sem liberdade.

Hoje, as universidades portuguesas são muito melhores do que eram no passado. Mas isso não justifica o conformismo que se abateu sobre o mundo universitário, como se a agenda da “modernização” fosse inquestionável. Não é.

Não quero estabelecer qualquer dicotomia. Há muitos elementos do negotium que devem ser contemplados na acção universitária. Mas não nos podemos render a uma universidade que reduz a educação superior à empregabilidade, que nos afasta da pedagogia para nos colocar numa corrida aos papers, que não quer a nossa participação, e muito menos dos estudantes, nas decisões sobre a universidade, que reduz a responsabilidade pública ao empreendedorismo.

Precisamos de reequilibrar as nossas prioridades e, acima de tudo, levantar as bandeiras essenciais da universidade: a autonomia, a independência, a participação, a liberdade e o futuro. Não podemos aceitar uma “pequena autonomia”, medrosa, medíocre, controlada pelas administrações ou pelas avaliações. Não podemos tornar-nos dependentes de poderes de fora, económicos ou políticos. Não podemos ceder a uma “governança” contra a participação. Não podemos aceitar, em nenhuma circunstância, a diminuição da nossa liberdade de pensamento, de ciência e de palavra. Não podemos fechar-nos num presente apressado que nos desvia da responsabilidade pelo futuro. Estou a falar-vos da mesma universidade sem condição que Jacques Derrida (2003) nos propõe.

A criação de um novo ambiente universitário implica dar tempo ao tempo. Na educação superior. Na valorização da formação. Na participação. Na porosidade com a cidade. Sem tempo, as universidades ficarão iguais a todas as outras instituições sociais, económicas ou políticas. A sua existência será pautada pelas mesmas regras, pelos mesmos discursos, pelas mesmas prioridades. Nesse dia, deixará de haver universidade.

 

Referências

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Comissão Europeia. (2017). Sobre uma nova agenda da UE em prol do ensino superior (Comunicação da Comissão ao Parlamento Europeu, ao Conselho, ao Comité Económico e Social Europeu e ao Comité das Regiões). Bruxelas: COM(2017) 247 final.         [ Links ]

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Derrida, J. (2003). A universidade sem condição. Coimbra: Angelus Novus.         [ Links ]

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Sousa, A. J. (2018). Investigação nas universidades: PPP. Público, 3 de Agosto.

 

Endereço para Correspondência

Toda a correspondência relativa a este artigo deve ser enviada para: António Nóvoa, Instituto de Educação da Universidade de Lisboa, Alameda da Universidade, 1649-013 Lisboa. E-mail: novoa@reitoria.ul.pt

 

Recebido: Agosto 2018

Aceite para publicação: Agosto 2018

 

NOTAS

1 Por opção do autor, o artigo não segue as normas do acordo ortográfico de 1990, vulgo acordo ortográfico.

2 Ao longo do texto, transcrevo as notas de uma conferência proferida no 5.º Congresso Nacional de Práticas do Ensino Superior, na Universidade do Minho, no dia 12 de Julho de 2018, com o título “Quem criou este nosso mundo universitário? Ou será que fomos nós?”. O texto guarda, por isso, as marcas da oralidade.

3 Discurso de tomada de posse da Reitora Drew Faust, Unleashing our most ambitious imaginings, proferido no dia 12 de Outubro de 2007 (documento consultado no dia 28 de Julho de 2018, em www.harvard.edu/president/speech/2007/installation-address-unleashing-our-most-ambitious-imaginings).

4 Fundação da Ciência e Tecnologia / Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior.

5 No dia em que acabei de escrever este parágrafo, saiu na imprensa um artigo muito importante de Alfredo José de Sousa, Presidente do Conselho Geral da Universidade do Porto, entre 2013 e 2017, com um título sugestivo: “Investigação nas universidades: PPP”. O artigo coloca o dedo na ferida ao interrogar-se sobre “a generalização da excessiva promiscuidade da gestão pública e interesses particulares associados aos centros de investigação científica eventualmente existentes nas universidades” (Público, 3 de Agosto de 2018).

6 Ver, a este propósito, um importante artigo publicado pelo Reitor da Universidade de Lisboa, António Cruz Serra, intitulado “Uma nova carreira universitária” (Público, 9 de Junho de 2018).

7 Vital Moreira (s/d). Universidades-fundação: Natureza e regime jurídico. Documento consultado no dia 22 de Julho de 2018 em https://universcidade.pt/reg-fundacional/

8 Na versão oficial em português deste documento, a expressão inglesa “entrepreneurial actors” surge traduzida como “intervenientes empresariais”.

9 Ver, por exemplo, a actualização desta estratégia em OECD-European Commission, Guiding Framework for Entrepreneurial Universities, 2012 (documento consultado no dia 22 de Julho de 2018 em https://www.oecd.org/site/cfecpr/EC-OECD%20Entrepreneurial%20Universities%20Framework.pdf

10 Documento citado na nota 7.

11 Há um longo filme, de mais de três horas, na Universidade de Vincennes, em 1975-1976, no qual Gilles Deleuze fala para dezenas de estudantes num ambiente caótico. Logo no início, explica que as condições do espaço mudam tudo, a começar pela própria natureza do trabalho: “Num anfiteatro, tenho de fazer um curso magistral. Se não o faço, aqui, é em grande parte devido às condições desta sala” (Gilles Deleuze – Vincennes 1975-76, consultado no dia 4 de agosto de 2018, em www.youtube.com/watch?v=tSCjYJ10I8c&t=1035s).

12 Documento consultado no dia 1 de agosto de 2018, em www.station1.org/

13 The New Curriculum at Harvard Medical School, documento consultado no dia 4 de agosto de 2018, em https://www.youtube.com/watch?v=yLDFfeKmfsw

14 Documento consultado no dia 24 de Julho de 2018, em https://www.harvard.edu/president/speech/2007/heart-what-we-do-teaching-and-university

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