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Arquivos de Medicina

On-line version ISSN 2183-2447

Arq Med vol.28 no.2 Porto Apr. 2014

 

COMENTÁRIO

O internamento compulsivo e a representação da doença mental - percurso histórico

Sónia Soraia Dias Azenha1

 

1 Serviço de Psiquiatria, Hospital de Braga

 

Correspondência

 

RESUMO

Este artigo procura sensibilizar o leitor para as profundas mudanças nas formas de abordar a doença mental e o seu tratamento, nomeadamente o internamento, de acordo com a época e com o contexto social, cultural e científico. São apresentados elementos que se pretende serem ilustrativos de épocas importantes da história, nomeadamente a Antiguidade Clássica, a Idade Média, o Renascimento e a Idade Contemporânea. Procura-se fornecer dados acerca do pensamento em cada época, de factos históricos ou de autores que se debruçaram sobre a doença mental, dando especial ênfase à questão do papel do internamento como forma de contenção e tratamento da doença, bem como às condições a ele associadas, de acordo com a época. Finalmente é apresentada uma breve reflexão acerca do progresso e melhoria de cuidados na área da Saúde Mental, nomeadamente no que se relaciona com o internamento, sendo ainda abordadas as dificuldades que se constatam na mudança de serviços disponibilizados ao doente e suas famílias, de acordo com as necessidades actuais e com o desenvolvimento dos cuidados médicos.

Palavras-chave: internamento, doença mental, história

 

ABSTRACT

This article aims to alert the reader to the profound changes in approaches to mental illness and its treatment, including hospitalization, at different times of history according with the correspondent social, cultural and scientific contexts. It presents elements that are intended to illustrate important periods of history, namely the Classical Antiquity, the Middle Ages, the Renaissance and the Contemporary Age. It seeks to provide data about the thought of the time, of historical facts or authors who have studied mental illness, with particular emphasis on the question of the role of confinement as a mean of containing and treating the disease and conditions associated with it, according to historical period. Finally, we present a brief reflection on the progress and improvement of care in the field of mental health, particularly to what relates to the hospital admission. It also addresses the difficulties associated with the change in the services provided to patients and their families, according with current needs and the development of medical care.

Key-words: hospital admission, mental disease, history

 

1. A Grécia e Roma antigas

De acordo com o nosso legado histórico, é possível, desde o pensamento grego, encontrar raízes da atenuação da culpa em razão de doença mental, bem como alusões à figura do asilo como lugar de descanso e recuperação. Veja-se a lenda de Hércules. O semi-Deus é levado à loucura pela intervenção da Deusa Hera e mata a sua esposa e filhos. A loucura surge causada pela fúria divina, implicando actos não voluntários que poderiam ser purificados através do trabalho. Tal como é referido por Stavis, Hércules não é considerado culpado, dado que não estava capaz de discernir que os seus actos eram errados, nem capaz de adequar a sua conduta à lei. Assim, foi considerado que necessitaria de cuidados e aconselhamento.1 É na Grécia antiga, período em que não existia envolvimento científico na psiquiatria e o sofrimento psíquico era entendido em termos de magia, que encontramos a primeira explicação científica e natural do que é a doença. Surge, nesta época, uma visão naturalista e somática da doença e do tratamento, que imprimiu as suas marcas na evolução histórica e conceptual subsequente. Temos, como exemplo, a medicina hipocrática, cujo método continua presente na prática clínica e na filosofia. Hipócrates, na segunda metade do século V AC, considerava a doença mental como tendo origem orgânica e não via a magia, a religião ou a possessão demoníaca como formas de a explicar. Afirmava ainda a importância dos asilos e portanto do internamento, na recuperação do doente.1 Hipócrates, em “Da Natureza do Homem” trata da compreensão sobre a constituição do homem, onde apresenta a teoria dos quatro humores que considera o homem composto de sangue, fleuma, bile amarela e bile negra. Da sua harmonia resultaria a saúde, sendo a doença produto do excesso ou escassez de um desses humores ou ainda da falta de mistura entre eles no organismo. Hipócrates correlacionava as estações do ano com o comportamento dos humores e apontava para os riscos de desequilíbrio em cada uma das estações. A base do pensamento terapêutico girava, assim, em torno da busca do equilíbrio entre os humores e contemplava o asilo no processo de recuperação.2

Com base em aspectos anatomo-fisiológicos, Platão (429-347 a.C.) constrói a sua fisiopatologia, distinguindo as doenças do corpo e da alma. As enfermidades somáticas podiam ocorrer por: desequilíbrio dos seus elementos constitutivos, o fogo, a terra, o ar e a água; por corrupção dos tecidos do corpo, nomeadamente a carne, os nervos, o sangue, os ossos e a medula; e, finalmente, pelo ar e pelos humores, a bile e flegma.

Por seu turno as doenças da alma seriam, segundo Platão, designadas como demências e podiam ser de dois tipos: ignorância e loucura. Os excessos seriam deletérios, promovendo a loucura, doença passível de tratamento, mas não de censura para aquele que sofre. Uma outra origem para a loucura residia na produção de humores deletérios, bile e flegma, secundários à decomposição do corpo, os quais mesclavam seus vapores aos movimentos da alma, produzindo estados como a tristeza, audácia, cobardia e esquecimento. A ignorância teria a sua origem em dois aspectos: má constituição corporal e educação; que poderão ser vistos na medicina contemporânea como o caráter genotípico (constitutivo) e a influência ambiental. Assim, homens com deficiência somática e expostos a uma educação imprópria seriam propensos à ignorância. No entanto, se o processo educativo fosse adequado, era possível que tais homens superasssem a sua má constituição. Neste contexto, um dos elementos importantes para a compreensão da doença da alma platónica era o facto de esta ter origem somática.3 Platão ressalta a importância de se buscar a compreensão do todo e critica o uso de medicamentos para a contenção de doenças leves, as quais deveriam ser deixadas livres para seguir seu próprio curso, enfatizando que os fármacos deveriam ser empregues apenas nos casos mais graves, ou seja, naqueles em que existe grande perigo para o doente.3 Platão realiza uma leitura da medicina da sua época que se mantém extremamente actual e que vem tocar as questões hoje envolvidas no internamento compulsivo. São de salientar questões como: a relação entre homem e meio ambiente; a possibilidade de adoecimento psíquico por causas orgânicas e o tratamento que reservava apenas para os casos em que existia perigo para o próprio e para terceiros. O período, que coincide com o século IV a.C., conheceu outro grande autor: Aristóteles (384-322 a.C.). Este, na sua ética nicomaqueia, define o conceito legal do consentimento informado como as acções realizadas após informação, com racionalidade e sem coerção.1 Este conceito hoje é usado por nós no nosso enquadramento legal e na tomada de decisão quanto ao internamento ou tratamento involuntário, nomeadamente no que se refere à capacidade de receber e compreender a informação, avaliar os riscos e benefícios da decisão e ser livre de coacção. Na Grécia e Roma antigas, o cuidado dos doentes era essencialmente responsabilidade dos familiares e pessoas chegadas. No entanto Aristóteles afirmava dois poderes do governo perante a sociedade: por um lado o de proteger os cidadãos dos perigos e lesão e por outro o de proteger aqueles que necessitam de um cuidado de tipo parental.1 É interessante verificar que estes dois poderes estão na base da lei de Saúde Mental portuguesa, bem como de outros enquadramentos legais, como por exemplo na lei americana. Ainda no Século II AC, mas em Roma, Sorano de Éfeso referia que a doença resultava de um desiquilíbrio dos átomos que constituem o corpo e se encontram sempre em movimento. As suas recomendações para o tratamento em regime de internamento da doença mental eram mais avançadas do que algumas daquelas empregues centenas de anos mais tarde. Ele advogava a existência de quartos com condições de luz e temperatura confortáveis, em pisos térreos para evitar o suicídio, exercício regular, o uso de medidas de contenção apenas se necessário e com materiais como a lã ou outros de textura suave para evitar lesões. Defendia ainda a comunicação com o doente, não só com propósito terapêutico mas também como forma de avaliar a progressão da doença.1 Por seu turno, o médico Galeno (131-200 d.C.) de Pérgamo, defendeu a teoria de que o cérebro é sede de funções psíquicas, sendo a loucura e o delírio abordados segundo uma perspectiva neuroanatómica e neurofisiológica.4

 

2. A Idade Média

Entre os séculos IV e XI, as actividades intelectuais ficam quase reduzidas às cópias de manuscritos nos mosteiros e a tópicos religiosos. Durante os primeiros cinco séculos da Idade Média, a loucura era bem aceite e bem tolerada. Assim, o doente não era excluído e o enclausuramento que poderíamos aproximar ao cuidado em internamento compulsivo, era pouco usado. A noção de colectividade era importante e os doentes mentais eram aceites e colocados em segurança. Era uma oportunidade dos mais afortunados fazerem caridade, pelo que cada Senhor acolhia um inocente (louco). No que se refere a medidas compulsivas, apenas os mais perigosos eram acorrentados no seu domicílio ou nas prisões. Nesse período, sob a influência do cristianismo, acreditava-se que o mundo era um todo organizado de acordo com os desígnios de Deus. Por isso, tudo e todos obedeciam à ordem divina. Os insanos, assim como os retardados e os miseráveis, eram considerados parte da sociedade e o principal alvo da caridade dos mais abastados, que procuravam, deste modo, expiar seus pecados. Assim, os loucos desfrutavam de relativa liberdade. As suas famílias confiavam na caridade alheia para garantir a sobrevivência dos seus filhos e aceitavam os seus impulsos e características peculiares como expressão da vontade de Deus.5 Até ao século XII o ensino da medicina era não clerical e o jovem aprendia com o seu mestre. no século XII volta a haver mais actividade na Europa e à medida que a Igreja começa a ganhar mais preponderância este ensino também passa a ser ministrado nos mosteiros, integrando uma visão dos métodos de tratamento naturais, baseados nas traduções dos escritos de Hipócrates e Galeno. no entanto, neste período a medicina popular era marcada por uma grande carga de superstição. O que de facto era inevitável, dada a eficácia limitada da medicina naquela época. A doença mental era encarada e tratada de forma semelhante à doença física e a demonologia não era a visão preponderante no pensamento da época.6 Portanto, na Idade Média, para além dos dois principais sistemas de conhecimento que eram a fé cristã e o empirismo aristotélico, não nos podemos esquecer da sabedoria popular. O empirismo incorporou a tradição científica grega, a teoria humoral da fisiologia humana na tradição de Hipócrates e Galeno, bem como os comentários científicos de Aristóteles. Por outro lado, o saber popular era influenciado pelas tradições místicas, pela superstição, pela mitologia pagã e pela astrologia.6 Assim, a explicação para a doença mental era impregnada de uma concepção mágico-religiosa. Os doentes com distúrbios mentais mais graves ou agressivos eram flagelados, acorrentados, escorraçados e submetidos a jejuns prolongados, sob a alegação de estarem “possuídos pelos demónios”.5 Os doentes eram confinados a zonas da casa ou a celas e quando a família não era capaz de providenciar os cuidados, tal era feito pela autoridade. Era feito um diagnóstico das circunstâncias sociais de cada caso através de um conjunto de pessoas que contemplava um júri local, as partes interessadas e o doente. Os melhores interesses do doente eram a preocupação principal e a decisão acerca dos casos, nomeadamente no que se referia ao cuidado do doente e ao seu património, tinha valor legal.7 no que se refere aos cuidados em internamento, é difícil determinar quando é que o conceito de hospício medieval, para o cuidado dos peregrinos e estrangeiros, foi alargado para o de hospital para cuidados médicos e tratamento dos doentes. Poucos hospitais existiriam antes do fervor religioso que acompanhou as cruzadas e as necessidades criadas junto dos feridos e dos problemas médicos que surgiam no contexto das peregrinações em massa.6 À medida que a população europeia começa a aumentar, com o crescimento comercial e industrial das cidades, o cuidado dos doentes mentais mudou gradualmente de um problema familiar para um problema da comunidade. Neste contexto surgem alas específicas para estes doentes nos hospitais.

Os primeiros hospitais especificamente desenhados para doentes mentais surgem no século XV; na Europa, o primeiro nasce em Valência, Espanha.6

 

3. O Renascimento

No Renascimento a doença mental foi encarada como alienação, diminuição, depravação ou perda de função mental. Os cuidados prestados passavam pela exclusão social. Os doentes eram fechados em celas e calabouços ou enviados em embarcações.4 no entanto, a obsessão pela demonologia e a inclusão de pessoas mentalmente perturbadas nas torturas e inquéritos das inquisições foi um fenómeno do Renascimento. A Inquisição foi formalmente estabelecida pelo papa Gregório IX em 1233 para combater a heresia organizada, não a bruxaria. Em 1252 foi aprovado o uso da tortura para obter confissões. Mas foi nos séculos XV e XVI que a preocupação pela bruxaria e demonologia foi aumentando lentamente, deixando de estar presente apenas no pensamento secular e passando também para o religioso. Tal fenómeno surge como uma resposta das estruturas do Estado e da Igreja aos desenvolvimentos da ciência, da economia e da política. Assim, lidavam com a dissidência como heresia e a bruxaria, como inspiração do demónio.6 O internamento compulsivo desenvolve-se, na Europa, como política governamental no século XVI, não só para a doença mental mas também para aqueles que eram considerados indesejáveis pela sociedade. Em 1536 o Parlamento de Paris decidia pelo trabalho forçado de camponeses, indigentes e pedintes. Em 1575 o Governo Inglês usava como castigo as casas de correcção e em 1606 um decreto permitia que os pedintes fossem expulsos da cidade e a sua entrada proibida por arqueiros à porta da cidade. Em 1656, com luís XIII, verifica-se uma mudança na assistência aos mais necessitados. Este monarca cria o Hospital Geral em Paris para ajudar os pobres, os feridos, os militares e os doentes, mas sem qualquer supervisão pelos tribunais ou corpo governamental. Apesar de tudo foi uma mudança nos cuidados e uma responsabilização do Estado pelos seus cidadãos, embora eles tivessem que trabalhar para isso.

Na segunda metade do século XVII e durante o século XVIII, em Inglaterra, criam-se várias casas de correcção. Estas instituições destinavam-se a pessoas com doença mental, a pobres, a desempregados, a pessoas com comportamentos sociais desviantes e a doentes físicos. Neste período a doença mental era encarada à luz de uma “teoria animalista”, achando que os doentes não sentiam, dor, frio ou castigo severo. Assim as celas eram semelhantes às dos animais. Muitas vezes cheias de gente, sem roupa. Era comum, em Inglaterra e França, que as famílias fossem ver, ao domingo, pelas janelas o comportamento destas pessoas. Na América colonial a situação não era muito diferente e o cuidado dos indigentes ou incompetentes não era considerado responsabilidade do governo. Muitas vezes essas pessoas juntavam-se em bandos e vagueavam de cidade em cidade. A responsabilidade pelos doentes mentais só terá sido aceite pelo governo e pela sociedade em meados do século XVIII, através do cuidado aos doentes nos hospitais gerais.1 O fenómeno de internamento em massa dos doentes mentais ocorreu, portanto, a partir do século XVII. nesta altura, os hospitais existentes na Europa prestavam cuidados aos doentes mentais de uma forma bem menos digna do que os da Idade Média.6 no que diz respeito aos tratamentos vigentes nesta época, o exorcismo, a fogueira e a prisão dos enfermos, junto com os criminosos, eram formas de tratamento e contenção admitidas pela sociedade.8 Na medicina do Renascimento, verifica-se uma atitude de rebelião contra a autoridade tradicional, sendo a Igreja atacada e reformada. A era do renascimento, com a noção de separação da religião e da ciência, leva a que a doença mental deixe de ser considerada como uma possessão demoníaca e esteja aberta à concepção da psicologia. Nos séculos XVII e XVIII verifica-se o aumento da confiança na razão em detrimento da tradição e da fé.9

 

4. A Idade contemporânea

Na Idade contemporânea, com Pinel, surge um modelo de doença mental. Para ele o louco, como qualquer doente, necessitava de cuidados, de apoio e de medicamentos.4 O trabalho de Pinel no final do século XVIII vai sinalizar a constituição da psiquiatria como uma ciência e como um ramo da medicina. Surgem, na Europa, nos séculos XVIII e XIX, ideias revolucionárias e reformistas que procuravam entender o homem nas suas dimensões física, psíquica e social e o humano nas vertentes ética, estética e cultural.10 neste contexto, as pessoas com doença mental passam a ocupar instalações diferentes das dos outros residentes no asilo. no nosso país, em 1601, aquando da reconstrução do Hospital de Todos os Santos, foram criadas instalações especificamente para os doentes mentais. Em 1766, o hospital do Rossio dispunha de uma enfermaria para os alienados.4 Em Portugal, na primeira metade do século XIX, os relatos acerca das condições de vida dos doentes mentais nos grandes hospitais, como o de S. José em lisboa e Santo António no Porto, denunciam a falta de higiene e asseio pessoal, a ausência de luz, mobiliário e ventilação nos quartos.10 Até esta altura, como refere Carlos Mota Cardoso, os enfermos da mente ainda não tinham adquirido o estatuto de doentes. O século XIX foi uma época decisiva para o desenvolvimento da psiquiatria. neste século podemos ver a psiquiatria desenvolverse ao longo das linhas que governam a patologia geral na medicina.9 Em Portugal, o Hospital de Rilhafoles, inaugurado em lisboa, no século XIX, recebia pessoas por ordem das autoridades, decência, ordem e segurança pública. Admitia ainda aqueles que beneficiavam de adequado tratamento. Ao longo dos anos o hospital foi ficando sobrelotado,4 neste período usava-se o internamento de forma involuntária para tratamento mas também por questões de ordem social e moral. na segunda metade do século XIX, após a guerra civil e as invasões francesas, apesar do grande desenvolvimento de diversos sectores da vida pública, no que diz respeito ao campo assistencial, pouco ou nada mudara, mantendo-se um modelo assistencial caritativo. Em Portugal, em 1848 abre em lisboa o Hospital de Rilhafoles e por ordem de D. Maria e em 1883, no Porto, por doação do Conde Ferreira à Santa Casa da Misericórdia do Porto, abre as suas portas o Hospital do Conde de Ferreira. António Maria de Sena, director deste último hospital, procura elaborar um levantamento estatístico dos doentes da mente em Portugal e dedica-se à criação de um sistema de assistência psiquiátrica.10 Como nos transmite Carlos Mota Cardoso, Sena era um evolucionista, que aceitava a loucura como resultante do desvio de processos biológicos, nomeadamente de alterações genéticas e considerava formas de loucura congénitas e adquiridas. Nesta altura, nascia na Alemanha pelo génio de Kraeplin a ciência psiquiátrica e, em Portugal, Sena reclamava a reforma da assistência psiquiátrica, advogando o fim das más condições nas instituições que prestavam assistência aos doentes. Sena debruça-se sobre a questão medico-forense e apresenta uma profunda preocupação pela justiça. Como refere Carlos Mota Cardoso, “Floria nos seus sonhos o primeiro esquiço que haveria de conduzir ao desenho final da futura lei de saúde mental, a conhecida lei Sena.” O seu projecto de lei visava criar novos hospitais e asilos de alienados. Este era um dos diplomas regulamentares mais progressistas da assistência psiquiátrica de toda a Europa. No entanto a lei Sena nunca foi regulamentada na íntegra, apesar dos seus méritos terem governado o país psiquiátrico até aos anos 60.10 Por volta de 1950, com o aparecimento dos neurolépticos, a ciência comportamental e a integração dos avanços na bioquímica e na fisiologia do sistema nervoso central, verifica-se uma redefinição do papel dos hospitais e dos asilos, e uma transformação completa da psiquiatria. Com o aparecimento da ideia de comunidade terapêutica e terapia institucional, os movimentos para humanização do hospital emergiram. As equipas psiquiátricas começaram a mudar e a importância do doente aumenta, em detrimento da doença.9 A lei que primariamente se debruçou sobre a promoção da saúde mental e regulamentou o Internamento Compulsivo do portador de anomalia psíquica em Portugal, data de 1963 (lei n.º 2118/63 de 3 de Abril) e vigorou no nosso país durante 35 anos.11 A lei colocava a tónica na intervenção na comunidade. Os centros de saúde mental tinham começado a ser implementados em 1968. As críticas mais importantes a esta lei são, por um lado, o fato de os doentes crónicos, sem recursos, acabarem por ser admitidos em lares de terceira idade ou para deficientes com piores condições que os antigos hospitais psiquiátricos. Por outro lado, a proibição de internamentos prolongados levava ao florescimento de hospitais privados a que só tinham acesso as classes mais ricas. Além disso, por muito que se desenvolvesse a rede comunitária, esta nunca seria capaz de dar resposta aos doentes mais dependentes.12 Na segunda metade do século vinte emerge novamente a tendência à desinstitucionalização e o devolver o doente à família e à comunidade. Tal objectivo continua a ser difícil de concretizar, quer por dificuldade de organização dos cuidados na comunidade, quer pelas deficientes redes de apoio na sociedade. Em Portugal ficou legislada, com a revisão da Constituição da República em 1997, a possibilidade de privar alguém da sua liberdade, caso esse alguém seja portador de anomalia psíquica. Esta modificação permitiu que, em 1998, se criasse a lei de saúde mental que concretiza essa privação da liberdade. Em 1998, foi aprovada e publicada a nova lei de Saúde Mental (lei n.º 36/98, de 24 de Julho). Assim, em Portugal, as medidas compulsivas podem tomar duas formas: o internamento e o tratamento ambulatório compulsivos. O internamento é possível, para proteger terceiros, para proteger o próprio ou para aqueles que necessitam tratamento e o recusam, não estando capazes de avaliar essa necessidade.13 Há que reconhecer que a corrente individualista trouxe, apesar dos seus exageros, contribuições muito positivas para a vida social, tais como a formulação política dos direitos humanos básicos, o fim da escravatura, a emancipação dos jovens e da mulher. Já no séc. XX vimos reconhecidos valores tão importantes quanto os direitos das minorias, da intimidade da vida privada, e do respeito pelas concepções e crenças das pessoas. Na psiquiatria, estas conquistas culturais reflectem-se no movimento a favor dos direitos dos doentes, na rejeição de formas de tratamento cruel ou degradante, na procura de consentimento voluntário. É evidente que nem sempre o doente está em condições de exprimir o seu acordo com as medidas terapêuticas, mas a tendência actual é para limitar as condições para tratamento coercivo, e respeitar os valores do doente e de n ão interferir com as suas decisões.14 neste contexto, a actividade profissional do psiquiatra tem vindo a mudar, quer na relação com os doentes, quer na relação com a sociedade. O reconhecimento do direito constitucional à protecção da saúde, uma crescente sensibilidade para exigir níveis assistenciais de qualidade, bem como o reconhecimento da autonomia do doente mental perante as ofertas terapêuticas contribuíram para uma mudança importante na prestação de cuidados. As disposições actuais, na área da psiquiatria e da bioética vão no sentido da necessidade dos psiquiatras conhecerem e aplicarem a legislação própria, de acordo com as exigências éticas específicas desta área da medicina. Actualmente a reflexão bioética, concretizada através dos princípios éticos e sua aplicação, evidenciada em diversas iniciativas e documentos do Comité de Bioética do Conselho da Europa ou através de diferentes planos de acção e políticas da Organização Mundial de Saúde, tem vindo a consolidar a importância e a defesa dos direitos dos doentes. De facto os princípios bioéticos estão hoje concretizados em normas e disposições legais com a capacidade de obrigar.

 

5. Comentário final

Deste percurso histórico sobressai uma mudança nas formas de encarar, explicar e tratar a doença mental, de acordo com a época e o contexto social, cultural e científico. Como refere Eurico Figueiredo, a Psiquiatria constitui, de entre todas as especialidades médicas, aquela cujos processos terapêuticos têm sofrido, nos últimos anos, modificações mais espectaculares. Poderemos atribuir tal situação a três tipos de pressupostos considerados essenciais: o primeiro está ligado às características especiais da doença psíquica, em cuja sintomatologia predominam, as mais das vezes, os aspectos subjectivos; o segundo diz respeito ao seu estigma de prejuízo social, por virtude da sua causalidade ser controversa e não raramente, impregnada de conceitos de misticismo;

O terceiro e último, resulta do facto de a Psiquiatria ter chegado até aos fins do século XIX sem a tradição clínica dos demais sectores da medicina.15 As mudanças operadas ao longo da História reflectem-se, actualmente, em aspectos relacionados com a forma de tratar e abordar a doença mental. Os diferentes países têm vindo a tentar regulamentar a prestação de cuidados em saúde mental, nomeadamente no que se refere aos internamentos. São feitas recomendações quanto à duração e condições de internamento, aos critérios que motivam o seu início e o seu fim, bem como à necessidade de usar mecanismos legais que permitam assegurar a protecção dos direitos do doente. Procura-se também permitir à sociedade e familiares ajudar aqueles que se encontram vulneráveis, sem capacidade para avaliar as consequências dos seus actos ou da necessidade de tratamento, se esse facto evitar danos ao próprio ou terceiros ou a deterioração do estado de saúde de forma acentuada, como refere a nossa lei. De facto, muito foi conseguido em matéria da saúde mental e é indiscutível o progresso feito no cuidado dos doentes. no nosso país foram diminuídas as camas de internamentos prolongados e tentada a integração dos doentes na comunidade, sendo os internamentos realizados para o controlo de sintomas agudos, nos hospitais gerais, em enfermarias que dispõem de condições equivalentes às de qualquer outra especialidade. no entanto, o cuidado na comunidade do doente mental, hoje em dia, é uma questão complexa. O suporte da comunidade a nível familiar e social tem de ser complementado com o fornecimento de cuidados especializados por técnicos de saúde, nomeadamente médicos, enfermeiros, psicólogos e assistentes sociais. Em consequência, embora já não estejam confinadas ao hospital, as pessoas com doença mental mantêm-se largamente marginalizadas numa sociedade que não tem os recursos para assumir a responsabilidade pelo seu cuidado.7 Para além disso, toda a mudança que se pede às famílias e à sociedade que vai no sentido da integração do doente, leva-nos a questionar o facto de não existirem efectivamente condições para que os doentes se possam manter realmente integrados, com o suporte adequado e protegidos na sua vulnerabilidade. Perante uma sociedade orientada para os resultados rápidos, para a valorização do ser humano de acordo com a sua produtividade, o individualismo e o enfraquecimento dos laços familiares e do sentimento de pertença a uma comunidade, quase parece um paradoxo advogar a integração do doente no seio familiar e social.

 

Referências

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Correspondencia:

Sónia Soraia Dias Azenha

Serviço de Psiquiatria, Hospital de Braga Sete Fontes – São Victor, 4710-243 Braga ssd.azenha@gmail.com

 

Data de recepção / reception date: 26/01/2013

Data de aprovação / approval date: 26/08/2013

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