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Revista Portuguesa de Educação

versión impresa ISSN 0871-9187

Rev. Port. de Educação v.20 n.2 Braga  2007

 

Livros Didácticos: entre a escolha e a avaliação

Nota de Leitura

BATISTA, Antônio A. G. & VAL, Maria da Graça C. (Orgs.) (2004). Livros de Alfabetização e de Português: os professores e as suas escolhas. Belo Horizonte: Autêntica.

 

A colectânea organizada por Antônio Augusto Gomes Batista e Maria da Graça Costa Val insere-se no PNLD (Plano Nacional do Livro Didáctico), o programa da iniciativa do Ministério da Educação brasileiro que, desde 1996, se ocupa da avaliação, aquisição e distribuição gratuita de livros didácticos às escolas públicas do ensino fundamental (a que basicamente corresponde o Ensino Básico português). O PNLD enquadra-se num cenário de desenvolvimento de políticas públicas que voltam as suas preocupações para o acesso e disponibilização aos professores de recursos didácticos mais qualificados nas salas de aula, tal como o referem Val, Bregunci, Silva, Castanheira & Martins (p. 75), enquadramento que também pôde contar com a elaboração de instrumentos de controlo curricular, designadamente a criação dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs).

A obra dá voz aos professores e às suas escolhas de livros didácticos de Alfabetização e de Português da 1ª à 4ª séries no PNLD/2001, valorizando, assim, uma dimensão e um agente do processo de avaliação dos livros didácticos: a figura do professor, nomeadamente o papel que por ele é desempenhado no momento da escolha do manual escolar e no da sua prática pedagógica.

Os seis capítulos desta colectânea resultam de diversas investigações que se "voltam para distintas facetas deste fenómeno complexo que é o livro didático" (p. 9); em todos eles, os seus autores tomam como referência que o livro didáctico é um elemento central e estruturante do discurso pedagógico, dos seus conteúdos e processos de transmissão, pretendendo e podendo, através deles, aceder à concepção, ao desenvolvimento e à avaliação das práticas pedagógicas.

A transversalidade nota-se, ainda, no que respeita à atenção oferecida aos professores, procurando caracterizar a posição destes profissionais a partir das suas perspectivas, pontos de vista e critérios de apreciação e avaliação por eles efectivamente utilizados na adopção e uso dos livros didácticos (p.30). A importância da obra no Brasil passa por até ela serem praticamente inexistentes os estudos com enfoque sobre o processo de escolha dos docentes. É nesta medida que Batista, em "O processo de escolha de livros: o que dizem os professores?", para captar essas perspectivas, se socorre de categorias prévias construídas a partir do próprio programa de avaliação, na ausência, pois, de outras investigações que pudessem auxiliar essa construção.

Os dados devolvidos pelo questionário que foi aplicado, mesmo com as limitações inerentes a este tipo de instrumento, fazem-nos crer que não há univocidade entre os critérios utilizados pela avaliação dos livros nas duas instâncias que se equacionam: avaliação ministerial e escolhas dos professores, considerando que esta última é também ela uma modalidade avaliativa, na medida em que é capaz de corroborar ou não a avaliação da primeira; o mesmo será dizer que os professores não se revêem na avaliação que o ministério faz dos livros.

Com efeito, o não reconhecimento, nesse sistema, dos seus critérios de qualidade e, assim, revelando "discordância com o sistema de classificação" (p.42), leva a que muitos professores escolham as obras que não são Recomendadas com Distinção, justificando essa escolha com critérios da ordem da estruturação do trabalho pedagógico. Ainda assim, a maioria dos professores que participaram desta pesquisa admite a preferência por livros classificados com a menção mais elevada. Esta aparente contradição, notada entre os discursos dos professores acerca das suas escolhas e os dados do PNLD, impõe uma interrogação sobre as razões que a motivam.

O discurso dos professores, pela argumentação desvelada na pesquisa, desloca a discrepância entre critérios nos diferentes níveis de avaliação do Programa para a figura do aluno, seus interesses e realidades. Na verdade, esse afastamento radicará nos próprios docentes que não partilham as mesmas convicções e concepções sobre o ensino e a aprendizagem da língua que a instância ministerial impõe como mais válida e cujo paradigma teórico, por pertencer ao domínio do 'construtivismo', se afasta das práticas mais tradicionais e consagradas de ensino da língua.

Como bem esclarece Sara Monteiro (p. 201), à matriz construtivista se deveu, na década de 90, o aparecimento de livros didácticos que apresentam uma nova abordagem de aquisição da língua escrita, centrada nos processos sociais, afectivos e cognitivos que rodeiam a aprendizagem, um rumo de que o campo académico já havia significativamente dado conta, em décadas anteriores, quando as investigações com essa orientação começaram a generalizar-se.

O efeito resultante desses novos paradigmas teóricos educacionais nos manuais escolares foi o da construção de uma nova identidade para esses livros, acusando e comprovando, por um lado, a influência do conhecimento que se produz na academia sobre a produção didáctica e o mundo editorial do manual e, por outro lado, a circunstancialidade destes recursos.

Se tivermos em conta a voz dos professores, a construção dessa nova identidade para os livros didácticos a que se assistiu com o PNLD não parece ter sido por eles acompanhada, pois embora retoricamente reconheçam o valor dessa nova identidade, não se revelam, contudo, disponíveis para atender às novas concepções. Refugiam-se, assim e por desconhecimento, num discurso que dá primazia a um "saber-fazer" escolar ancorado no conhecimento anterior que possuem das colecções didácticas, das editoras, dos autores, das suas práticas pedagógicas e que lhes dá maior segurança enquanto profissionais detentores de um conjunto de competências específicas.

A desconsideração da certificação dos livros inscritos no Programa verifica-se, por um outro lado, na utilização e no aproveitamento — ou antes, na ausência deles — que os professores dizem fazer do Guia de Livros Didácticos, manifestando preferência pela análise directa das obras e não atendendo às finalidades com que esse Guia surge e circula pelas escolas e professores.

Tal desacreditação leva-nos a considerar — sobretudo pelo exemplo que este plano pode constituir para outros contextos, como o português — até que ponto terão conhecimento os professores do instrumento (uma grelha de avaliação) que serve a categorização em menções levada a cabo pelo ministério, da sua sustentação nas teorias interaccionistas da aprendizagem e como é para estes profissionais feita a comunicação de todo o processo que envolve o programa — em outras palavras, de que modo chega aos professores o trabalho dos especialistas que participam do PNLD e como estão os seus pressupostos expressos nos critérios adoptados para avaliação das obras?

O estudo exploratório de Val et al. vem confirmar os dados do estudo de Batista no respeitante à tendência, em três níveis de análise do programa — escolha, recepção e uso –, para a escolha de livros didácticos com as menções mais baixas e a afirmação de um juízo valorativo para os mais recomendados que não passa, porém, da atribuição de um mérito relativo. A valorização dos livros recomendados com distinção perde imediatamente todo o seu sentido e potencial quando os professores não lhes reconhecem capacidade de uso pedagógico no quotidiano por, segundo os mesmos, carecerem de adequação aos alunos, às suas estruturas cognitivas, afectivas e sociais e às suas 'enciclopédias'.

Perante estas evidências, às autoras abriam-se dois caminhos de comentários: justificar as atitudes dos professores para com os livros melhores como fruto de desactualização de conhecimentos, formação insuficiente e inadequada, teimosia, resistência em alterar práticas de ensino perpetuadas e pacifistas, ou um olhar alternativo sobre estes discursos. É este segundo caminho o escolhido, pelo que estas atitudes são vistas como demandas de uma classe profissional pelo reconhecimento de um "saberfazer" fundamentado nas condições laborais e num saber de experiência feito; reflecte-se, ainda, sobre outros aspectos positivos que se prendem com um reconhecimento expresso da necessidade de complemento das experiências pedagógicas dos manuais com alternativas produzidas e seleccionadas pelos professores e sempre condicionadas pelo contexto em que trabalham.

A nosso ver, esta assunção do manual como um instrumento auxiliar da prática pedagógica não deve, pois, tornar menos válidos os critérios de apreciação adoptados pelo PNLD, nem tão pouco colidir com os seus objectivos de melhoria da qualidade dos recursos didáctico-pedagógicos disponíveis para os professores. Poderemos pensar, então, que negar a exclusividade do livro didáctico fortalece a tese de que a sua condição de material impresso não encerra lacunas, mas antes limitações facilmente compreendidas no que o trabalho pedagógico acarreta de subjectivo e de imprevisível. Ainda assim, não nos parece que a natureza altamente situada e redutora do manual possa mitigar a utilidade da avaliação em torno da qualidade de que o Programa tem procurado dar conta ou anular a sua função estruturante do discurso e do trabalho pedagógico, de resto como se comprova pelas afirmações dos professores que instituem entre os critérios de avaliação mais determinantes "a diversidade de exercícios e de actividades" (p. 87).

Será também nesta linha de pensamento que Delia Lerner, no seu capítulo "Livro didático e a transformação do ensino da língua", comentando os resultados de uma pesquisa anterior de Batista que tomou como objecto "a escolha de livros didáticos da 1ª à 4ª série" (p. 116), problematiza numa visão pessimista a contribuição deste género (o manual) para a transformação do ensino da língua.

Partindo da análise de duas obras inscritas no PNLD/2001 de matrizes teóricas distintas (o interacccionismo e uma prática mais tradicional) e que polarizam escolhas (uma recebeu a mais alta recomendação, mas foi a menos escolhida, enquanto que a outra, com a menção mais baixa, foi a mais seleccionada), o texto de Lerner discute como a "concepção das práticas de linguagem e de sua aprendizagem propostas pelos PCNs" (p.116) se encontra materializada nos livros didácticos e como essa operacionalização pode contribuir ou não para a transformação do ensino da língua.

Neste sentido, a autora dá conta de como, por detrás da elaboração do Guia do Livro Didáctico, estaria a preocupação de tornar efectivos nas salas de aula os princípios e as concepções de ensino da língua advogados pelos PCNs que, segundo Rojo (2002: 32), visam um "leitor/produtor de textos [...] eficaz e competente da linguagem escrita, imerso em práticas sociais e em atividades de linguagem letradas, que, em diferentes situações comunicativas, utiliza-se dos géneros do discurso para construir ou reconstruir os sentidos de textos que lê ou produz", remando contra a "visão corrente do leitor/escrevente como aquele que domina o código escrito para decifrar ou cifrar palavras, frases e textos e, mesmo, daquele leitor/escrevente que, dentre os seus conhecimentos de mundo, abriga, na memória de longo prazo, as estruturas gráficas, lexicais, frasais, textuais, esquemáticas necessárias para compreender e produzir, estrategicamente, textos com variadas metas comunicativas".

Estas duas visões de livros didácticos podem ser potenciais auxiliadores na categorização dos dois livros didácticos analisados, ajudando na compreensão das funções que num e noutro se atribuem aos sujeitos da interacção pedagógica, professor e alunos, assim como das funções que os manuais, distintos entre si, acabam por cumprir. Apesar, então, de os livros serem diferentes nas funções que atribuem aos sujeitos da interacção pedagógica — um mais próximo dos PCNs, outro mais afastado — as semelhanças entre os dois são ainda assim de notar, nomeadamente quanto à concepção de livro subjacente que é a de um tradicional "livro de leitura" (p. 127) em que "as situações de leitura e de escrita carecem de um propósito explícito, reconhecido" (p.128).

É precisamente sobre esta preocupação com novos modos de ler que o capítulo "Escolha de livros de alfabetização e perspectivas pedagógicas do ensino da leitura" se constrói. Nos resultados dos estudos de caso que Isabel Frade apresenta, polariza-se a intervenção sobre o domínio da leitura, a partir do reconhecimento nos discursos dos professores de que "há livros de alfabetização para ler e livros de alfabetização para ensinar a ler" (p. 182), sendo que aqueles parecem preferir estes últimos. No entanto, essa divisão é atenuada pela desconstrução de uma certa mistificação criada em torno dos novos livros de alfabetização com orientação 'construtivista', acabando, assim, por se problematizar o ensino da língua escrita.

No conjunto percebe-se como o que se trata neste livro são as tensões entre a tradição e a mudança que uma análise segundo os processos de recontextualização do discurso pedagógico pode dilucidar. O capítulo de Ceris Silva, "Os novos livros de alfabetização: o que muda e o que permanece da tradição escolar", situa-se neste ponto de vista e visa perceber as mudanças significativas operadas do PNLD/1998 para o PNLD/2001 ao nível das escolhas dos professores1.

O movimento de refluxo que se conclui parece dever-se, segundo a autora, a uma maior acreditação inicial do Programa junto dos professores e a "um processo de migração das preferências da primeira categoria para a segunda, decorrente, ao que tudo indica, de uma avaliação negativa dos RD [Recomendado com Distinção] por parte dos docentes. Assim, é preciso supor que a categoria RD teria passado a exercer efeito negativo na escolha" (p. 19). Ao serem confrontados com as suas escolhas e perante dificuldades com os livros mais recomendados, a selecção de 2001 concretiza esse juízo quando os professores escolhem obras capazes de melhor responder aos seus contextos.

São várias as interrogações que estas escolhas dos professores suscitam, entre outras aquelas que resultam do facto de os professores não escolherem as obras vinculadas à perspectiva construtivista. Com efeito, Batista (2001) constata que a maioria dos livros apresentados ao PNLD são "obras fundamentadas na psicogénese da língua escrita e na concepção de linguagem como enunciação" (p. 26). São também estas perguntas que governam o texto "Exercícios para compreender o sistema de escrita nos livros de alfabetização", de Sara Monteiro.

Mas não só de dimensão pedagógica e didáctica se pode reflectir a propósito das escolhas dos professores; nelas está também imbuída a condição de mercadoria e de bem comercial que o manual não deixa de ser. Ora, entende-se assim que a produção didáctica está preferencialmente inserida numa rede económica e em políticas de adopção estaduais que, ao instituir critérios de inscrição e de avaliação das obras, acabam por regular essa mesma produção. Consequentemente, os grupos que se ocupam da produção vêem-se na obrigatoriedade, porque sobrevivem graças ao mercado escolar e dele retiram a sua maior fonte de rendimentos, de atender às reivindicações do público que servem — em primeira instância, aos professores que são os agentes da escolha. É, pois, no posicionamento desta estreita e embricada rede de relações entre o mercado editorial, a avaliação do PNLD e o mercado escolar que se pode definir e compreender o estatuto do livro didáctico no Brasil.

Genericamente, as conclusões que têm sido reiteradas a propósito da implementação e do grau de consecução do Programa relacionam-se com a afirmação de um princípio que tem que ver com a necessidade de os livros didácticos partirem de pressupostos da comunidade académica e das orientações curriculares. Porém, o que os professores buscam nos livros não parece ser o mesmo que o PNLD tem tentado relevar e valorizar. Os especialistas que se debruçam sobre estas matérias têm problematizado assim as aprendizagens que a escola pública brasileira tem disponibilizado e de que forma o PNLD pode contribuir para essa meta mais ambiciosa que é a melhoria da qualidade da educação.

É assim que os estudos apresentados nesta colectânea são eles próprios abertos a futuras investigações como forma de continuar a avaliar a implementação do Programa nas diversas esferas da sua acção. Compreende-se, também assim, que esses estudos dêem evidências quanto à necessidade de alterações a proceder a vários níveis: de implementação do Programa e de formação dos professores, a avaliar pelo feedback a que esta colectânea tão bem dá voz.

Entre nós, em tempos imprecisos e em que poderá estar próximo o aparecimento de um instrumento de avaliação oficial para os livros de Português, a leitura desta obra deixa antever zonas críticas de tensão e intervenção relevantes para a prática de um sistema de certificação na linha do PNLD: expectativas de tal sistema, objectivos e etapas de implementação, interacções entre agentes nesse processo avaliativo, nomeadamente a voz dos profissionais do ensino e o modo como podem participar ampla e democraticamente, para que as lições aprendidas neste lugar, como neste caso concreto, sejam produtivas.

 

Referências

BATISTA, Antônio A. G. (2001). Recomendações para uma Política Pública de Livros Didáticos. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria da Educação Fundamental.

ROJO, Roxane (2002). A concepção de leitor e produtor de textos nos PCNs: "Ler é melhor que estudar". In M. T. A. Freitas & S. R. Costa (Orgs.), Leitura e Escrita na Formação de Professores. São Paulo: Musa/UFJF/INEP — COMPED, pp. 31- 52.

 

Nota 1 No PNLD/1998 os livros didácticos com as menções mais elevadas foram alvo considerável de escolha por parte dos professores. Em 2001, esses livros foram substituídos por livros com uma menção inferior, tendo-se mesmo generalizado esse padrão de escolha. Notou-se, assim, um refluxo que motivou indagações dos especialistas que avaliam a consecução do programa, indagações essas que se materializam nos estudos de que esta colectânea dá conta.

 

Joana Sousa - Universidade do Minho