SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.29 issue3Our golden rule in Behçet's disease: treating the clinical manifestationHIV across two continents: comparison between Egypt and Portugal author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Services on Demand

Journal

Article

Indicators

Related links

  • Have no similar articlesSimilars in SciELO

Share


Arquivos de Medicina

On-line version ISSN 2183-2447

Arq Med vol.29 no.3 Porto June 2015

 

ARTIGO DE REVISÃO

Decisões de não iniciar, limitar ou suspender terapêutica nas unidades de cuidados intensivos pediátricos

Withholding or withdrawing treatment decisions in pediatric intensive care units

Susana Santos1, Filipe Almeida2

 

1Faculdade de Medicina da Universidade do Porto

2Departamento de Pediatria, Faculdade de Medicina da Universidade do Porto

 

Correspondência

 

RESUMO

As decisões de não iniciar, limitar ou suspender terapêutica são uma realidade crescente em pediatria. Esta revisão pretende abordar o seu enquadramento ético, definir tratamento fútil, as circunstâncias do processo de decisão, o papel e os fatores de influência nos principais intervenientes. Este tipo de decisão deve guiar-se pelos princípios da bioética, sempre direcionada para o melhor interesse da criança. É impossível uma definição exata de tratamento fútil, e a presença de divergências entre pais e médicos implica uma abordagem sequencial. A decisão tem que considerar a proporcionalidade do tratamento e as opiniões dos vários intervenientes. O grau de envolvimento dos pais é variável, na Europa os médicos são os decisores primários, enquanto na América do Norte são os pais. Entre os fatores com maior influência nos pais estão a qualidade de vida e o sofrimento da criança, características culturais e a informação médica. Para os médicos importa a qualidade de vida, a probabilidade de sobrevivência, a incapacidade neurológica crónica, o envolvimento familiar e o medo de processos litigiosos. Há repercussões em todos os envolvidos, sendo a qualidade da comunicação primordial. É necessária a adoção de políticas pelos estabelecimentos de saúde e uma maior educação ética.

Palavras-chave: morte pediátrica, cuidados intensivos, ética, futilidade

 

ABSTRACT

Withholding or withdrawing treatment decisions are becoming more and more common in pediatric intensive care units. This article pretends to review its ethical framework, define futile treatment, how the decision is made, the role and factors affecting both parents and physicians. This type of decision must be based on the bioethical principles, and always aims at child's best interest. it's impossible to define futility and in case of disagreement a due process approach should be followed. Proportionality of treatment, parents' and doctors' views are important for the decision. Parental involvement is variable. in Europe doctors usually take the decision whereas in North America parents do. Quality of life, suffering, cultural factors and medical facts influence greatly the parents. Probability of survival, chronic neurological disability, child's family and fear of litigation are important for doctors. These complex decisions have consequences in all engaged, so quality information is crucial. Health care institutions should adopt a policy on the matter and more ethics education is needed.

Key-words: pediatric death, intensive care, ethics, futility

 

Introdução

A morte de uma criança é um acontecimento capaz de desmoronar a vida, os sonhos e ambições de pais, irmãos e familiares. Para os profissionais de saúde, independentemente de quantas vezes a experienciaram, a morte de uma criança é difícil e dolorosa. Apesar de relativamente infrequente, a morte em idade pediátrica ocorre, maioritariamente em ambiente hospitalar1,2.

O desenvolvimento tecnológico e o consequente aumento na sobrevivência e hospitalização de crianças gravemente doentes, acarreta questões éticas e humanas que não podem ser ignoradas1,2. As decisões de não iniciar, limitar ou suspender terapêutica são comuns e precedem grande parte das mortes nos serviços de urgência e nas unidades de cuidados intensivos, representando um dos temas mais complexos dos cuidados intensivos pediátricos2,3.

Esta revisão pretende abordar o seu enquadramento ético, definir tratamento fútil, as circunstâncias do processo de decisão, o papel e os fatores de influência nos principais intervenientes.

A nível europeu, 4.3% das crianças admitidas nas unidades de Cuidados Intensivos Pediátricos (UCI-P) morrem, e destas, entre 36 a 40% morrem após uma decisão de não iniciar, limitar ou suspender terapêutica4–7.

Existe grande variação geográfica relativamente a estas decisões. Estudos na América do sul reportam menores percentagens, como 20% na Argentina e variando entre 18 e 55% no Brasil8–12. O contrário sucede na Austrália (74-84%) e na América do Norte (85%)2,13,14. A influência da religião e da cultura, e o enquadramento legal e profissional diferem internacionalmente, explicando esta variação13–15. Em Portugal, os estudos existentes referem-se às UCI de neonatologia, onde se verifica que mais de metade das mortes ocorre na sequência deste tipo de decisão, registando-se um aumento nos últimos anos16.

 

Decisão e Ética

Apesar de a medicina ter cada vez melhores meios para tratar, o tratamento não é um bem em si mesmo. É um bem necessário à concretização de outro bem: a possibilidade de viver a vida17.

A prática médica deve ser orientada pelos princípios bioéticos. O principialismo de Beauchamp e childress surgiu na década de 70 focando quatro princípios básicos: não-maleficência, beneficência, justiça e autonomia18.

O princípio da justiça associa-se à distribuição equitativa dos bens e recursos comuns18. Relativamente aos cuidados intensivos pediátricos, os dados são contraditórios. Uns estudos concluem que, apesar da complexidade na definição de futilidade médica, só uma pequena percentagem de recursos é utilizada em tratamentos considerados fúteis, devido ao seu reconhecimento precoce pelos pediatras, que adequam os seus comportamentos eticamente à situação19,20. Alguns autores discordam, considerando elevado o número de casos (21%) de tratamento fútil ou inapropriado nas UCI-P do reino unido e os recursos por estes consumidos21.

A declaração de Barcelona identifica como princípios básicos a autonomia, a dignidade, a integridade e a vulnerabilidade22. A dignidade refere-se ao valor intrínseco do indivíduo e no encontro com o outro. O respeito pela integridade implica o respeito pela privacidade e individualidade, a compreensão do indivíduo e da sua posição perante a doença, sendo crucial no estabelecimento da confiança médico-doente. A vulnerabilidade implica que os seres humanos diferem na sua capacidade de se relacionar com o mundo, sendo a discriminação positiva dos mais vulneráveis, como as crianças, eticamente enquadrável22,23.

A autonomia envolve a capacidade de compreensão, comunicação, análise e deliberação com base nos valores pessoais, tornando a pessoa competente24. A incapacidade dos menores é suprida pelo consentimento parental, previsto no código civil português. O poder parental é, por natureza, fiduciário, ou seja, deve ser exercido no interesse do filho e não como “direito” dos pais sobre o filho17, sendo limitado pelo melhor interesse da criança e pela obrigação médica independente de agir de acordo com o melhor interesse da criança, mesmo quando em conflito com os desejos dos pais. Desta forma, alguns autores preferem o termo permissão ao invés de consentimento parental, na tomada de decisões partilhadas24.

Os adolescentes podem ter as capacidades cognitivas e emocionais necessárias para dar consentimento, devendo ser avaliados individualmente. Mesmo quando não consideradas competentes, a criança deve ser envolvida ao máximo no processo, sendo-lhe fornecida informação de acordo com a sua fase de desenvolvimento e consideradas as suas dúvidas e opiniões24,25.

A aplicação dos princípios éticos deve ser realizada numa sequência de prioridades. Quando se justifica o início da terapêutica, prevalece o princípio da beneficência. Pelo contrário, quando, após cuidadosa avaliação e ponderação de todos os fatores tanto pela equipa médica, como pela família, se decide pela limitação ou suspensão da terapêutica, o objetivo é não causar dano ou sofrimento, prevalecendo respectivamente os princípios da não mal eficência e da beneficência.

 

Futilidade

A definição de futilidade é, obrigatoriamente, influenciada por juízos de valores, sendo impossível uma definição exata com aplicação universal. Habitualmente, a questão é discutida quando as partes envolvidas apresentam visões divergentes3,26. Existem várias definições de futilidade. De acordo com estas definições, a futilidade pode ser definida como qualitativa ou quantitativa (se a probabilidade da eficácia do tratamento é menor que 1%), ou baseando-se na probabilidade de morte num futuro próximo e/ou na condição médica subjacente3,19. Todas estas definições foram alvo de críticas, por destituírem a subjetividade inerente ao conceito, transformando-o num conceito “pseudo-objetivo” ou por não considerarem a individualidade, o paciente27.

A comissão de Ética da Society of Critical Care Medicine, classifica os tratamentos em quatro categorias: tratamentos sem efeito fisiológico benéfico; tratamentos com benefício muito pouco provável; tratamentos com benefício mas com elevado consumo de recursos e tratamentos controversos ou com benefício incerto. A primeira categoria corresponde aos tratamentos fúteis, sendo as restantes consideradas tratamento inapropriado27.

A American Medical Association recomenda uma abordagem de processo razoável, onde as instituições de saúde deverão adotar uma política na futilidade médica e deverão ser seguidos determinados passos, sequencialmente. Idealmente, antes das manifestações críticas da doença, as partes envolvidas deverão discutir e determinar o que constitui tratamento fútil. Perante divergências, inicialmente deverá tentar-se chegara acordo com os envolvidos, na presença de um consultor independente, caso seja necessário. Caso a divergência se mantenha irresolúvel, é aconselhado o envolvimento da comissão de ética da instituição. Se este apoiar a posição do paciente/família, mas não do médico assistente, é aconselhada a transferência para outro médico da mesma instituição. Pelo contrário, se é a posição do clínico a apoiada, aconselha-se a transferência para outra instituição. Na persistência de divergências irresolúveis e na impossibilidade de transferência, o tratamento deverá ser suspenso 26. As divergências são comuns, não só entre paciente/família e médico, como entre médicos. É necessário atentar que estes conflitos são uma expressão natural da complexidade do problema e dos valores em questão, devendo ser conhecidos e respeitados, para a sua melhor resolução28. Um estudo norte-americano revela que 90% dos conflitos são resolvidos com a intervenção das comissões de ética29. No entanto, uma vez que estes são constituídos por profissionais de saúde e membros da comunidade hospitalar, poderão ser inerentemente enviesados a favor da posição toma da pelo médico, não representando adequadamente os pais. O mesmo estudo conclui que a existência de políticas relativas ao tema da futilidade médica na instituição não torna os médicos mais predispostos à suspensão de terapêutica29.

 

Não iniciar, limitar ou suspender terapêutica

Nas UCI-P várias associações pediátricas estabeleceram recomendações relativas à não iniciação, limitação ou suspensão da terapêutica nas UCI-P 25,28,30–32. A dignidade do paciente durante a sua doença e na aproximação à morte é a pedra basilar deste processo.

Esta decisão não pode nunca representar o abandono do paciente ou a suspensão de terapia que visa o alívio do sofrimento e que assegura, tanto quanto possível, o bem-estar físico, psicológico e espiritual da criança. Os cuidados paliativos assumem-se cruciais neste sentido, afirmando-se quando se torna aparente que a condição pode resultar em morte prematura, simultaneamente à terapêutica curativa instituída. Posteriormente, serão então a base do tratamento.

Apesar da não iniciação, a limitação e a suspensão de terapêutica terem fundamentações bioéticas específicas, ou seja, derivarem de diferentes princípios, todas elas podem ser eticamente enquadráveis.

No entanto, as repercussões psicológicas em todos os envolvidos são diferentes 25,28,30–32.

O tratamento tem que ser proporcional. A disponibilidade de meios de diagnóstico ou terapêuticos não obriga o seu uso. A proporcionalidade do tratamento deve ser decidida por todos os envolvidos, sendo competência específica do médico definir precisamente a adequação dos meios, individualmente. Tem que haver certeza no diagnóstico, no prognóstico e que todas as terapias alternativas foram consideradas e discutidas. Na dúvida do que constitui o melhor interesse da criança, a decisão deve sempre favorecer o início ou manutenção da terapêutica25,28,30–32. Na maioria dos casos, as decisões são baseadas em probabilidades e não em certezas. Algumas das crianças a quem a terapêutica é suspensa, sobrevivem, o que não invalida a decisão tomada. Esta baseia-se na futilidade do tratamento, não no resultado esperado.30

As decisões devem ser coletivas, incluindo a equipa da UCI, os médicos assistentes, o pessoal de enfermagem e consultores específicos, como especialistas em cuidados paliativos. Devem ser registadas no processo clínico as etapas no processo de decisão, as decisões tomadas e as suas justificações25,28,30–32.

Quando o assunto de não iniciar, limitar ou suspender terapêutica surge inicialmente, o médico responsável e o chefe da UCI-P devem liderar o processo de decisão. O tempo e o contexto mais apropriados para enveredar nesta discussão não é durante o evento agudo, mas sim quando a evolução da situação o permitir. Esta decisão deve ser encarada como um processo, não como um evento25,28,30–32. Nas situações agudas deve ser sempre iniciada terapêutica. Só posteriormente, com toda a informação disponível e excluídas todas as causas reversíveis para a condição clínica, é que se inicia o processo de decisão, com a participação do pessoal mais experiente da unidade. Segundo a Royal College of Paediatrics and Child Health (RCPCH), é a equipa médica que tem a responsabilidade moral na tomada de decisão30. A American Academy of Pediatrics (AAP) assume que os pais podem exercer o direito de recusar terapêutica, se assim o entenderem31.

O envolvimento explícito dos pais é precioso, nomeadamente na definição da proporcionalidade da terapêutica. As decisões devem ser preferencialmente partilhadas por aqueles presentes no “triângulo relacional”: pais, médicos e paciente. Os pais devem ser encorajados a participar, mas têm o direito de escolher o seu próprio grau de envolvimento nestas decisões. devem ser feitos todos os esforços para assegurar que a informação é claramente transmitida e totalmente compreendida. O tempo disponibilizado, o ambiente e a forma como a comunicação ocorre não só influenciam a decisão dos pais, como a sua reação ao evento, posteriormente. Estas são situações de stress para os pais, acompanhadas de sentimentos de fragilidade, culpa, inadequação, geradoras de ansiedade e sentimentos depressivos. A participação da restante família, particularmente os irmãos, ou de membros da comunidade, como figuras religiosas, deve ser considerada. O acompanhamento familiar deverá continuar após a morte, se houver desejo dos pais25,28,30–34. Em Portugal, estudos revelam um aumento muito significativo no apoio oferecido à família, nomeadamente aos irmãos e a nível religioso16. No entanto, os números estão ainda longe da realidade europeia, onde em quase 80% dos casos é oferecido apoio religioso35.

A gravidade deste tipo de decisão requer atenção explícita aos sentimentos da criança, independentemente do seu grau de competência. A criança deve ser informada, ouvida, devendo ser considerada a perceção que tem da doença e da sua evolução, bem como o sofrimento infligido pelo tratamento e o seu desejo na continuação. O grau de envolvimento da criança difere consoante o seu grau de competência25,28,30–32. As crianças não podem ser privadas de se despedirem dos seus entes queridos31.

Na prática, estudos realizados na Europa concluíram que os médicos são, maioritariamente, os decisoresprimários4,5,7,36–38. O mesmo sucede no Brasil e Argentina8–12,38,39. Pelo contrário, os estudos norteamericanos, canadianos e australianos revelaram uma maior autonomia dos pais na decisão13,14,36,38,40. De uma forma geral, os pais querem estar envolvidos. No entanto, o grau e a natureza deste envolvimento varia, desde a simples informação à autonomia completa na decisão. Tal deve ser discutido com os pais41. Alguma literatura francesa considera inapropriado que os pais acarretem tal responsabilidade, pela sua falta de conhecimento médico e no sentido de os proteger dos sentimentos de culpa que a decisão possa originar. Estudos conduzidos em França revelam que os pais não querem ter essa responsabilidade, mas que querem ser melhor informados da situação clínica. Contrariamente, em países como o canada ou os EUA, os pais preferem ser os decisores primários36–38.

Nos últimos anos, verifica-se um aumento quantitativo e qualitativo na informação prestada aos pais, havendo um grande envolvimento destes na decisão (superior a 85% dos casos, na maioria dos estudos).4,5,13,14,16,36,40,42 No entanto, no Brasil e na Argentina verifica-se uma menor participação familiar8–12,39. Apenas 9 a 50% dos casos no Brasil contam com a participação parental9–12,15.

As orientações da RCPCH incluem circunstâncias em que esta decisão deve ser considerada ética e legalmente: o estado vegetativo permanente, as situações “sem hipótese”, as situações “sem propósito” e as situações “insuportáveis”30.

O estado vegetativo permanente é definido como a ausência de consciência de si e do ambiente, em que o paciente respira espontaneamente, está hemodinamicamente estável, com ciclos de sono-vigília, preservação completa ou parcial das funções hipotalâmicas e do tronco cerebral. considera-se estado vegetativo continuado se persiste pelo menos 4 semanas e estado vegetativo persistente quando persiste por mais de 3 meses após anóxia cerebral e 12 meses na sequência de traumatismo craniano. Nestas circunstâncias, em que não existe expectativa razoável de recuperação, os tratamentos devem ser retirados, nunca abdicando dos cuidados paliativos30. relativamente à alimentação e hidratação artificial (AHA), existe grande controvérsia. Qualquer ser humano totalmente dependente dos outros morrerá se não receber AHA. Apesar destes casos serem alvo da jurisprudência, a nível internacional, havendo situações de adultos aos quais foram retirados AHA, com base nos seus testamentos de vida, em Portugal a questão é diferente24. A AHA não se reputa como meio terapêutico artificial, não sendo sustentável a sua suspensão. É inconcebível a morte provocada ou acelerada por inanição ou desidratação17. A RCPCH e o General Medical Council consideram a sua retirada, mas com aconselhamento legal25,30.

As situações “sem hipótese” são consideradas aquelas em que o tratamento adia a morte, mas não melhora a qualidade de vida, não aliviando o sofrimento. Um exemplo deste tipo de situação é a criança com cancro metastizado, cuja vida não beneficiará de quimioterapia ou outras formas de tratamento curativo30.

As situações “sem propósito” são aquelas em que a criança poderá sobreviver com o tratamento mas há razões para crer que esse tratamento não é do melhor interesse da criança. A continuação do tratamento poderá piorar a situação já existente, resultando numa “vida impossivelmente pobre”.30 A decisão é sempre baseada no melhor interesse da criança, a qual não pode nunca ser influenciada por factores de confundimento,que entrem em conflito com este objetivo máximo. Dentro destes factores incluem-se a incapacidade dos pais em lidar com as sequelas que a situação clínica acarreta, o enfâse inapropriado nos programas de saúde em vez do interesse individual do paciente, experiências passadas do médico que possam enviesar a decisão ou mesmo conflitos de interesse ocultos43. As incapacidades físicas ou psicológicas, actuais ou potenciais, não são por si só razão para não iniciar, limitar ou suspender o tratamento, pois são situações compatíveis com uma vida de qualidade25,28,30–32.

A RCPCH considera ainda a situação “insuportável”, em que a criança e/ou a família sentem que o tratamento é mais do que aquilo que conseguem suportar e requerem a sua suspensão, independentemente da opinião médica em prol do beneficio do tratamento30.

A Confederation of the European Specialists of Paediatrics (CESP) não é tão específica quanto às circunstâncias em que esta decisão deve ser considerada, referindo que deverá ser feito nas situações em que a vida apenas é mantida por medidas permanentes, causadoras de dano/sofrimento insuportável, ou se a terapêutica comporta sofrimento insuportável continuado sem prospeção da sua redução significativa ou de recuperação32.

As decisões de tratamento podem ter que incluir o uso de analgésicos ou sedativos cujo efeito secundário é o “abreviamento” da vida. O médico é eticamente obrigado a tratar não só a causa da doença, mas também a dor, ansiedade, dispneia e sofrimento. O alívio da dor é um bem moral de tamanha magnitude que os efeitos secundários potenciais não intencionais são aceitáveis, na ausência de outros métodos que não sejam “abreviativos”17,24,44. Não constitui eutanásia o uso do único cuidado paliativo que “abrevie” a vida, nem a omissão de tratamentos fúteis17. As associações pediátricas rejeitam a administração de medicações em doses letais, com o objetivo de terminar a vida25,28,30–32. A excepção são os Países Baixos, onde a eutanásia e o suicídio assistido são legais a partir dos 12 anos e representam 2.7% das mortes pediátricas5 e a Bélgica, onde recentemente se legalizou a eutanásia pediátrica45.

 

Factores que influenciam os pais

Os factores relacionados com a criança, a sua qualidade de vida, a possibilidade de melhoria e o seu sofrimento são aqueles que exercem maior influência nos pais. A observação das manifestações da doença e do sofrimento na criança parecem ser mais importantes que as informações fornecidas pelos profissionais de saúde. A comparação com situações semelhantes prévias de decisões de fim de vida em familiares ou a morte de um ente querido são também importantes. Na tentativa de agir em nome do melhor interesse da criança, os pais consideram aquilo que crêem ser o que a criança quereria ou o que eles próprios quereriam para si, naquela situação. A informação médica é também um factor de influência, apesar de assumir menos importância que os já referidos. Essa informação é proveniente de várias fontes: profissionais de saúde e fontes externas, como a internet. A forma como essa informação é transmitida também é relevante. O suporte da família é importante no sentido da sua compreensão e aceitação da decisão tomada. O tempo parece ser insuficientee, compreensivelmente, mais tempo com a criança é desejado. Também a fé e o acompanhamento religioso influenciam os pais que professam alguma religião. Os encargos financeiros que a doença possa acarretar parecem exercer muito pouca ou nenhuma influência na decisão parental42,44,46,47. Um dado preocupante é que 24% dos pais, quando questionados posteriormente, agiria de forma diferente na tomada de decisão, o que os coloca em grande risco de luto irresolvido ou complicado42.

 

Factores que influenciam os médicos

A qualidade de vida, percecionada pela criança e pela família, a probabilidade de sobrevivência e a preferência parental são os factores com maior influência nos profissionais de saúde envolvidos na decisão. O nível de incapacidade neurológica crónica e a qualidade de vida a longo-prazo assumem importância, embora menor48,49. A perceção do médico do grau de envolvimento da família e da sua capacidade em cuidar da criança também tem influência significativa, ao contrário das crenças religiosas familiares, que não parecem ser tão influentes50. As crenças religiosas dos médicos parecem deter muito pouca ou nenhuma importância na decisão49. Curiosamente, a religião parece ter maior influência nos países do norte da Europa, comparativamente com os do sul35. O medo de processos litigiosos ou de agir ilegalmente é importante48,50, enquanto as razões financeiras e a disponibilidade nas UCI-P revelam-se menos importantes48.

Estudos sobre os efeitos destas decisões nos médicos e nos sentimentos destes revelam dados preocupantes. Mais de 70% dos profissionais de saúde discordam quando indagados sobre a eficácia de como estas decisões são processadas e 90% concorda que a dificuldade nestas decisões provoca stress pessoal, com repercussões no processo de decisão50. Outro estudo revela que um grande número de médicos (38%) e enfermeiros (48%) com funções nas UCI-P já agiram contra a sua consciência. Estas preocupações estão sobretudo relacionadas com a prestação de cuidados de forma excessiva e passíveis de causarem dano e não com a sua suspensão51.

 

Conclusão

A impossibilidade de definir com exatidão futilidade e os sentimentos gerados pelo processo de decisão em todos os envolvidos demonstram a complexidade das decisões de não iniciar, limitar ou suspender terapêutica. Estas decisões devem ser encaradas como um processo, que visa sempre o melhor interesse da criança e considera a proporcionalidade do tratamento.

Apesar de inevitáveis, devemos enveredar esforços no sentido de minorar as repercussões psicológicas, tanto nos familiares como nos profissionais de saúde. Nesse sentido, é necessária a adoção de políticas pelos estabelecimentos de saúde e um maior enfâse na educação ética.

 

Referências

1. Kenny NP. The death of children: Our failures and possibilities. Pediatr. Child Heal. 2003;8(6):337.         [ Links ]

2. Lee KJ, Tieves K, Scanlon MC. Alterations in end-of-life support in the pediatric intensive care unit. Pediatrics. 2010;126(4):859–864.         [ Links ]

3. Wilkinson DJC, Savulescu J. Knowing when to stop: futility in the ICU . Curr. Opin. Anaesthesiol. 2011;24(2):160–5.         [ Links ]

4. Devictor DJ, Latour JM. Forgoing life support: how the decision is made in European pediatric intensive care units. Intensive Care Med. 2011;37:1881–7.         [ Links ]

5. Vrakking AM, Van Der Heide A, Arts WFM, et al. Medical end-of-life decisions for children in the Netherlands. Arch. Pediatr. Adolesc. Med. 2005;159:802–9.         [ Links ]

6. Pousset G, Bilsen J, Cohen J, Chambaere K, Deliens L, Mortier F. Medical end-of-life decisions in children in Flanders, Belgium: a population-based postmortem survey. Arch. Pediatr. Adolesc. Med. 2010;164:547–553.         [ Links ]

7. Vos MA De, Heide A Van Der, Maurice-stam H, et al. The Process of End-of-Life Decision-Making in Pediatrics : A National Survey in the Netherlands. Pediatrics. 2011;127:1004–12.         [ Links ]

8. Althabe M, Cardigni G, Vassallo JC, et al. Dying in the intensive care unit: collaborative multicenter study about forgoing life-sustaining treatment in Argentine pediatric intensive care units. Pediatr. Crit. Care Med. 2003;4(2):164–169.         [ Links ]

9. Lago PM, Piva J, Kipper D, et al. Life support limitation at three pediatric intensive care units in southern Brazil. J. Pediatr. (Rio. J). 2005;81(2):111–7.         [ Links ]

10. Kipper DJ, Piva JP, Garcia PCR , et al. Evolution of the medical practices and modes of death on pediatric intensive care units in southern Brazil. Pediatr. Crit. care Med. 2005;6:258–63.         [ Links ]

11. Piva J, Lago P, Othero J, et al. Evaluating end of life practices in ten Brazilian paediatric and adult intensive care units. J. Med. Ethics. 2010;36(6):344–8.         [ Links ]

12. Lago PM, Piva J, Garcia PC, et al. End-of-life practices in seven Brazilian pediatric intensive care units. Pediatr Crit Care Med. 2008;9(1):26–31.         [ Links ]

13. Moore P, Kerridge I, Gillis J, Jacobe S, Isaacs D. Withdrawal and limitation of life-sustaining treatments in a paediatric intensive care unit and review of the literature. J. Paediatr. Child Health. 2008;44:404–8.         [ Links ]

14. Stark Z, Hynson J, Forrester M. Discussing withholding and withdrawing of life-sustaining medical treatment in paediatric inpatients: Audit of current practice. J. Paediatr. Child Health. 2008;44:399–403.         [ Links ]

15. Lago PM, Devictor D, Piva JP, Bergounioux J. End-of-life care in children: the Brazilian and the international perspectives. J. Pediatr. (Rio. J). 2007;83(2 Suppl):S109–16.         [ Links ]

16. Moura H, Costa V, Rodrigues M, Almeida F, Maia T, Guimarães H. End of life in the neonatal intensive care unit. Clinics. 2011;66:1569–1572.         [ Links ]

17. Cardoso ML. Suspensão Terapêutica : Princípios éticos e fundamentação legal. 2008:1–11.         [ Links ]

18. Beauchamp TL , Childress JF. Principles of Biomedical Ethics. 6th ed. Oxford University Press; 2008.         [ Links ]

19. Goh a Y, Mok Q. Identifying futility in a paediatric critical care setting: a prospective observational study. Arch. Dis. Child. 2001;84:265–8.         [ Links ]

20. Sachdeva RC , Jefferson LS , Coss-Bu J, Brody B A. Resource consumption and the extent of futile care among patients in a pediatric intensive care unit setting. J. Pediatr. 1996;128:742–7.         [ Links ]

21. Vemuri G, Playfor SD . Futility and inappropriate care in pediatric intensive care: a cross-sectional survey. Paediatr. Anaesth. 2006;16:309–13.         [ Links ]

22. Kemp P, Rendtorff JD. The Barcelona Declaration. Synth. Philos. 2008;2:239–251.         [ Links ]

23. Rendtorff JD. Basic ethical principles in European bioethics and biolaw: autonomy, dignity, integrity and vulnerability--towards a foundation of bioethics and biolaw. Med. Health Care. Philos. 2002;5:235–44.         [ Links ]

24. Kodish E, Weise K. Ethics in pediatric care. In: Kliegman R, Stanton B, Geme J St., Schor N, Behrman R, eds. Nelson Textbook of Pediatrics. 19th ed. Philadelphia: Saunders; 2011.         [ Links ]

25. General Medical Council. Withholding and withdrawing - guidance for doctors. 2006.         [ Links ]

26. Council on Ethical and Judician Affairs AMA. Medical Futility in End-of-Life Care: Report of the Council on Ethical and Judicial Affairs. JAMA J. Am. Med. Assoc. 1999;281:937–941.         [ Links ]

27. Consensus statement of the Society of Critical Care Medicine's Ethics Committee regarding futile and other possibly inadvisable treatments. Crit. Care Med. 1997;25:887–91.         [ Links ]

28. Giannini A, Messeri A, Aprile A, et al. End-of-life decisions in pediatric intensive care. Recommendations of the Italian Society of Neonatal and Pediatric Anesthesia and Intensive Care (SARNePI). Paediatr. Anaesth. 2008;18:1089–95.         [ Links ]

29. Morparia K, Dickerman M, Hoehn KS. Futility: unilateral decision making is not the default for pediatric intensivists. Pediatr. Crit. care Med. 2012;13:311–5.         [ Links ]

30. Royal College of Paediatrics and Child Health. Withholding or withdrawing life sustaining treatment in children: A framework for practice. Second edition.; 2004.         [ Links ]

31. American Academy of Pediatrics. Guidelines on Forgoing Life-Sustaining Medical Treatment. Pediatrics. 1994;93:532–536.         [ Links ]

32. Kurz R. Decision making in extreme situations involving children: withholding or withdrawal of life supporting treatment in paediatric care. Statement of the ethics working group of the Confederation of the European Specialists of Paediatrics (CESP). Eur. J. Pediatr. 2001;160:214–6.         [ Links ]

33. Levetown M. Facing Decisions about Life and Death- Communication with Parents. Bioethics Forum. 2002;18:16–22.         [ Links ]

34. Feudtner C, Morrison W. The Darkening Veil of “Do Everything.” Arch. Pediatr. Adolesc. Med. 2012;166:694–5.         [ Links ]

35. Guimarães H, Rocha G, Almeida F, et al. Ethics in neonatology: a look over Europe. J Matern Fetal Neonatal Med. 2012;25:984–91.         [ Links ]

36. Carnevale F A, Canoui P, Cremer R, et al. Parental involvement in treatment decisions regarding their critically ill child: a comparative study of France and Quebec. Pediatr. Crit. care Med. 2007;8:337–42.         [ Links ]

37. Carnevale F A, Canouï P, Hubert P, et al. The moral experience of parents regarding life-support decisions for their critically-ill children: a preliminary study in France. J. child Heal. care. 2006;10:69–82.         [ Links ]

38. Devictor DJ, Tissieres P, Gillis J, Truog RD . Intercontinental differences in end-of-life attitudes in the pediatric intensive care unit: results of a worldwide survey. Pediatr. Crit. Care Med. 2008;9(6):560–566.         [ Links ]

39. Abib El Halal GM, Piva JP, Lago PM, et al. Parents' perspectives on the deaths of their children in two Brazilian paediatric intensive care units. Int J Palliat Nurs. 2013;19(10):496–502.         [ Links ]

40. Madrigal VN, Carroll KW, Hexem KR, Faerber J a, Morrison WE, Feudtner C. Parental decision-making preferences in the pediatric intensive care unit. Crit. Care Med. 2012;40:2876–82.         [ Links ]

41. Gillam L, Sullivan J. Ethics at the end of life: who should make decisions about treatment limitation for young children with life-threatening or life-limiting conditions? J. Paediatr. Child Health. 2011;47:594–8.         [ Links ]

42. Meyer EC, Burns JP, Griffith JL, Truog RD . Parental perspectives on end-of-life care in the pediatric intensive care unit. Crit. Care Med. 2002;30:226–31.         [ Links ]

43. Cornfield DN, Kahn JP. Decisions about life-sustaining measures in children: in whose best interests? Acta Paediatr. 2012;101:333–6.         [ Links ]

44. Devictor D, Latour JM, Tissières P. Forgoing life-sustaining or death-prolonging therapy in the pediatric ICU . Pediatr. Clin. North Am. 2008;55(3):791–804.         [ Links ]

45. Watson R. Belgium extends euthanasia law to children. BMJ. 2014;348:g1633.         [ Links ]

46. Sharman M, Meert KL, Sarnaik AP. What influences parents' decisions to limit or withdraw life support? Pediatr. Crit. Care Med. 2005;6:513–518.         [ Links ]

47. Michelson KN, Koogler T, Sullivan C, Hall E, Frader J. Parental Views on Withdrawing Life-Sustaining Therapies in Critically Ill Children. Arch. Pediatr. Adolesc. Med. 2009;163:986–992.         [ Links ]

48. Burns J, Mitchell C, Griffith J, Truog R. End-of-life care in the pediatric intensive care unit: attitudes and practices of pediatric critical care physicians and nurses. Crit. Care Med. 2001;29:658–64.         [ Links ]

49. Randolph AG, Zollo MB, Egger MJ, et al. Variability in Physician Opinion on Limiting Pediatric Life Support. Pediatrics. 1999;103:e46.         [ Links ]

50. Ruppe MD, Feudtner C, Hexem KR, Morrison WE. Family factors affect clinician attitudes in pediatric end-of-life decision making: a randomized vignette study. J. Pain Symptom Manage. 2013;45:832–40.         [ Links ]

51. Solomon MZ, Sellers DE, Heller KS, et al. New and lingering controversies in pediatric end-of-life care. Pediatrics. 2005;116:872–83.         [ Links ]

 

Correspondência:

Susana Santos

Faculdade de Medicina da Universidade do Porto. Alameda Professor Hernâni Monteiro, 4200-319 Porto. E-mail: med06144@med.up.pt

 

Data de recepção / reception date: 27-05-2014

Data de aprovação / approval date: 14-07-2014

Creative Commons License All the contents of this journal, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution License