SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.24 número2Mapas cognitivos na avaliação da Aprendizagem Baseada em Problemas índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Revista Portuguesa de Educação

versão impressa ISSN 0871-9187

Rev. Port. de Educação vol.24 no.2 Braga  2011

 

Barton, D., & Hamilton , M. (1998). Local Literacies. Reading and Writing in one Community. London/New York: Routledge.

Barton, D., Ivanic , R., Appleby , Y., Hodge , R., & Tusting , K. (2007). Literacy, Lives and Learning . London/New York: Routledge

 

Ana Cristina Silva

Instituto de Educação, Universidade do Minho

 

A ideia de que a competitividade dos países depende, em parte, dos níveis de literacia das populações continua a ter a sua sustentação nas sociedades modernas e industrializadas. Esse entendimento tem tomado forma na imergência contínua de cursos de educação e formação para adultos com baixas qualificações, com vista ao desenvolvimento de competências de uso de textos escritos. Na fundamentação destas iniciativas formativas está a visão da leitura e da escrita enquanto técnicas e capacidades que se adquirem e, por isso, independentes dos contextos onde são produzidas e usadas.

Numa tentativa de mostrar ao domínio público que a literacia não pode, nem deve, ser reduzida a categorias linguísticas e cognitivas, os Autores dos livros que comento, mostram, a partir da análise de práticas textuais de várias pessoas, com lugar em contextos formais e informais, como a leitura e a escrita são complexas actividades humanas, assentes em relações sociais também complexas. Neste sentido, e embora os livros em análise constituam diferentes estudos, assumem ambos como enquadramento teórico uma perspectiva social de literacia, isto é, a literacia entendida enquanto conjunto de práticas sociais, histórica e culturalmente situadas, e observáveis em eventos mediados por textos.

Para os Autores, as práticas de literacia são, então, percebidas como modos culturais de utilização da linguagem escrita a que as pessoas recorrem diariamente e que moldam os eventos de literacia. Na medida em que em tais eventos, os modos como se usam os textos variam, pressupõe-se que a literacia não é a mesma em todos os contextos, podendo inclusivamente sofrer variações ao longo do tempo. Neste âmbito, e mesmo antes de apresentarem os dados dos estudos, os Autores de Local Literacies. Reading and Writing in one Community e Literacy, Lives and Learning, compreensivelmente, situam as práticas de leitura e escrita dos sujeitos nos seus contextos sociais e temporais, dando-nos detalhadas caracterizações dos ambientes visuais dos espaços e dos tempos que aqueles habitam. Vezes há em que se reportam às histórias dos lugares e dos indivíduos, com vista à apreciação crítica e compreensiva das práticas de literacia.

No livro de David Barton e de Mary Hamilton, as práticas de leitura e escrita que são estudadas são as de uma comunidade de Lancaster, Reino Unido. Pretendem, com a investigação, saber aquilo que os indivíduos fazem com a literacia no quotidiano: em que actividades sociais se envolvem, que textos são usados nessas actividades, como dão sentido às suas vidas a partir de práticas de leitura e de escrita e quais os propósitos subjacentes à participação em eventos de literacia.

Focados em compreender a relação entre a vida dos sujeitos e a aprendizagem em contextos formais, sobretudo, também o livro Literacy, Lives and Learning se socorre da descrição e da análise situada das práticas de leitura e escrita dos indivíduos. Embora provenientes de diferentes cidades de Inglaterra – Blackburn, Liverpool e Lancaster –, com backgrounds também diferentes, os sujeitos da amostra têm em comum o facto de estarem ligados, de uma maneira ou de outra, ao programa de educação e formação de adultos Skills for Life e de partilharem, aos olhos da sociedade, o rótulo de " iletrados " .

Na medida em que os estudos em análise se centram no exame descritivo e interpretativo de fenómenos sociais, neste caso, de práticas de literacia de várias comunidades, os Autores classificam as suas investigações como sendo de tipo etnográfico. Para além da preocupação, comum aos etnógrafos, em reconstruir a realidade a partir das representações dos sujeitos, os investigadores tentam desbravar novos modos de entendimento da leitura e da escrita como parte da vida social e cultural dos indivíduos, documentando práticas diárias muitas vezes não reconhecidas pelas instituições dominantes. Assim, ao objectivo de compreensão das práticas literácitas das comunidades, anexa-se o objectivo de transformação dos discursos em torno da literacia.

Para a concretização dos objectivos a que se propuseram, os Autores optaram pela construção e uso de métodos qualitativos, de modo a conseguirem captar a complexidade do fenómeno social em causa. Infiltraram-se nas comunidades em estudo por longos períodos de tempo, recolheram documentos locais, tomaram notas do que iam observando e extensivamente entrevistaram sujeitos, directa ou indirectamente ligados às investigações. Os dados que daqui resultaram foram trabalhados em colaboração com os próprios intervenientes, pois, para uma abordagem social da literacia, a análise deve, antes de mais, fazer sentido para os envolvidos. Por outro lado, a opção por uma metodologia colaborativa, acabava por potenciar o confronto dos indivíduos com as suas próprias identidades, contribuindo, dessa forma, para a reconstrução da imagem que tinham de si próprios e dos outros. Note-se que no estudo levado a cabo em Literacy, Lives and Learning, alguns professores de linguagem e de numeracia, do programa Skills for Life, serviram de colaboradores na prática de investigação. Com o conhecimento que tinham dos contextos, facilitaram a integração dos investigadores nas comunidades abrangidas pelo estudo, ajudando-os, inclusivamente, a elaborar entendimentos sobre as questões em análise. Em resposta à colaboração prestada, por assim dizer, também eles acabaram por receber algo: a oportunidade de reflectir, de forma situada, sobre as suas práticas pedagógicas na relação com as identidades dos indivíduos.

Posto isto, e uma vez concluídas as explicações teóricas que sustentam as investigações, necessárias à interpretação dos dados, os Autores partem para a apresentação da componente empírica dos estudos.

Para que a perspectiva de literacia enquanto prática social ganhe sustentabilidade aos olhos dos leitores, nos livros em análise são dados vários exemplos de modos culturais de uso da linguagem escrita por parte de inúmeros sujeitos. A esses modos culturais ligam-se determinados propósitos e significados, que variam de acordo com o contexto.

No Local Literacies. Reading and Writing in one Community, os Autores apresentam cinco estudos de caso onde retratam aspectos gerais da vida dos intervenientes na relação com as suas histórias de literacia, interesses pessoais, que estão na base de muitas das práticas do dia-a-dia – ruling passions –, e particulares preconceitos associados ao uso de textos. Tendo como pano de fundo um dos casos apresentados, o de um indivíduo chamado Harry, claramente se antevê que a literacia não pode ser entendida, somente, como uma capacidade de decifração de textos escritos, como algo técnico, resultado de skills independentes.

Harry, um ex-combatente da II Grande Guerra, nasceu no seio de uma família de pessoas humildes, com baixas qualificações e de poucas posses. Ainda que seus pais valorizassem o papel da escola, e ainda que tenha obtido aprovação no exame de final de ciclo, Harry foi obrigado a interromper seus estudos com 14 anos, por falta de meios financeiros para continuar. Desde então que se julga " iletrado " , atribuindo as dificuldades que sente na escrita ao facto de não ter alcançado níveis de escolarização mais elevados.

Contudo, e mesmo que este ex-marinheiro considere as suas competências de leitura e de escrita inferiores àqueles que frequentaram por mais anos a escola, como seus filhos, por exemplo, o que é certo é que se envolve diariamente, e por vezes inconscientemente, em eventos que implicam ler e escrever: costuma ler todas as manhãs o jornal; vai regularmente à biblioteca procurar livros, jornais e revistas sobre as grandes guerras mundiais, tirando, por vezes, notas do que vai lendo; aponta numa agenda tarefas que tem para fazer, datas de aniversários; vê televisão e ouve a rádio local; usa livros médicos para saber mais sobre as doenças de que padece; escreve cartas, tendo, inclusivamente, escrito um artigo para uma revista a dar conta das suas experiências de guerra; entre outras actividades. Constata-se, assim, que são múltiplas e variadas as práticas que compõem o dia-a-dia de Harry, assumindo, nos diferentes eventos, finalidades particulares: ora lê e escreve para dar sentido às suas experiências de guerra, com o intuito de se auto-compreender e compreender o mundo; ora lê e escreve para melhor gerir as suas actividades domésticas. Para a compreensão das práticas de literacia é, então, crucial tomar em linha de conta os contextos e os propósitos a elas associados, na medida em que, quando se lê ou se escreve algo, lê-se ou escreve-se com um propósito particular, de uma particular maneira, num tempo e espaço particulares.

É com o estudo de casos como o de Harry, que os Autores de Local Literacies. Reading and Writing in one Community mostram como a leitura e a escrita, mais do que técnicas, são modos particulares de usar a linguagem, de interagir, acreditar, valorizar, sentir e utilizar ferramentas e tecnologias, em situações específicas. Para Barton e Hamilton, são formas de estar no mundo ou formas de vida, em que a linguagem carece de sentido se delas for excluída. Portanto, é o modo de actuar, de pensar e de interagir, juntamente com a linguagem, que dita quem é o sujeito em determinado contexto. Por isto, pode dizer-se que ser letrado é ser capaz de usar a variedade de linguagem certa, de modo certo, dentro de um dado domínio de vida.

Para a análise da relação dos sujeitos com as práticas de uso textual, em situações de aprendizagem maioritariamente formais, também os Autores de Literacy Lives and Learning se assistem da exploração de vários aspectos da vida dos indivíduos. Recorrem, para isso, a um quadro de análise que examina as histórias, as identidades, as circunstâncias do presente e as perspectivas de futuro dos sujeitos. Segundo os investigadores, é partindo de todos estes factores individuais e sociais que se tem acesso a um entendimento completo da relação dos indivíduos com a aprendizagem.

Ao focarmo-nos em mais um caso particular, o de Suzanne, uma ex-vítima de violência doméstica, de imediato compreendemos quais as implicações das experiências de vida no envolvimento em actividades sociais que, certamente, implicariam algum tipo de aprendizagem. Suzanne desde cedo padeceu de maus-tratos: na infância, por parte dos pais, na fase adulta, por parte do ex-marido. Por ter muitas dificuldades em ler e em escrever textos, nunca lhe incumbiram tarefas que envolvessem, de algum modo, o uso de textos. Neste sentido, nunca esteve envolvida em actividades como o pagamento de contas domésticas ou a redacção de cartas dirigidas a amigos ou a instituições formais. Forçosamente excluída da participação em eventos sociais, Suzanne acabou por isolar-se, também, das oportunidades de aprendizagem.

No contexto de reinserção social, e amedrontada com a possibilidade de lhe retirarem a guarda da filha, julgando que às dificuldades de literacia podiam associar um fraco desempenho enquanto mãe, tratou de encontrar estratégias, informais, que a auxiliassem nas tarefas quotidianas: comprou um computador com o intuito de se familiarizar com os diferentes programas informáticos, começou a prestar atenção à escrita de determinadas palavras que apareciam na televisão, entre outras.

Na medida em que aqui se defende uma visão da literacia alicerçada àquilo que os sujeitos trazem para os eventos, histórias, circunstâncias e motivações que moldam o que são, também neste livro os Autores acabam por desenvolver princípios que podem fazer das práticas pedagógicas, sobretudo as que envolvem adultos, verdadeiras práticas sociais. Segundo os investigadores, o diálogo e a negociação das práticas entre os intervenientes no processo são importantes passos a dar nessa direcção. Neste sentido, os conteúdos, os métodos, os materiais e as próprias actividades com lugar na sala de aula deverão ser seleccionados tendo por base os objectivos, os interesses e as circunstâncias de vida dos alunos envolvidos. Na perspetiva destes Autores, ao ter-se consciência da complexidade do ser humano enquanto indivíduo, na verdadeira aceção da palavra, é-se mais capaz de estabelecer relações entre a aprendizagem em contexto escolar e aquela que ocorre em outros domínios de vida, tornando-a mais cativante, democrática e útil. Contrariamente, os professores ao tratarem a literacia enquanto competência isolada, visível, por exemplo, pelo foco dado a exercícios de construção linguística, descontextualizados de propósitos reais, acabam por empobrecer, socialmente, todo o processo de ensino-aprendizagem. Ainda que o programa de educação e formação de adultos Skills for Life dê um grande contributo para esse empobrecimento, os professores, tal como referem os Autores, terão sempre a possibilidade de aproximar os conteúdos previstos nos documentos orientadores às motivações e interesses dos estudantes.

Por tudo o que já foi dito, e ainda que as características das práticas de literacia de contextos formais como a escola sejam as mais valorizadas, temos de reconhecer que existem outras, as vernáculas, com reconhecido valor no dia-a-dia dos indivíduos. É, pois, com base nesta crença e no entendimento da literacia enquanto prática social que os livros aqui apresentados constituem uma alternativa à visão da literacia como competências e capacidades, e à sua correspondente orientação avaliativa, marcas ainda do discurso público dos nossos dias sobre a leitura e a escrita.