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Arquivos de Medicina

On-line version ISSN 2183-2447

Arq Med vol.28 no.4 Porto Aug. 2014

 

INVESTIGAÇÃO ORIGINAL

Representações sociais de professores sobre o uso racional de medicamentos

Teachers’ social representations on rational use of medicines

Alexandra Magalhães1, Nuno Lunet1,2, Susana Silva1,2

 

1Epiunit -Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto

2Departamento de epidemiologia clínica, medicina preditiva e saúde pública, Faculdade de Medicina da Universidade do Porto

 

Correspondência

 

RESUMO

Perante a constatação do uso indevido de medicamentos, prejudicando a saúde das pessoas e desperdiçando recursos, e a escassez de políticas básicas neste domínio, desde 2001 que a Organização Mundial de Saúde sugere um investimento na educação para a saúde para promover o uso racional de medicamentos. O objetivo deste estudo foi conhecer as representações sociais de professores sobre o uso racional de medicamentos. Realizaram-se 15 entrevistas semiestruturadas a docentes com responsabilidades na educação para a saúde no Porto, Portugal, entre janeiro e maio de 2012. Indagaram-se os significados atribuídos ao uso racional de medicamentos e os conhecimentos e atitudes acerca de medicamentos genéricos, medicamentos não sujeitos a receita médica e medicamentos adquiridos através da internet, atendendo às especificidades quanto à segurança, efetividade e facilidade de acesso. Procedeu-se a uma análise de conteúdo temática, registando-se a frequência de respostas semelhantes e os excertos mais ilustrativos. Identificaram-se lacunas em conhecimentos específicos sobre o uso racional de medicamentos e relatos heterogéneos acerca da mediação profissional e da adesão à terapêutica. Predominaram referências a experiências pessoais, baseadas em conhecimentos obtidos empiricamente, rareando as menções ao funcionamento e regulação do setor do medicamento. Conhecer o medicamento e a doença foram reconhecidos como condições necessárias para um uso racional, obstaculizado pelo acesso fácil a medicamentos, a disponibilidade de produtos com segurança e eficácia questionáveis, a automedicação e falta de disponibilidade do doente para consultar especialistas. A educação para a saúde foi considerada essencial para otimizar o uso racional de medicamentos.

Palavras-chave: uso racional de medicamentos, educação em saúde, representação social

 

ABSTRACT

After noting the misuse of drugs, harming the health of people and wasting resources, and the lack of basic policies in this area, since 2001 the World Health Organization suggests an investment in health education to promote rational use of medicines. The aim of this study was to understand the social representations of teachers regarding the rational use of medicines. Fifteen semi-structured interviews were conducted with teachers who had responsibilities in health education in Porto, Portugal, between January and May 2012. The participants were inquired about the meanings attributed to the rational use of medicines and the knowledge and attitudes on generic medicines, medicinal products not subject to medical prescription and medicines purchased over the internet, given the respective specificities regarding safety, effectiveness and ease of access. data were subject to a thematic content analysis, noting the frequency of similar responses and excerpts most illustrative. This study revealed gaps in specific knowledge about the rational use of medicines and heterogeneous reports on mediation by health professionals and adherence to therapy. There was a predominance of references to personal experiences and knowledge obtained empirically. The references to the functioning and regulation of the drug market were scarce. Knowledge of the medication and the disease were recognized as mandatory conditions for a rational use of medicines, which was hampered by easy access to medicines, the availability of products with questionable safety and efficacy, self-medication and patients’ unwillingness to consult health professionals. Health education was considered essential to optimize rational use of medicines.

Key-words: rational use of medicines, health education, social representation

 

Introdução

O uso racional de medicamentos pressupõe que a cada pessoa seja administrada a medicação apropriada para a sua situação clínica, nas doses necessárias à sua condição, por um período de tempo adequado e ao menor custo (Organización Mundial de la Salud, 2002). O construto subjacente a esta definição pressupõe que a decisão acerca do uso de medicamentos e a sua adequação em cada caso inclua um juízo acerca da efetividade e segurança dos medicamentos em diferentes contextos de utilização e condições de acesso (Gandolfi e Andrade, 2006; Mota e col, 2008). As perceções sobre a efetividade, segurança e acesso apresentam especificidades nas situações que envolvem medicamentos genéricos, medicamentos não sujeitos a receita médica e medicamentos adquiridos através da Internet, uma vez que estes proporcionam uma maior liberdade de escolha por parte dos indivíduos, independentemente das recomendações dos profissionais de saúde.

Perante a constatação de que cerca de metade dos medicamentos eram vendidos, prescritos ou utilizados indevidamente, prejudicando a saúde das pessoas e desperdiçando recursos, num cenário global onde escasseavam políticas básicas no âmbito do uso racional de medicamentos, desde 2001 que a Organização Mundial de Saúde (OMS) recomenda a implementação de programas nacionais para promover o uso racional de medicamentos por meio de políticas estruturais e/ou campanhas de informação e educação para a saúde (Aquino, 2008; World Health Organization, 2012). O sistema de ensino afigura-se como uma instituição privilegiada para concretizar tal objetivo, atendendo a que as escolas são espaços favoráveis à aprendizagem e aquisição precoces de competências transversais por parte de todos os alunos, contando com a colaboração de profissionais preparados para ensinar: os professores (Plataforma europeia para a Promoção da Saúde na escola, 2009; Precioso, 2004; Rodrigues e col, 2007).

Em Portugal, as áreas curriculares não disciplinares foram definidas em 2008 e incluem a educação para a saúde e a educação para o consumo. Doravante, consolidaram-se as responsabilidades dos professores dos níveis 2 e 3 da International Standard Classification of Education – ISCED (UNESCO, 2011) na lecionação de conteúdos relacionados com a promoção do uso racional de medicamentos, exigindo deste grupo profissional a aquisição de conhecimentos relevantes e de formação específica nessa área, agravadas pela inexistência de conteúdos programáticos formais a abordar no âmbito da educação para a saúde. Adquirir tais competências pode implicar grandes investimentos pessoais ao longo do tempo, pelo que, na sua ausência, os professores podem ver-se confrontados com a necessidade de ministrar conteúdos com base em representações sociais (Gazzinelli e col, 2005). Enquanto sistemas de referência e de conhecimento que sustentam a interpretação e a significação atribuída ao acesso, segurança e efetividade dos medicamentos e fenómenos cognitivos e simbólicos que orientam as práticas, os comportamentos e as comunicações no âmbito do uso de medicamentos (Almeida, 1990; Sevalho, 1993), as representações sociais interferem na eficácia da educação em saúde (Alves-Mazzoti, 2008). Deste modo, o objetivo deste estudo foi conhecer as representações sociais de professores sobre o uso racional de medicamentos.

 

Métodos

Foram convidados a participar numa entrevista semiestruturada professores dos níveis 2 e 3 da ISCED, com responsabilidades em educação para a saúde. Entre janeiro e maio de 2012, foram contactados, pessoal ou telefonicamente, 15 professores de escolas públicas ou privadas do distrito do Porto, Portugal, aos quais se explicou o objetivo geral do estudo: conhecer as representações sociais dos professores acerca do uso racional de medicamentos. Todos os professores convidados aceitaram participar e formalizaram a colaboração através da assinatura de uma declaração de consentimento informado, após a leitura do folheto de apresentação do estudo em situação de copresença física. O estudo obteve parecer positivo da Comissão de Ética da Universidade do Porto.

Na constituição desta amostra intencional, procurou-se assegurar a inclusão de um número semelhante de participantes quanto à área de graduação (ciências naturais versus ciências sociais e humanidades) e grupo etário (=30 anos, 31-40 anos, =41 anos) (Tabela 1). No que respeita ao peso relativo de participantes de cada sexo (9 mulheres e 6 homens) e a lecionar em escolas públicas (n=13) ou privadas (n=2), a amostra representa aproximadamente a distribuição no norte de Portugal. Este tipo de amostragem caracteriza-se pela seleção de casos cuja representatividade assenta na qualidade teórico-metodológica e na exemplaridade, permitindo identificar as principais variações do fenómeno em análise e a respetiva incorporação na teoria emergente. O número de entrevistas a realizar foi definido pela saturação da informação: adicionaramse à análise novos dados sempre que tal se revelou pertinente do ponto de vista da construção teórica, até que os dados adicionais deixaram de contribuir para as categorias consideradas (Guest e col, 2006). As entrevistas, com uma duração média de 30 minutos (mínimo-máximo: 22 - 54 minutos), realizaram-se nas escolas ou em espaços públicos próximos do local de trabalho dos participantes e foram conduzidas pela primeira autora.

 

 

Após a recolha de informações sobre o percurso académico e profissional dos participantes, o guião de entrevista incluía uma questão aberta sobre os significados atribuídos ao uso racional de medicamentos: “na sua opinião, o que significa um uso racional de medicamentos?”. O guião contemplava também questões que exploravam os conhecimentos, práticas e atitudes acerca de medicamentos genéricos, medicamentos não sujeitos a receita médica e medicamentos adquiridos através da internet. Atendendo a que cada um destes grupos tem especificidades quanto à segurança, efetividade e facilidade de acesso, a inclusão de questões específicas sobre cada um deles permitiu explorar, em profundidade, as representações sociais dos professores acerca do uso racional dos medicamentos em geral. Foram colocadas as seguintes questões para cada um destes grupos de medicamentos: “Quais as vantagens desses medicamentos?”; “Acha que existem desvantagens nesses medicamentos? Quais?”; “Acha que esses medicamentos são utilizados de forma correta por parte das pessoas?”; “O que pode ser feito para otimizar a utilização desses medicamentos?”; “na sua opinião quais os profissionais indicados para educar para a saúde no contexto do uso racional desses medicamentos?”.

Todas as entrevistas foram gravadas com a autorização dos participantes e integralmente transcritas. De acordo com o protocolo estabelecido por Stemler (2001) para a análise de conteúdo temática, os dados recolhidos foram sistematicamente codificados e sintetizados por temas e subtemas a partir da análise semântica da informação, registando-se a frequência de respostas semelhantes e selecionando-se as expressões mais ilustrativas das representações sociais dos professores sobre cada um dos temas emergentes. Para cada subtema apresenta-se o número de professores com respostas semelhantes e descrevem-se alguns dos excertos mais ilustrativos e representativos de todas as entrevistas, utilizando pseudónimos. Os dados foram analisados independentemente por dois investigadores, tendo os conflitos sido resolvidos por discussão conjunta com um terceiro investigador.

 

Resultados

Nas representações sociais de professores sobre o uso racional de medicamentos emergiram 4 temas e 20 subtemas (Tabela 2). Os principais temas identificados foram os seguintes: enquadramento do conceito de uso racional de medicamentos; condições necessárias para usar racionalmente medicamentos; obstáculos ao uso racional de medicamentos; medidas para otimizar o uso racional de medicamentos.

 

 

Todos os entrevistados usaram a sua experiência pessoal enquanto doentes e/ou cuidadores para enquadrar a definição de uso racional de medicamentos a nível individual. Apenas dois dos 15 participantes, ambos homens com mais de 30 anos, referiram aspetos relacionados com o nível coletivo. No discurso de Renato, por exemplo, a implementação da uni-dose no sistema de saúde surgiu como um facilitador do uso racional de medicamentos, por permitir uma utilização mais eficiente dos recursos comuns. Na afirmação seguinte, proferida por Francisco, realça-se a importância do controlo e vigilância de medicamentos considerados essenciais por parte do Sistema nacional de Saúde:

“[O uso racional de medicamentos] por parte de um país, de um Sistema Nacional de Saúde de um país, teria a ver com [controlar e vigiar] aqueles medicamentos que são absolutamente necessários para determinadas doenças: doenças crónicas, doenças terminais, doenças graves, etc.”

Os professores entrevistados perspetivaram o uso racional de medicamentos como o seu consumo “responsável”, ou seja, sob prescrição e controlo médico (n=7) ou, no caso dos medicamentos não sujeitos a receita médica, com conhecimento individual adequado à tomada de decisões corretas neste contexto (n=4) e apenas quando necessário (n=7), como ilustram as definições propostas pela tatiana e pelo João, respetivamente:

“Um uso racional de medicamentos será (…) a utilização de medicamentos (…) de forma responsável, não é? (…) Não em demasia, mas também [com] receita médica.”

“Eu penso que (…) será a utilização de medicamentos com prescrição médica ou, no caso de ser sem prescrição médica, medicamentos daqueles mais convencionais [e] sem exageros.”

De acordo com os professores que participaram neste estudo, no uso racional de medicamentos coexistem, obrigatoriamente, pelo menos duas das seguintes condições: conhecimento acerca do medicamento; existência de mediação profissional; conhecer a doença; e aderir à terapêutica (Tabela 3). A condição mais referida foi o conhecimento acerca das consequências dos medicamentos (efeitos desejados e não desejados) no âmbito da segurança (n=15) e eficácia (n=14), seguida pela adequação aos problemas de saúde no caso da eficácia (n=12) e pela informação sobre as regras de utilização no que concerne a segurança (n=12).

 

 

Os entrevistados identificaram a utilização prévia de medicamentos (n=9) e a interpretação do folheto informativo (n=8) como os principais modos de obtenção do conhecimento que sustenta um uso racional de medicamentos, sobretudo nos casos de medicamentos não sujeitos a receita médica e de medicamentos adquiridos através da Internet. Nas demais situações, a maioria dos entrevistados referiu o aconselhamento de um profissional de saúde (n=13) e/ou a prescrição (n=11) como condição para o uso racional de medicamentos. Nos casos que envolvem medicamentos não sujeitos a receita médica, 12 dos 15 entrevistados defenderam a ideia de que o seu uso racional não é prejudicado pela ausência de mediação, como ilustra a seguinte afirmação de Renato:

“Quando vou a uma parafarmácia comprar [medicamentos](…), são coisas de uso livre (…) e, portanto, à partida, (…) já sei o que é que vou comprar, não peço opinião.”

Onze dos 15 participantes consideraram existir um uso racional de medicamentos quando as pessoas conhecem os sintomas e o grau de sofrimento provocado pela doença. na perspetiva de Olinda, este conhecimento facilita e legitima a escolha de medicamentos “simples” adequados à situação concreta do utilizador, validando a sua opinião por intermédio da experiência pessoal de utilização racionalde aspirinapara a enxaqueca: “[quando fico com] a enxaqueca (…) basta uma simples aspirina (…) para aliviar os sintomas”.

A utilização do conhecimento acumulado para a distinção dos problemas de saúde relativamente à sua cronicidade ou duração esperada também foi percebida como uma condição do uso racional de medicamentos, em geral. O relato de João mostra como este professor aprendeu a identificar as causas das “habituais dores de cabeça”, gerindo de forma responsável a necessidade de recorrer a medicamentos, segundo a duração das mesmas:

“Acaba por existir um conhecimento próprio, que permite (…), se calhar, nem tomar nada, porque é uma dor de cabeça que tem a ver com (…) o stress (…) e sei que vai passar.”

Os discursos em torno da adesão à terapêutica realçaram a importância da utilização dos medicamentos ser feita com base no princípio da necessidade (n=11), evitando duas situações: por um lado, a “irracionalidade” associada a uma sobre utilização dos mesmos, de que são exemplo, para Maria, as “pessoas que [por] qualquer coisinha tomam logo medicamento”; por outro lado, a subutilização provocada por “medo” ou “receio”, como relatou Renato ao reconhecer que “se calhar, o meu uso é irracional porque tenho muito medo [de usar medicamentos]”. Cerca de metade dos participantes referiu a dosagem adequada (n=7) ou a toma do medicamento até ao fim (n=6), sobretudo no caso dos antibióticos, para evitar que as bactérias fiquem “resistentes”.

Doze dos 15 entrevistados mencionaram a facilidade de acesso a medicamentos, a disponibilidade de medicamentos com segurança e eficácia questionáveis e a automedicação como os principais entraves ao uso racional de medicamentos (Tabela 4). Tais obstáculos surgiram frequentemente articulados com a falta de conhecimento acerca do medicamento (n=9) e a crença na exclusividade do medicamento como uma forma de resolver problemas (n=7), como atesta a seguinte reflexão de Alberto:

“Hoje vivemos numa sociedade em que (…) há um certo facilitismo, um certo imediatismo na resolução dos problemas e, portanto, também há [um recurso fácil e imediato] no que diz respeito ao medicamento [para resolver qualquer problema].”

 

 

As referências aos interesses de ordem comercial (n=6) ou corporativa (n=5) foram relativamente escassas e surgiram quase sempre associadas na identificação dos obstáculos ao uso racional de medicamentos, como transparece do relato de Renato: “o poder económico de determinadas indústrias (…) condiciona isto tudo, não só a nível da publicidade, como a nível depois da prescrição do clínico.”

Todos os entrevistados referiram as campanhas de sensibilização e informação como uma estratégia de educação para o uso racional de medicamentos (Tabela 5), envolvendo sobretudo profissionais de saúde (n=14) e professores (n=9), de preferência com formação em Biologia, como defendeu Carla: “No caso dos professores, sim!, os professores de biologia seriam os mais indicados”.

 

 

Paralelamente à educação para a saúde, os participantes mencionaram a importância da regulação do setor do medicamento para otimizar o seu uso racional, seja por via da fiscalização e controlo (n=12), sobretudo no caso dos medicamentos genéricos ou dos que são comercializados na internet, seja pelo aumento da informação sobre os medicamentos (n=11). no discurso de tatiana evidencia-se a necessidade de articular a educação com a regulação na promoção do uso racional de medicamentos:

“Os nossos alunos têm de estar informados, não é?, em relação a essas questões [segurança e eficácia dos medicamentos] para mais tarde poderem tomar as devidas decisões e poder escolher entre os [medicamentos] de marca e os genéricos. (…) Tem que haver uma maior fiscalização (…) por parte das entidades (…) nesse domínio [medicamentos adquiridos na internet], não é?.”

Um terço dos participantes referiu a otimização da mediação, através da atribuição de maior autonomia ao farmacêutico e melhorias em alguns aspetos relacionados com o acesso aos serviços de saúde, nomeadamente o aumento do número de médicos ou consultas e a diminuição dos respetivos custos, conforme referiu Olinda:

“Qualquer coisa tem de ser feita no sistema de saúde, de modo a que seja mais fácil poder ter (…) uma consulta médica (…) e, provavelmente, também diminuir os custos.”

 

Discussão

Este estudo é, no melhor do nosso conhecimento, o primeiro a avaliar as representações sociais dos professores relativamente ao uso racional de medicamentos em Portugal. Os resultados devem ser interpretados à luz do contexto político e económico que enquadra o acesso a cuidados de saúde, e em particular a medicamentos, ao longo dos últimos anos, nomeadamente a acessibilidade às farmácias, a prescrição e consumo de medicamentos genéricos, as reestruturações na comparticipação de determinados medicamentos e as diversas pressões sociais, demográficas e económicas sobre o sistema de saúde (Pita, 2010). É necessário ainda valorizar estes achados tendo em conta o potencial para os professores modularem atitudes e comportamentos com impacto na saúde, e também as solicitações que lhes são efetivamente colocadas no âmbito da sua atividade profissional (Precioso, 2004). No entanto, a generalização teórica dos resultados exige uma análise sólida da literatura relevante produzida noutros contextos, junto de professores representativos do conjunto de pares com responsabilidade na educação para a saúde.

Para além de lacunas identificadas relativamente a conhecimentos específicos e da heterogeneidade de relatos acerca de questões essenciais no contexto do uso racional de medicamentos, nos discursos dos professores predominaram referências a conhecimento obtido empiricamente e baseado em experiências pessoais.

Os professores entrevistados perspetivaram os conceitos, práticas e resultados subjacentes ao uso racional de medicamentos essencialmente ao nível do indivíduo, raramente reconhecendo de forma explícita os determinantes e consequências relacionados com o funcionamento e regulação do setor do medicamento. O enfoque na importância das ações e conhecimentos individuais traduz provavelmente o reconhecimento da capacidade de populações cada vez mais escolarizadas assumirem responsabilidades no contexto da promoção de saúde, na prevenção de doenças e na gestão de problemas de saúde que não requerem intervenção médica (Sícoli e nascimento, 2003). Esta interpretação está de acordo com o reconhecimento dos conhecimentos específicos acerca das doenças e medicamentos, especialmente os últimos, como condições necessárias para um uso racional de medicamentos não sujeitos a receita médica, e é consistente com o facto de a maioria dos professores ter reconhecido não ser necessária a mediação de profissionais de saúde para um uso racional do medicamento nestas situações, ou de assumir que a sua intervenção neste processo se poderá limitar ao aconselhamento.

Estes resultados e interpretação estão em aparente contradição com o facto de a maioria dos professores ter referido como imprescindível a prescrição médica como um elemento essencial para o uso racional, em geral. Contudo, foi frequente a coexistência, nos mesmos discursos, de referências a medicamentos de prescrição médica obrigatória e de medicamentos não sujeitos a receita médica, legitimando diferentes posições acerca do papel dos diferentes profissionais de saúde como intermediários (Conrad, 2007). O mesmo se aplica aos obstáculos ao uso racional de medicamentos enunciados pelos professores, em que as referências à automedicação, ao acesso fácil a medicamentos, à falta de disponibilidade de tempo e financeira do doente refletem frequentemente a interpretação da automedicação enquanto estratégia ilegítima de contornar a necessidade de consultar um profissional de saúde ou de obter prescrição médica (Lopes, 2007).

Apesar de não haver referências explícitas ao conceito de automedicação responsável preconizado pela OMS, segundo o qual os indivíduos tratam as suas doenças ou sintomas autovalorizados, utilizando medicamentos não sujeitos a receita médica que são eficazes e seguros se utilizados de acordo com a sua finalidade (World Health Organization, 1998),

O discurso da maioria dos professores foi globalmente compatível como seu reconhecimento. Contudo, raramente foi demonstrado um domínio dos diversos conceitos subjacentes a esta prática, nem um discurso coerentemente organizado nessa base.

O acesso fácil aos medicamentos foi também apontado como um obstáculo ao seu uso racional, refletindo a perceção de que pode potenciar o consumo excessivo e/ou desnecessário de medicamentos e induzir a aquisição de medicamentos disponíveis de eficácia e segurança duvidosas. Esta visão enraíza-se na ideia de que os medicamentos são, hoje, bens acessíveis e de uso comum que podem condensar em si o saber médico e, como tal, dispensam muitas vezes a mediação profissional direta (Lopes, 2001).

A importância de diferentes dimensões da adesão à terapêutica foi referida por um menor número de professores, traduzindo provavelmente lacunas na sua formação específica a este respeito, ou a atribuição de uma menor importância a estes fatores numa hierarquia das condições necessárias que definem um uso racional de medicamentos. Tendo em conta que a falta de adesão à terapêutica se traduz em importantes desperdícios de recursos e muito frequentemente em prejuízos substanciais para os doentes (World Health Organization, 2003), importa sensibilizar os professores quanto à relevância da educação para a adesão à terapêutica no âmbito do uso racional de medicamentos.

A maioria dos professores referiu consumir medicamentos quase em último recurso, de acordo com a identificação da crença na exclusividade do medicamento como forma de tratar enquanto obstáculo ao uso racional do medicamento. Por outro lado, a referência ao sofrimento causado pela doença como fator determinante da decisão de tomar medicamentos pode refletir insegurança relativamente aos conhecimentos específicos e à capacidade de os traduzir em escolhas acertadas relativamente à opção pelos cuidados médicos mais adequados (Conrad, 2007).

Ainda relativamente aos obstáculos ao uso racional de medicamentos, os interesses comerciais ou corporativos foram referidos por menos de metade dos professores. Este resultado pode ser considerado surpreendente, tendo em conta que se tem observado uma transição no sentido de maior utilização de medicamentos genéricos em Portugal, a que se tem associado uma discussão dos méritos das medidas subjacentes a estas mudanças sob a perspetiva da indústria farmacêutica e das classes médica e farmacêutica (Figueiras ecol, 2007), com ampla visibilidade na comunicação social (Lusa, 2012). Atendendo a que um dos aspetos mais relevantes desta discussão tem gerado em torno da garantia da qualidade dos medicamentos genéricos, este debate pode terse traduzido na grande importância atribuída pelos professores à necessidade de fiscalização e controlo do setor do medicamento, em particular no caso dos medicamentos genéricos.

A educação para a saúde também foi vista como uma medida necessária no contexto do uso racional de medicamentos. A predominância de respostas defendendo a realização de campanhas de sensibilização e informação e o envolvimento dos profissionais da saúde está de acordo com a valorização dos conhecimentos específicos nesta área como condições essenciais para um uso racional. Os entrevistados mencionaram o contributo fundamental dos professores, sobretudo da área de Biologia, refletindo o facto de serem os docentes com este tipo de formação que mais frequentemente assumem estas responsabilidades no contexto das atividades estruturadas de educação para a saúde nas escolas (Figueiredo, 2008). Contudo, no âmbito do sistema de ensino português considera-se que a educação para a saúde no contexto escolar não é da exclusiva responsabilidade de professores de disciplinas específicas, mas implica um comprometimento de toda a comunidade.

Atendendo a que os professores se encontram numa posição privilegiada para modular as atitudes e os padrões de utilização de medicamentos, em diferentes contextos educativos e formativos, ao ministrar conteúdos programáticos inseridos no âmbito da saúde e da educação para a saúde, tornase pertinente disseminar junto destes profissionais conhecimentos específicos acerca de questões essenciais no contexto do uso racional de medicamentos, contribuindo para melhorar os níveis de literacia em saúde.

 

Referências

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Correspondencia:

Susana Silva

Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto e Faculdade de Medicina da Universidade do Porto.

Rua das Taipas, nº 135; 4050-600 Porto. E-mail: susilva@med.up.pt

 

Este trabalho foi financiado pela Fundação para a Ciência e a tecnologia no âmbito do projeto Informação sobre saúde da população portuguesa: Conhecimentos e qualidade percecionada das fontes de informação sobre saúde (HMSP-IISE/SAU-ICT/0004/2009).

 

Data de recepção / reception date: 19/12/2013

Data de aprovação / approval date: 06/01/2014

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