SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.24 número2La construcción de un modelo de Analysis de la práctica lectiva en una classe de matemáticasImbricações entre aprendizagem de Física e masculinidades numa educação em crise índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Servicios Personalizados

Revista

Articulo

Indicadores

Links relacionados

  • No hay articulos similaresSimilares en SciELO

Compartir


Revista Portuguesa de Educação

versión impresa ISSN 0871-9187

Rev. Port. de Educação vol.24 no.2 Braga  2011

 

Um professor, um currículo? Um estudo com duas professoras de Matemática do 3.º ciclo

 

Catarina Ribeiro* e Leonor Santos**

*Associação Escola 31de Janeiro, Portugal

**Universidade de Lisboa, Portugal

 

Endereço para Correspondência

 

RESUMO

O presente estudo tem como objectivo compreender de que forma duas professoras de Matemática do 3.º ciclo, da mesma escola, a leccionarem o mesmo ano de escolaridade e os mesmos conteúdos programáticos exercem o seu protagonismo curricular. Trata-se de uma investigação interpretativa, com design de estudo de caso. Os dados foram recolhidos através de entrevistas às professoras incluindo as suas reflexões após as aulas assistidas, de observação de aulas e de reuniões de grupo e de recolha documental. Os resultados evidenciam que Inês e Sara, embora pertençam à mesma escola e grupo disciplinar, relacionam-se de forma diferente com o currículo. Enquanto Inês sente que tem liberdade em adaptá-lo a si mesma e aos seus alunos, desempenhando um papel de mediadora do currículo prescrito, Sara procura cumprir estritamente o que são as orientações curriculares, sentindo pouca margem de decisão. A forma como legitimam as suas decisões curriculares é igualmente distinta.

Palavras-chave: Matemática; Professor; Currículo; Gestão curricular

 

One teacher, one curriculum? A study with two mathematics teachers of the middle school

ABSTRACT

The objective of this research is to better understand the method by which two Mathematics teachers of middle school, teatching in the same school, the same subject year and the same programmatic contents, exert their own curricular protagonism. This is an interpretative research, with case study design. The data was collected through interviews with the teachers, including classroom observation, the teacher's personal reflection after the observed classes, observation of subject group meetings and document analysis. The results of the research highlight that Inês and Sara, although belonging to the same school and subject group, relate differently with the curriculum. While Inês feels that she has freedom to adapt it to her teaching style and her students needs, acting as a mediator for the prescribed curriculum, Sara tries to follow the curricular guidance strictly, perceiving little room for personal choices. The way they justify their curricular decisions is also distinct.

Keywords: Mathematics Teacher; Curriculum; Curricular management

 

Un enseignant, un curriculum? Une étude avec deux enseignants de mathématiques du Collège

RÉSUMÉ

Cette étude vise à comprendre comment deux enseignants de mathématiques du Collège, de la même école, avec les mêmes ans scolaires et le même programme exerce son rôle curricula ire. C’est une recherche interprétative, avec des études de cas. Lés données ont été recueillies à travers d'entrevues aux enseignants, y compris leurs réflexions après la classe assistée, d'observation de classes et réunions de groupe et de la recueille de documents. Les résultats mette en évidence que Inês et Sara, bien qu'elles appartiennent à la même école et groupe sujet, ont un rapport différent face au curriculum. Tandis qu'Inês sent qu'elle a la liberté de l'adapter à elle même et à ses élèves, jouant un rôle de médiateur du curriculum formel, Sara essaie de se conformer strictement aux directives du programme. La façon de légitimer leurs décisions scolaires est également différente.

Mots-clé: Mathématiques; Enseignant; Programme; Gestion du curriculum

 

Introdução

Vivemos, actualmente, um período de desenvolvimento curricular, nomeadamente no que respeita à disciplina de Matemática no Ensino Básico. Essas mudanças curriculares são consequência de diversos acontecimentos que têm ocorrido na última década. Em 2004, foi publicado o primeiro relatório do PISA (GAVE, 2004) que revelou que os alunos portugueses estavam abaixo dos seus pares europeus no que respeita à literacia matemática. Em 2005, foram realizados os primeiros exames nacionais do 3.º ciclo. Em consequência dos maus resultados obtidos, o Ministério de Educação solicitou aos professores que realizassem uma reflexão conjunta sobre as razões que os poderiam explicar. Em 2006, o Ministério da Educação lança o Plano de Acção para a Matemática (ME, 2006), com vista à melhoria do ensino desta disciplina, do qual fizeram parte o Programa de Formação Contínua em Matemática para os 1.º e 2.º ciclos de escolaridade, o Plano da Matemática e a elaboração de um novo currículo para a disciplina, homologado em 2007 e em vigor, de forma generalizada, em 2010/2011.

Diversos autores (Canavarro, 2003; Pacheco, 1996, Gimeno, 2000; Roldão, 1999a) consideram que o professor é um elemento chave no processo curricular. Deste modo, é pertinente saber como cada professor faz a ponte entre os documentos prescritos e a sua prática, ou seja, como exerce o seu protagonismo curricular.

Este artigo baseia-se numa investigação realizada no âmbito de uma dissertação de mestrado. O estudo tem como objectivo estudar o protagonismo curricular de duas professoras de Matemática do 3.º ciclo do Ensino Básico e a forma como estas se relacionam com o currículo prescrito. Para orientar o estudo, foram formuladas as seguintes questões:

— Como interpretam os professores o currículo oficial de Matemática?

— Qual o grau de liberdade que sentem na gestão curricular que desenvolvem? Como o justificam?

— Como fazem a sua gestão curricular?

 

O currículo

A palavra currículo é de origem latina – currere – e significa caminho, jornada, trajectória, percurso. A definição de currículo não é, até ao momento, consensual na comunidade científica internacional ou portuguesa. Como tal, o desenho e a forma como se desenvolve o currículo dependem da perspectiva de cada um (Pacheco, 1996; Paiva & Guimarães, 2006). Vilhena (1999, p. 35) refere que, face às diferentes definições de currículo que têm vindo a ser publicadas,

é totalmente desaconselhável (e indesejável até, porque empobrecedor) a proposta de uma definição mais abrangente, pretensiosamente detentora da verdade, dada a carga ambígua deste conceito polissémico (...).

Em Portugal, o conceito de currículo tem vindo a ser desenvolvido entre a comunidade de investigadores e professores, embora ainda muitos professores utilizem programa ou currículo como sinónimos (Paiva & Guimarães, 2006). Roldão (1999b) considera que tal se deve ao facto dos programas terem tido um carácter prescritivo muito forte. Assim, o currículo acaba por ser encarado como um programa: um "corpo rígido e uniforme de conhecimentos" (Roldão, 1999b, p. 37). A autora considera que os programas são necessários na medida em que estes definem linhas de orientação e métodos de aprendizagem, mas "são sempre apenas instrumentos do currículo" (p. 45) que devem ser modificados não para que o programa seja cumprido, mas sim para que o currículo seja cumprido.

Em 2001, foi publicado o Decreto-Lei nº 6/2001 que reorganiza os novos currículos do Ensino Básico. Neste decreto define-se currículo nacional como

o conjunto de aprendizagens e competências a desenvolver pelos alunos ao longo do Ensino Básico, de acordo com os objectivos consagrados na Lei de Bases do Sistema Educativo para este nível de ensino (2º artº, 1).

Porfírio (1998) considera que o currículo deve ser encarado como

o conjunto de experiências de aprendizagem (basicamente organizadas pelo professor e que portanto reflectem a sua intervenção no que constitui o currículo) e as actividades que os alunos desenvolvem (e que reflectem a intervenção do aluno no que é o currículo (p. 32).

Pacheco e Paraskeva (2000) defendem que o currículo deve ser visto como um projecto, cuja construção e desenvolvimento são interactivos, implicando unidade, continuidade e interdependência entre aquilo que se decide, o currículo normativo escrito, e o processo de o colocar na prática feito pelos professores, não seguindo uma filosofia de top down (acreditando que as mudanças devem ser concebidas pelo poder administrativo), mas reconhecendo que a actuação do professor depende não só das estruturas, como também das suas vivências e experiências. Reconhecem ainda a importância do papel do aluno na construção do currículo, de modo que este o sinta como seu.

Nesta linha, Vilhena (1999) avança com uma tipologia possível de currículo: o currículo real (ou aberto) – o que "o aluno tem oportunidade de aprender" (p. 64), sendo o conhecimento filtrado pelo professor (mediador curricular) a partir do currículo normativo (escrito pela entidades governamentais), o currículo oculto – os conhecimentos/atitudes/valores que o aluno adquire e que não são ensinados de forma intencional por parte do professor, e o currículo nulo – os conhecimentos que "o aluno não tem oportunidade de aprender" (p. 78).

Considera-se nesta investigação a definição de currículo de Gimeno (2000) que se baseia num modelo interactivo subdividido em vários níveis que se relacionam e se influenciam mutuamente: o currículo prescrito, definido por equipas especializadas por proposta do Governo; o currículo apresentado, constituído pelos programas, manuais e outros documentos de apoio à prática lectiva, onde são apresentadas as principais linhas do currículo prescrito; o currículo moldado pelos professores, traduzido nas planificações que o professor ou grupo de professores elabora de forma a colocar em prática o currículo prescrito; o currículo em acção, como sendo o conjunto de aprendizagens que efectivamente o professor coloca em prática na sala de aula; o currículo realizado, que traduz o que os alunos aprendem e, por último, o currículo avaliado, que diz respeito àquilo que o professor avalia.

Durante o desenvolvimento curricular são tomadas diversas decisões em vários contextos. Pacheco (1996) considera três contextos principais de gestão: o político-administrativo, onde é elaborado o currículo prescrito, assim como o apresentado por equipas especializadas ou autores de materiais no caso do currículo moldado, o de gestão, que considera as decisões tomadas a nível regional ou escola – e o de realização, reuniões de grupo e sala de aula.

 

O currículo de Matemática

A Matemática é uma disciplina obrigatória do Ensino Básico Português. Algumas das justificações para a sua inclusão no currículo do ensino básico são: a sua utilidade para o dia-a-dia, o possibilitar desenvolver capacidades para intervir no mundo, a sua contribuição no desenvolvimento científico e tecnológico e a sua importância cultural e social (DGIDC, 2007). Em Portugal, o currículo de Matemática tem sofrido várias alterações resultantes, em parte, de influências internacionais (ex: NCTM, 1994), estudos nacionais (ex: Abrantes, 1994) e avanço tecnológico (ex: calculadoras gráficas).

À data em que foram recolhidos os dados (ano lectivo 2006/07), o currículo de Matemática era constituído pelos programas de Matemática de 1991 (ME. DGEBS., 1991a; 1991b), o Currículo Nacional do Ensino Básico (DEB, 2001) e a Lei de Bases (1986). Os dois primeiros documentos foram criados com dez anos de intervalo pelo que apresentam diferenças nas finalidades, conceitos estruturantes e orientações (Santos et al, 2007). Relativamente às finalidades, no documento de 1991 é enunciada uma lista de capacidades e conceitos específicos da Matemática, enquanto no documento de 2001 se recorre a conceitos ou ideias mais aglutinadores sobre o valor e o papel da aprendizagem da Matemática. No documento de 1991, os objectivos gerais e específicos estão organizados em torno de temas matemáticos, dividindo-se em conhecimentos, capacidades e atitudes, já o documento de 2001, organiza-se em torno da ideia de competência matemática "que envolve, de forma integrada, um conjunto de atitudes, de capacidades e de conhecimentos relativos à matemática" (DEB, 2001, p. 43). Há ainda a destacar as diferenças no modo como as tecnologias são abordadas e os níveis de raciocínio propostos em cada ciclo.

 

O professor como protagonista curricular

Dada a importância que os professores têm na implementação do currículo, Roldão (1999a) considera que o professor terá de ser "decisor e gestor do currículo" (p. 48, a bold e em itálico no original) na medida em que tem de decidir e agir perante diferentes situações, utilizando o seu conhecimento profissional para lidar com situações concretas. Desta forma, pode considerar-se que o professor é o principal protagonista (Canavarro, 2003; Pacheco, 1996) das decisões curriculares, uma vez que tem de tomar várias decisões, individualmente ou em grupo, aquando da planificação do currículo prescrito – currículo moldado pelos professores – e na aula, na sequência da resposta dos seus alunos às tarefas por ele propostas, currículo em acção – e na escolha e elaboração dos instrumentos de avaliação – currículo avaliado.

No entanto, cada professor é um indivíduo único. A interpretação que cada professor faz do currículo é diferente, devido às suas características pessoais, à concepção que tem de educação e da própria Matemática e, consequentemente, a forma como coloca em prática, podendo assim criar situações de aprendizagem distintas (Canavarro, 2003; Gimeno, 2000).

Na investigação levada a cabo por Canavarro (2003), as diferentes interpretações e valorizações que as duas professoras participantes têm de currículo são consequência das suas personalidades, das responsabilidades que sentem enquanto professoras, da sua visão da Matemática, das finalidades do ensino e de condições associadas à prática lectiva. As professoras identificam como factores influenciadores nessa interpretação: o carácter prescritivo do currículo, as limitações do calendário escolar, os recursos consultados, o apoio dos colegas, as características dos alunos e, ainda, o peso e a importância do exame nacional.

O estudo exploratório levado a cabo por Mosquito (2008) sobre as práticas de professores de Matemática do 3.º ciclo da área da Grande Lisboa revelou que os professores davam especial importância à aprendizagem de conceitos (cerca de noventa por cento), seguindo-se-lhe os hábitos de trabalho e a resolução de problemas.

Dadas as características de cada professor, a forma como cada um se relaciona com o currículo poderá ser também diferente. Tanner e Tanner (citados em Gimeno, 2000) consideram três formas possíveis: imitação-manutenção, que traduz uma perspectiva em que o professor se limita a cumprir o currículo prescrito, em última análise, sem qualquer influência sua; mediação numa perspectiva em que o professor é o mediador entre o currículo e aquilo que os alunos aprendem; e orientador gerador na medida em que o professor constrói o seu próprio currículo. A relação com o currículo pode ser justificada de modos diversos. Segundo Pacheco (1996), a normativa, quando o professor recorre ao currículo prescrito para justificar a forma como faz; o processual, quando recorre ao decidido no grupo dos seus pares, perspectivando o currículo; e a discursiva, quando justifica o que faz pelas suas convicções.

A interpretação que cada professor faz do currículo implica uma série de tomadas de decisão que visam geri-lo. Consideramos que a gestão curricular pode ser encarada como um processo de tomadas de decisão estruturadas em várias dimensões: analisar – reflectir sobre os conteúdos a leccionar e como; decidir – optar por metodologias; concretizar a decisão – desenvolver a acção decidida; avaliar – não apenas os resultados mas também o desenvolvimento; prosseguir – reorientando ou abandonando a decisão tomada (Roldão, 1999b).

Para Ponte (2005) existem dois níveis de gestão curricular: um nível macro e um nível micro. Considera a nível macro o planeamento da prática lectiva: elaboração das várias planificações (anual, trimestral, unidade, semanal) que poderá ser individual ou colaborativo (Santos, 2001) e a nível micro a realização da planificação na aula. O autor refere que, na planificação e realização da aula, o professor deverá ter em conta os objectivos do currículo, os alunos e as condições físicas da sala de aula. Destes factores dependerá o tipo de ensino que proporá e, consequentemente, a actividade que o professor e o aluno terão no decorrer da aula.

 

Metodologia

Neste estudo optou-se por uma investigação qualitativa interpretativa (Cohen et al, 2000) com design de estudo de caso (Stake, 1994; Yin, 1989) visto que as questões formuladas assentam no como e no porquê e se procurou interpretar as palavras e as acções dos participantes.

Dadas as características da investigação, optámos por a realizar numa escola onde a primeira autora trabalhara - uma escola da zona da Grande Lisboa com 3.º ciclo e ensino secundário - de modo que os professores não se sentissem muito inibidos com a sua presença nas aulas ou nas reuniões com os seus pares. Foi pedida autorização à escola para a realização do estudo. Foram definidos como critérios para selecção das professoras: pertencerem ao quadro da escola (desta forma, ambas conheceriam a escola e a comunidade educativa), leccionarem o mesmo ano de escolaridade (para se poder comparar práticas quando leccionassem as mesmas unidades), e terem diferentes tipos de participação na comunidade (de forma a perceber se existe alguma relação entre a participação na comunidade e a forma como justificam as suas decisões no que respeita ao currículo). Foram contactados três professores e após uma conversa informal onde se explicou o objectivo do estudo foram seleccionadas duas professoras que concordaram em participar no estudo e consentiram que os dados recolhidos fossem publicados, preservando o anonimato dos vários intervenientes. Foram atribuídos a estas professoras os nomes fictícios de Inês e Sara.

Visto se tratar de um estudo interpretativo, Stake (1994) considera necessários obterem-se os dados por várias vias para que estes possam ser confrontados e, consequentemente, as conclusões que deles se extraem possam ser fiáveis. Por este motivo, foram utilizados como instrumentos de recolha de dados: a entrevista semi-estruturada às professoras, que foi gravada em áudio e posteriormente transcrita integralmente (Fontana & Frey, 1994), a observação não participante de aulas e reuniões (Adler & Adler, 1994), registadas em áudio e transcritas apenas as partes que se consideraram fundamentais para a realização deste estudo, e a recolha documental (Bogdan & Biklen, 1994), onde se incluiem diversos documentos realizados pelos professores e o diário de bordo da investigadora.

Foram realizadas quatro entrevistas semi-estruturadas a Inês: numa primeira entrevista procurou-se saber o seu percurso profissional e as concepções que tem sobre o currículo, as restantes foram reflexões sobre as aulas observadas. Realizaram-se duas entrevistas semi-estruturadas a Sara: na primeira, procurou-se saber o seu percurso profissional e na segunda entrevista, mais extensa, procurou-se reflectir sobre alguns dos aspectos das aulas observadas e saber a opinião da professora sobre os documentos oficiais que integram o currículo. Embora, no caso de Sara, apenas se tenham feito duas entrevistas os dados recolhidos permitiram responder às questões do estudo.

Assistiu-se a três reuniões do grupo do 8.º ano, que tiveram como objectivo, respectivamente, a elaboração da planificação anual, o balanço da planificação e do Plano da Matemática. Quanto às aulas, a investigadora observou algumas antes da recolha dos dados para que alunos e professoras se habituassem à sua presença, tendo-se áudio-gravado três aulas de Inês e quatro aulas de Sara.

A análise de dados recorreu a domínios pré-definidos através do quadro de fundamentação teórico. Foram considerados: a pessoa e a profissional; o currículo prescrito; e a gestão curricular. A gestão curricular incluiu as categorias propostas pelo NCTM (1994): o ambiente de aprendizagem, as actividades matemáticas, o discurso de professor e do aluno e o ensino e a aprendizagem, onde se incluiu ainda a subcategoria turma.

 

Inês

A pessoa e a profissional . Inês tem cerca de cinquenta anos. É morena, com o cabelo grisalho curto, de estatura média, veste-se de forma descontraída, sem grandes preocupações com a moda. É uma pessoa simpática, educada, atenciosa, que parece preferir passar despercebida a ser o centro das atenções.

Formou-se em Engenharia Química no Instituto Técnico de Lisboa, no entanto nunca exerceu a profissão por, naquele tempo, ser considerada uma profissão difícil para uma mulher. Deste modo, enveredou pelo ensino. No primeiro ano leccionou Matemática e nos três seguintes Físico-Química, mas assim que teve hipótese voltou a leccionar Matemática. Quando teve oportunidade de fazer a profissionalização em exercício, fê-lo.

Entrou em 1986 para a escola onde ainda hoje lecciona. Desde essa altura tem desempenhado diversos cargos: delegada de departamento, coordenadora da Área Escola, Directora de Turma, responsável pelas instalações. Na altura da investigação, Inês é delegada de departamento, Directora de turma e lecciona o 8.º e 12.º anos.

Inês aparenta ser uma pessoa preocupada com a comunicação e a partilha de experiências entre colegas tendo ao longo dos anos trabalhado colaborativamente com outros colegas de Matemática ou de outras disciplinas na elaboração de exposições e na preparação e leccionação de aulas. Tem procurado, sem sucesso, como delegada de departamento, criar momentos semanais para discutir as práticas de sala de aula – as suas e as dos seus colegas: "Não nos juntamos para debater este tipo de questões: "é assim, temos de dar este conteúdo qual é a melhor maneira? Como é que costumas dar?" Refere que a resistência surge principalmente por parte dos colegas que com ela estão na escola há alguns anos. Inês considera que estes já se acomodaram e por isso acabam por não sentir necessidade de alterar as suas práticas ao contrário dos professores que ainda estão no início de carreira: "Eu continuo a achar que de facto os colegas que são mais novos (...) ainda não ganharam os tais vicios, o tal acomodar e que vêm com um espirito diferente e que trazem um novo espírito para o grupo".

Dentro da sala de aula, Inês diz procurar criar momentos em que os alunos partilhem as suas ideias visto considerar que ensinar não é só leccionar os conteúdos previstos no currículo.

O currículo de Matemática . Quando questionada sobre o currículo de Matemática, Inês refere o programa de Matemática de 91. Acredita que o programa dá-lhe liberdade para reordenar. Considera que é um roteiro que pode ser alterado desde que se percorram todas as paragens: "Eu por mim não fico presa. Eu alterava radicalmente a ordem de algumas coisas, radicalmente não, estou a exagerar um pouco!".

Para Inês, cumprir o programa é trabalhar os conteúdos de modo que os "objectivos mínimos sejam atingidos" e, sempre que acha necessário, ir um pouco mais longe mesmo que não exista nenhuma indicação expressa no programa:

É efectivamente dar os conteúdos que são indicados, não é? Procurando que os objectivos sejam atingidos, pelo menos os objectivos mínimos. (...) Agora eu acho que nós devemos fazer mais do que só dar o programa, não é? (...) [O programa refere que deve ser abordado um conteúdo] mas apenas como actividade lúdica e eu digo, isto só não chega! Devemos fazer uns calculozinhos, pronto!

Inês encara o 3.º ciclo como o é de facto, um ciclo – um espaço de três anos em que pode trabalhar com os alunos de forma a apropriarem-se dos conteúdos propostos no programa. Desta forma, por vezes, faz várias alterações ao roteiro proposto nos programas da disciplina. Por exemplo: a unidade de estatística, habitualmente, lecciona no 8.º ano, e as simetrias aborda no 9.º ano, quando lecciona o capítulo das transformações geométricas:

Por exemplo, (...) no 7.º ano dá-se um bocadinho de estatística, não é? (...) Então porque é que se dá aquilo no 7.º, e não se dá tudo no 8.º?

No que respeita à avaliação e aliado ao facto de ter continuidade pedagógica com as suas turmas durante o ciclo, gere a avaliação sumativa como um ciclo, podendo aprovar um aluno à sua disciplina num determinado ano, mesmo que este não tenha feito uma avaliação satisfatória nos vários conteúdos, dando assim mais tempo para que o aluno faça as aprendizagens necessárias para completar com sucesso o 3.º ciclo:

Vejo como um ciclo (...) Senão se calhar não daria nota, nível três, por exemplo, a alguns alunos no 7.º ano. (...) estamos sempre a tempo de limar arestas e de consertar, complementar qualquer coisa que não foi apanhado em determinado momento até ao 9º.

Considera que os conteúdos são estanques e que os alunos se apercebem disso. Esta concepção tem alterado as suas práticas ao longo dos anos, não só ao nível da planificação das aulas, como também na elaboração dos testes. Por exemplo, numa das aulas observadas, a professora propôs a resolução de uma ficha de exercícios de consolidação sobre equações do 2.º grau, a pares. Durante a realização da ficha, os alunos começaram a sentir dificuldades na resolução das equações do 1.º grau que surgiam após a aplicação da lei do anulamento do produto:

P: Tomem lá atenção! Muitos de vós têm dúvidas nas equações do 1.º grau não é suposto, mas vá lá!

A1: Para mim, é! Para mim é!

A2: Para mim também.

P: Estas, por acaso, não foi há muito tempo que demos.

A professora escreve a equação no quadro:

-3x + 1/2 = 0

Em seguida explica como se resolve.

Inês considera esta situação grave. No entanto, não sabe como colmatá-la e sente dificuldade em explicá-la:

A coisa é assim, por mais que não se queira as coisas estão compartimentadas na cabecinha deles e por isso, as coisas que ali naquele momento em que é dado até fazem sentido, não o fazem noutra altura.

Por este motivo, os instrumentos de avaliação têm sofrido modificações, nomeadamente os testes. No passado sempre procurou que todos os conteúdos viessem no teste, no entanto, neste momento, tenta não misturar conteúdos que considera que podem ser difíceis para os alunos, dizendo-lhes quais os que sairão no teste. A par dos testes escritos, recorre também ao portefólio como instrumento de avaliação.

Relativamente ao Currículo Nacional do Ensino Básico (DEB, 2001), Inês não acha que tenha modificado as suas planificações ou aulas com a entrada em vigor deste documento. Confessa sentir-se um pouco confusa com a terminologia utilizada: "Olha, é assim: parece muito palavreado que eu sei que eles acharam que ia ajudar de certeza..."

Para Inês, o currículo de Matemática resume-se ao programa de 1991. Sente liberdade para geri-lo ao longo do ciclo, não só ao nível dos conteúdos, como ao nível da avaliação sumativa que faz dos seus alunos.

Gestão curricular . Para Inês, o trabalho de preparação das aulas começa com a elaboração da planificação anual realizada na primeira reunião de grupo que coincidiu com a primeira reunião assistida. Coube a Inês presidir à reunião. Elaborou-se a planificação anual recorrendo à do ano anterior ajustando o número de aulas ao calendário do presente ano lectivo. Nas duas reuniões seguintes, também presididas por Inês, foi feito o balanço da planificação, constatando-se que todos os professores presentes seguiam planificações diferentes a ritmos diferentes.

Relativamente às decisões tomadas em grupo, Inês sente-se dividida. Por um lado, considera que deveria respeitar as decisões tomadas em grupo, nomeadamente a planificação anual: "Estou a tentar, a sério, cumprir a planificação do grupo", por outro lado, de acordo com as suas turmas, não sente constragimentos em não levar a cabo as decisões tomadas em grupo, informando mais tarde os seus colegas das suas decisões:

(...) A planificação é feita com a estatística em determinada altura. Eu acho que tenho liberdade para chegar à minha turma e dizer: " não, nesta turma eu não vou dar a estatística este ano " , percebes?

Inês refere que quando planifica as suas aulas recorre à planificação anual. No entanto, faz ainda uso do conhecimento que tem das suas turmas, do programa, de manuais, de livros teóricos ou lúdicos ou de outros materiais relevantes assim como de conhecimentos que adquiriu nos vinte anos que lecciona. Consulta ainda o programa prescrito, pontualmente. Para si, é importante criar um fio condutor entre os conteúdos que lecciona: "Que prioridades assumo na planificação? Bem, em primeiro lugar, é dar um fio condutor àquilo".

Assistiu-se às aulas da turma do 8.º X. Trata-se de uma turma com 28 alunos que Inês acompanha desde o 7.º ano. Considera que a maior parte dos alunos são motivados e atentos, que aspiram prosseguir estudos, no entanto existe outro grupo de alunos que a professora tem dificuldade em motivar:

Uma dúzia, posso dizer, que são alunos bastantes interessados (...) Há ali alunos que não me parece que vão conseguir fazer o que quer que seja. Nem sei muito bem como é que lhes poderia dar a volta!

Nas várias aulas assistidas, a actividade dos alunos e da professora são desenvolvidadas a partir de uma ficha de trabalho que propõe de acordo com as características das turmas. A escolha pela ficha de trabalho prende-se com o facto de acreditar ser importante para os alunos terem um suporte escrito com os exercícios/problemas ou ideias importantes de determinada unidade para estudarem, assim como é uma forma de controlar a sequência dos exercícios (quando ficha de exercícios) a realizar. Utiliza o manual pontualmente para marcar um trabalho para os alunos resolverem em casa, embora sinta que, mesmo neste caso, os exercícios do manual não a satisfaçam por completo: "Até nem tenho utilizado muito o manual a não ser para passar alguns exercícios (...)".

Inês procura diversificar as metodologias de trabalho na sala de aula. O trabalho a pares ou o trabalho de grupo são justificados pela mensagem que quer passar aos alunos de entreajuda, de partilhar de ideias com o colega, de ajuda ao próximo:

Porque um diz qualquer coisa para o outro que ajuda a resolver aquele problema na altura e o inverso também (...) Isto já é uma guerra tão grande, uma selva tão grande não é? (...) Que tem de haver ali um espírito que os una de alguma (...) Pelo menos o de se ajudarem até porque o professor não pode fazer tudo.

A metodologia adoptada depende dos conteúdos temáticos a abordar. Acredita que o tema de Geometria se adequa melhor a metodologias onde os alunos possam trocar impressões, enquanto o tema Números e cálculo é mais propício ao trabalho individual.

Em síntese, Inês recorre nas suas planificações a médio e curto prazo às planificações de grupo, manuais, livros e ao programa. Procura diversificar as metodologias que utiliza na sala de aula dependendo dos temas a abordar.

 

Sara

A pessoa e a profissional. Sara tem cerca de quarenta anos. É loura, com cabelo pelos ombros. Procura seguir as tendências da moda. É simpática, um pouco nervosa, prestável.

Enquanto aluna sempre gostou de Matemática, considerando ter sido uma boa aluna. Licenciou-se em Investigação Operacional na Universidade Nova. Começou por trabalhar num banco. No entanto, após ter recebido um convite para leccionar Matemática e ter experimentado, optou por se tornar professora. Fez a profissionalização na Universidade Nova e mais tarde tirou o Mestrado em Estatística e Gestão de Informação.

Lecciona há cerca de dezoito anos, doze dos quais passados nesta escola. No ano lectivo em que decorreu a investigação, Sara leccionou Matemática ao 3.º ciclo, estudo acompanhado, formação cívica e tinha ao seu cargo uma direcção de turma.

Para Sara, ensinar é sinónimo de educar. Assim, procura ensinar não só conteúdos, mas também formas de estar e atitudes perante a vida:

É assim como ainda te disse há bocadinho é educar, estar numa sala de aula, estar a aprender, brincar também com a Matemática, essencialmente e ter respeito uns pelos outros.

Sara refere que, enquanto professora, o que gosta é de dar aulas, do contacto que tem com os alunos dentro e fora da sala de aula. Não gosta de se reunir com os colegas: "De dar aulas [riso]. Nada de reuniões, por favor".

Fora da sala de aula tem desenvolvido actividades com outros colegas como visitas de estudo e passagens de modelos. Aponta como momentos marcantes, nos últimos anos, as reuniões de classificação dos exames do 9.º ano: "(...) O que me tem marcado mais agora ultimamente é a correcção vá, não se chama assim, mas a correcção dos exames do 9.º ano".

O currículo de Matemática . Quando questionada sobre o currículo de Matemática, Sara expressa incompreensão e mesmo desconfiança face às reformas curriculares, a que tem assistido: "A visão que eu tenho de há uns anos para cá... a noção de reforma é pegarem em vários capítulos, misturarem e tirarem um ao calhas".

Considera importante que o professor conheça os programas, tanto o do ciclo que lecciona, como também do ciclo anterior e do seguinte, para melhor fazer a ponte do que os alunos já deram e daquilo que vão dar. Relativamente ao programa do 3.º ciclo refere que é extenso, nomeadamente nos 7.º e 8.º anos.

Sara refere que o programa é limitador e estanque na medida em que se sente obrigada a cumpri-lo, não só nos conteúdos que aborda nas suas aulas, como também na ordem que é sugerida: "(...) como é que se vai dar o capítulo de funções sem dar o capítulo de equações, primeiro?" Reconhece que a este nível o grupo disciplinar pode ter alguma autonomia em propor uma nova ordem para os conteúdos a abordar, maior do que a do professor ao nível individual, mas não total:

Eu acho que são muito importantes as reuniões de planificação. Mas não é nas reuniões de planificação que vamos ter toda a autonomia! Nem pensar! Porque o programa do Ministério não nos dá essa autonomia!

Considera como sua obrigação cumprir o programa no sentido de seguir as planificações estipuladas, visto se tratar de uma responsabilidade que o professor tem não só para com os alunos, como para com os colegas. Desta forma, sente que a planificação elaborada em grupo é bastante importante pois visa uniformizar na escola os conteúdos que estão a ser leccionados num determinado ano de escolaridade.

Quando questionada sobre o currículo, enfatiza o papel do programa, dizendo que o documento Currículo Nacional Competências Essenciais (DEB, 2001) foi um documento que não entrou na sua prática pois diz não o perceber: "Porque acho que não é a introdução de, de um novo parâmetro que vai re-alterar a nossa faceta, a nossa noção do que entendemos que é a, que é a… a competência ou não".

Em síntese, Sara considera não ter liberdade para alterar o programa individualmente, reconhecendo que o grupo disciplinar tem alguma autonomia para o fazer.

Gestão curricular . Para Sara, a planificação feita em grupo no início do ano é de extrema importância: "(...) temos uma planificação e mal ou bem temos de a cumprir. E se alteramos um capítulo temos de justificar porquê". Assim, as planificações das suas aulas são construídas tendo por base a planificação realizada em grupo que adapta consoante o número de aulas e o ritmo das turmas, procurando desta forma cumprir a planificação acordada: "Colocar dentro da nossa cabeça que é um esquema que temos que tentar cumprir. Claro que pode ser adaptado, mas tentar cumprir".

Nas três reuniões do grupo assistidas pela primeira investigadora, Sara apenas esteve presente na primeira onde se acordou a planificação anual. Durante a reunião, Sara colocou várias questões aos colegas, nomeadamente sobre o número de aulas que achavam suficientes para leccionar cada unidade e quando proporiam os momentos de avaliação.

Para elaborar as suas planificações Sara diz recorrer a outros manuais escolares, para além do adoptado na escola, e à internet. Quanto aos instrumentos de avaliação, Sara menciona apenas os testes.

Assistiu-se às aulas do 8.º Y de Sara, uma turma com dezasseis alunos em que a maioria deles se encontravam fora da escolaridade obrigatória. Sara tinha baixas expectativas relativamente ao aproveitamento da turma, embora considerasse que os alunos eram trabalhadores e participativos durante as aulas: "Era fraca, mas era trabalhadora. Eu penso que, de alguma maneira, todos a nível geral eram empenhados em tentar aprender apesar de terem muitas dificuldades".

Nas aulas assistidas a professora utilizou sempre o manual, tanto na resolução de exercícios da unidade de equações do 2.º grau, como para a exploração de conteúdos na unidade semelhança de triângulos. Procurou criar um ambiente de sala de aula em que os alunos tinham à vontade para colocarem as suas dúvidas. Sara intervém, incentivando os alunos, e colocando-se no seu lugar: "Não precisas de estar nervoso! Este é muito difícil! Mas por ser muito difícil não quer dizer que não se faça".

Sara salienta que uma das suas preocupações é que os alunos utilizem uma linguagem rigorosa. Por exemplo, aquando da leitura de um exemplo do livro, por parte de uma aluna, a professora interrompe para corrigir:

P: L. Lê.

L: AB

P: Comprimento do segmento de recta.

L: Comprimento do segmento de recta AB a dividir pelo comprimento do segmento de recta XY (...)

P: Uhmm XZ. Então vamos lá ver qual é sempre a linguagem que devemos utilizar nos critérios.

Durante as aulas observadas, a professora opta por metodologias diferentes: resolução individual de exercícios com posterior correcção no quadro pelos alunos - no caso das aulas assitidas da unidade equações do 2.º grau; leitura de algumas páginas do manual, cópia de exemplos e exercícios resolvidos do manual, resolução a pares de exercícios - nas aulas assistidas da unidade Semelhança de Triângulos. Relativamente a esta última unidade, Sara justifica esta opção metológica pelo facto de se tratar, na sua opinião, de um conteúdo muito difícil pois, para além da linguagem específica, os exercícios resumem-se a pequenas desmonstrações: "Eu acho que este tipo de matéria é quase uma demonstração".

Em síntese, Sara recorre à planificação de grupo, a manuais e à internet para preparar as suas aulas. Nas suas aulas utiliza o manual escolar, não só para introduzir novos conceitos, como para os trabalhar.

 

Conclusões

Inês e Sara têm uma formação inicial diferente, mas ambas realizaram a sua formação profissional após iniciarem a sua prática profissional. Para as duas professoras ensinar é mais do que leccionar os conteúdos previstos no programa. É também transmitir uma forma de estar com os outros. Sentem-se ambas satisfeitas com a profissão que exercem, embora salientem aspectos distintos. Inês considera importante a colaboração com outros pares, de Matemática ou não, na partilha de experiências de sala de aula (que inclui construção de materiais e reflexão sobre a sua utilização); Sara destaca que aquilo que gosta na profissão é o contacto que tem com os alunos, dentro e fora da sala de aula, confessando que não gosta de reuniões, embora as considere necessárias.

O documento Currículo Nacional do Ensino Básico não está presente no discurso das professoras, por acreditarem que este documento apenas trouxe uma alteração de nomenclatura, com a introdução da palavra competência, não constituindo uma mais valia para a sua prática lectiva. Poder-se-á perguntar até que ponto esta mudança curricular interrompida a meio do seu percurso por razões de ordem política terá contribuído para esta situação. Assim, ambas consideram que o currículo de Matemática se resume ao programa de 1991, referindo-se-lhe como de uma listagem de conteúdos se tratasse. No entanto, nas suas aulas, assim como nos seus discursos, estão presentes outros elementos para além dos conteúdos: procuram promover um ambiente que desenvolva os objectivos relacionados com atitudes e valores assim como a comunicação escrita e oral. Inês procura ainda diversificar as metodologias de sala de aula e os instrumentos de avaliação. Relativamente ao currículo prescrito, Inês sente que tem legitimidade em moldar o currículo de acordo com as suas turmas e as concepções que tem dos temas, pelo que ao longo do ciclo, altera a ordem do roteiro de aprendizagem nele proposto de forma a criar um fio condutor entre as várias unidades que aborda. Desta forma, Inês relaciona-se como mediadora do currículo prescrito (Tanner & Tanner, citados em Gimeno, 2000). Sara é bastante crítica face ao currículo prescrito. Considera-o limitador, não só nos conteúdos que aborda, como na sequência que é proposta. Desta forma, a sua planificação ou é igual ao roteiro de aprendizagem proposto, trabalhando com os seus alunos apenas os conteúdos nele previstos ou é igual à planificação acordada em grupo. Sara sente-se obrigada a cumprir a planificação acordada em grupo embora, ocasionalmente, dadas as características dos alunos, possa alterar o número de aulas em que aborda um ou outro conteúdo. Por outras palavras, o relacionamento de Sara com o currículo prescrito e moldado é do tipo imitação-manutenção (Tanner & Tanner, citados em Gimeno, 2000).

Inês e Sara leccionam na mesma escola, um mesmo ano lectivo e como tal pertencem ao mesmo subgrupo disciplinar. Ambas as professoras reconhecem a importância das reuniões de grupo, mas por motivos diferentes. Inês considera o trabalho colaborativo relevante visto que a partilha de experiências permite o seu desenvolvimento profissional. Já Sara considera importantes as reuniões de grupo pois legitimam decisões tomadas na elaboração do currículo moldado e, consequentemente, no currículo em acção e avaliado. A participação de ambas nas reuniões é também distinta. Inês ouve e dá opiniões, Sara questiona de forma a legitimar algumas das decisões que terá de tomar. Talvez por esse motivo, as professoras sintam uma legitimidade diferente em cumprir as decisões tomadas colectivamente. Enquanto Inês se divide entre respeitar e adaptar aos seus alunos, Sara procura seguir à risca o que foi acordado pelo grupo, podendo introduzir alguma alteração muito pontualmente. Desta forma, a legitimação curricular de Inês é do tipo discursiva, enquanto a de Sara é tendencialmente processual (Pacheco, 1996).

As professoras desenvolvem o currículo em acção (Gimeno, 2000) também de forma diferente. Inês recorre a diversos mediadores curriculares na preparação das suas aulas: manuais, livros teóricos e/ou lúdicos e, pontualmente, o programa. Nas aulas, usa fichas de trabalho elaboradas por si e também exercícios do manual para trabalho de casa. Como instrumentos de avaliação, recorre a testes e ao portefólio. Utiliza diversas metodologias de ensino optando por um ensino directo ou de aprendizagem exploratório tendo por base as concepções que tem sobre os temas a abordar, o seu conhecimento profissional e as suas turmas. Desta forma, Inês é orientadora-geradora (Tanner & Tanner, citados em Gimeno, 2000) do currículo em acção e do avaliado. Já Sara é mediadora entre o currículo apresentado (manuais escolares e internet) e as suas turmas, na medida em que selecciona exercícios do manual que propõe aos alunos, optando por um ensino directo (Ponte, 2005). Esta prática poderá estar relacionada com a experiência profissional que a professora reconhece ter, assim como a perspectiva que tem em relação às decisões tomadas no grupo disciplinar.

As professoras apresentam diferenças de participação na escola e na comunidade: Inês é uma professora activa, sempre disponivel para participar com outros colegas noutras experiências de aprendizagem, não necessariamente na área da Matemática, sentindo necessidade de partilhar experiências com os seus pares; já Sara, embora participe nas actividades da escola, diz não gostar de reuniões e das formações que tem participado destaca as de classificação dos exames do 9º ano. Esta diferença de participação na escola e de formação contínua pode explicar a forma como as professoras se relacionam com as várias facetas do currículo: Inês sente maior confiança nas escolhas que faz, enquanto Sara tem necessidade de se sentir apoiada pelo grupo de Matemática nas decisões que toma sobre o currículo prescrito. Também na sala de aula (currículo em acção), esta diferença está presente. Inês constrói ou recria fichas de trabalho que propõe aos seus alunos procurando diversificar as metodologias de acordo com a unidade e os objectivos que pretende promover; Sara recorre ao manual para leccionar, diversificando as metodologias propostas.

O título que motivou o estudo inicial foi uma interrogação: um professor, um currículo? Neste estudo procurou-se controlar alguns factores, como por exemplo, a escola e o grupo disciplinar (que com dinâmicas diferentes poderiam explicar diferenças entre os professores), o ano de escolaridade assim como as unidades temáticas em que se observou a prática dos professores para que mais fácilmente se pudessem encontrar pontos comuns e/ou diferenças. Este estudo, tal como outros, quer nacionais (ex: Canavarro, 2003), quer internacionais (ex: Gimeno, 2000) evidenciam que a forma como o professor molda o currículo prescrito que lhe é proposto se relaciona com as suas concepções, o seu conhecimento profissional, a sua personalidade, a turma com que trabalha e a forma como participa na comunidade escolar. Em suma, o presente estudo contribui para uma resposta positiva à questão inicialmente formulada. Por outras palavras, cada professor tem o seu próprio currículo.

 

REFERÊNCIAS

Abrantes, P. (1994). O Trabalho de projecto e a relação dos alunos com a Matemática. A experiência do Projecto Mat 789 . (Colecção Teses) Lisboa: APM.         [ Links ]

Adler, P. & Adler, P. (1994). Observational Techniques. In Denzin & Y. Lincoln (Eds.), Handbook of qualitative research (pp. 377-390). London: Sage.         [ Links ]

Bogdan, R. & Biklen, S. (1994). Investigação qualitativa em educação: uma introdução à teoria e aos métodos. Porto: Porto Editora.         [ Links ]

Canavarro, A. P. (2003). Práticas de ensino da Matemática: duas professoras, dois currículos. (Tese de doutoramento, Universidade de Lisboa). Lisboa: Associação de Professores de Matemática, Colecção Teses.         [ Links ]

Cohen, L., Manion, L. & Morrison, K. (2000). Research methods in education. New York: Routledge/Falmer.         [ Links ]

Direccção do Ensino Básico (2001). Currículo Nacional do Ensino Básico. Competências essenciais. Lisboa: Ministério da Educação.         [ Links ]

Direccção Geral de Inovação e Desenvolvimento Curricular (2007). Programa de Matemática para o Ensino Básico. [Em linha] [Acedido em 29 de Outubro, 2008, disponível em http://sitio.dgidc.min-edu.pt/matematica/Documents/PlanoAccaoMatematica.pdf].         [ Links ]

Fontana, A. & Frey, J. (1994). Interviewing: The art of science. In Denzin & Y. Lincoln (Eds.), Handbook of qualitative research. (pp. 361-374). London: Sage.         [ Links ]

Gabinete de Avaliação Educacional (2004). Resultados do Estudo Internacional PISA 2003. Lisboa: Ministério da Educação. [Em linha] [Acedido em 14 de Setembro, 2008, disponível em http://www.gave.min-edu.pt/np3content/?newsId=33&fileName=relatorio_nacional_pisa2003.pdf].         [ Links ]

Gimeno, S. J. (2000). O currículo: uma reflexão sobre a prática. Porto Alegre: ArtMEd.         [ Links ]

Ministério da Educação, DGEBS. Ministério da Educação. Direcção Geral dos Ensinos Básico e Secundário (1991a). Organização Curricular e Programas. Ensino Básico 3.º Ciclo. Lisboa: Direcção Geral do Ensino Básico e Secundário, Ministério da Educação, vol I.         [ Links ]

Ministério da Educação, DGEBS. Ministério da Educação. Direcção Geral dos Ensinos Básico e Secundário (1991b). Organização Curricular e Programas. Ensino Básico 3.º Ciclo. Lisboa: Direcção Geral do Ensino Básico e Secundário, Ministério da Educação, vol II.         [ Links ]

Ministério da Educação (2006). Plano de acção para promover o sucesso da Matemática. [Em linha] [Acedido em 19 de Setembro 2008, disponível em http://www.min-edu.pt/np3/66.html].         [ Links ]

Mosquito, E. (2008). Práticas lectivas dos professores de Matemática no 3.º ciclo. (Tese de Mestrado, Universidade de Lisboa).         [ Links ]

NCTM. National Council of Teatchers of Mathematics (1994). Normas profissionais para o ensino da Matemática. Lisboa: APM. (obra original em inglês, publicada em 1991)         [ Links ]

Pacheco, J. A. (1996). Currículo: teoria e práxis. Porto: Porto Editora.         [ Links ]

Pacheco, J. A. & Paraskeva, J. (2000). A tomada de decisão na contextualização curricular. Revista de Educação, IX(1), 111- 115.         [ Links ]

Paiva, A. & Guimarães, F. (2006). Preconceitos e conceitos, tempos e contratempos. In João Pedro Ponte, Lurdes Serrazina, António Guerreiro, Carlos Ribeiro & Luciano Veia (Eds) Actas do XV EIEM. [Suporte cd-rom]         [ Links ]

Ponte, J. (2005). Gestão curricular em Matemática. In Grupo de trabalho de investigação, O professor e o desenvolvimento curricular (pp. 11-34). Lisboa: APM.         [ Links ]

Porfírio, J. (1998). Os currículos de Matemática: como têm evoluído. Revista Educação e Matemática, 50, 32-38.         [ Links ]

Roldão, M. C. (1999a). Gestão curricular: fundamentos e práticas. Lisboa: Ministério da Educação, Departamento da Educação Básica.         [ Links ]

Roldão, M. C. (1999b). Os professores e a gestão do currículo: perspectivas e práticas em análise. Porto: Porto Editora.         [ Links ]

Santos, L. (2001). A prática lectiva como actividade de resolução de problemas: um estudo com três professoras do ensino secundário (Tese de doutoramento, Universidade de Lisboa). Lisboa: Associação de Professores de Matemática, Colecção Teses.         [ Links ]

Santos, L.; Canavarro, A. & Machado, S. (2007). Orientações curriculares actuais para a Matemática em Portugal. In João Pedro Ponte, Lurdes Serrazina, António Guerreiro, Carlos Ribeiro & Luciano Veia (Eds.) Actas do XV EIEM. Monte-Gordo, 7 a 9 de Maio. [Suporte cd-rom]         [ Links ]

Stake, R. (1994). Case Studies. In N. Denzin & Y. Lincoln (Ed.), Handbook of qualitative research (pp. 236-246). London: Sage.         [ Links ]

Vilhena, T. (1999). Avaliar o extracurricular. A referenciação como nova prática de avaliação. Porto: Edições ASA.         [ Links ]

Yin, R. (1989). Case study research: Design and methods. Newbury Park: CA Sage.         [ Links ]

 

Legislação consultada

Lei n.º 46/86 de 14 de Outubro. Diário da República, nº 237, I Série de 14 de Outubro de 1986, com alterações introduzidas pela Lei n.º 49/05 de 30 de Agosto de 2005. Diário da República, nº 166, I Série A de 30 de Agosto de 2005.

Decreto de Lei nº 6/2001, de 18 de Janeiro de 2001. Diário da República, I Série, nº 273 de 18 de Janeiro de 2001

 

Endereço para Correspondência

Toda a correspondência relativa a este artigo deve ser enviada para: Catarina Ribeiro, Rua Alfredo Manuel Fernandes, 68 2.º Esq, 2775-259 Parede, Portugal

 

Recebido em Fevereiro, 2010

Aceite para publicação em Maio, 2011