SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.25 número2Estrongiloidíase Disseminada e Íleo Paralítico em doente com infecção VIHEvolução do Pré-Termo com Displasia Broncopulmonar índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Arquivos de Medicina

versão On-line ISSN 2183-2447

Arq Med vol.25 no.2 Porto abr. 2011

 

CASOS CLÍNICOS/ SÉRIE DE CASOS

Síndrome de Fisher-Bickerstaff

Fisher-Bickerstaff syndrome

Sabrina Pimentel1, Amélia Mendes 2, 3, João Massano 2, 3, Francisco Pires1

 

1Serviço de Medicina Física e de Reabilitação do Hospital de São João

2Serviço de Neurologia do Hospital de São João

3Faculdade de Medicina da Universidade do Porto

 

Correspondência

 

RESUMO

A síndrome de Fisher (caracterizada por oftalmoplegia, ataxia e arreflexia) e a encefalite de Bickerstaff (caracterizada por oftalmoplegia, ataxia e alterações do estado de consciência) têm características clínicas e fisiopatológicas comuns, podendo ser difíceis de separar clinicamente, daí a proposta recente do termo “síndrome de Fisher-Bickerstaff”. Um programa adequado de reabilitação multidisciplinar é fundamental nesta síndrome, visando auxiliar na regressão dos sintomas, prevenir as complicações da doença e compensar os défices funcionais. Deve ser iniciado precocemente, logo que as condições clínicas o permitam. Os autores descrevem um caso clínico de síndrome de Fisher-Bickerstaff, discutem as características clínicas, evolução e tratamento e realçam a importância duma colaboração estreita entre a Neurologia e a Medicina Física e de Reabilitação.

Palavras-chave: encefalite de Bickerstaff, síndrome de Fisher-Bickerstaff, síndrome de Miller Fisher, reabilitação

 

ABSTRACT

Fisher syndrome (characterized by ophthalmoplegia, ataxia and areflexia) and Bickerstaff encephalitis (characterized by ophthalmoplegia, ataxia and impaired consciousness) have clinical and pathophysiological features that overlap and may be difficult to distinguish clinically, hence the recent proposal of the term Fisher-Bickerstaff syndrome. An adequate multidisciplinary rehabilitation program is fundamental in this syndrome and it intends to contribute to symptom regression, to prevent complications of the disease and to compensate any functional deficits. it should be initiated early, as soon as the clinical situation allows it. The authors describe a case report of Fisher-Bickerstaff syndrome, discuss its clinical features, course and treatment, and highlight the importance of a close collaboration between Neurology and Physical and Rehabilitation Medicine.

Key-words: bickerstaff encephalitis, fisher-bickerstaff syndrome, miller fisher syndrome, rehabilitation

 

Introdução

A síndrome de Fisher (SF) é uma doença caracterizada pela tríade clínica de oftalmoplegia, ataxia e arreflexia de evolução aguda1,2,3, cujas características clínicas se sobrepõem em muitos casos à encefalite de Bickerstaff (EB), a qual se caracteriza por oftalmoplegia, ataxia e alterações do estado de consciência1,2,4. Estas duas entidades clínicas parecem ter uma fisiopatologia comum: auto-imune, com associação aos anticorpos anti-GQ1b e à infecção precedente por Campylobacterjejuni1,2. É frequente haver sobreposição de características clínicas das duas situações e tanto numa como noutra podem surgir alterações sugestivas de síndrome de Guillain-Barré1,2,4, podendo haver casos de classificação complexa. A SF e a EB parecem ser entidades auto-imunes, de etiopatogenia comum,dentro do mesmo espectro clínico e que podem afectar de forma variável o sistema nervoso central e periférico – por estas razões tem sido proposta uma designação global nosológica de síndrome de Fisher-Bickerstaff situações sugestivas de SF, EB ou de classificação indeterminada1,2,4.

Os autores descrevem um caso clínico de síndrome de Fisher-Bickerstaff e discutem as suas características clínicas, evolução e tratamento.

 

Caso clínico

Doente do sexo masculino de 61 anos de idade. Antecedentes: doença vascular cerebral (AVC hemorrágico em 2005, sem sequelas), enfarte agudo de miocárdio (em 1995), hipertensão arterial, diabetes mellitus tipo 2, dislipidemia e tabagismo. Valor prévio na escala de Rankin modificada: 1.

Em Julho de 2010, iniciou, de modo súbito, disartria, sem outros sintomas. Foi observado no serviço de Urgência, onde não se objectivaram outras alterações ao exame neurológico e onde foi submetido a TAC cerebral, que revelou lacunas nos núcleos da base, provável lesão sequelar de hemorragia na região lentículo-capsular à esquerda, leucoencefalopatia isquémica de predomínio frontal e atrofia córtico-subcortical. Foi internado com a suspeita de AVC isquémico agudo. Subsequentemente, ao longo de uma semana, sofreu agravamento neurológico progressivo com instalação de oftalmoparésia (limitação na abdução, supraversão e infraversão; sem diplopia), parésia facial periférica bilateral, anartria, disfagia, alterações na mobilidade da língua e do palato e ataxia. Não tinha alterações dos reflexos ósteo-tendinosos nem défices sensitivos ou motores nos membros.

Para esclarecimento etiológico deste quadro, realizou: -eco-doppler cervical e transcraniano: placas ateroscleróticas junto à bifurcação das carótidas comuns e início da interna direita, sem estenoses significativas (20-25% à esquerda e 25-30% à direita). Artérias vertebrais e basilar com fluxos sanguíneos conservados. Sinais hemodinâmicos compatíveis com estenoses superiores a 50% na cerebral posterior esquerda (porção P2) e na porção terminal da carótida interna direita e inferior a 50% na cerebral média direita. -RMN cerebral (Figura 1): lesão isquémica recente na coroa radiada esquerda; lesões isquémicas não recentes nos gânglios da base à direita e em ambas as coroas radiadas e cápsulas externas; leucoencefalopatia isquémica. Em T2 e FLAIR, observou-se hipersinal focal na ponte de isquemia crónica de pequenos vasos, mas sem enfarte franco. As sequências de angio-RM do polígono de Willis mostraram alterações consistentes com as demonstradas pelo eco-Doppler. -exame do LCR: proteínas elevadas (0,86 g/l), 10 células µ/l, representando ligeira dissociação albumino-citológica.

Perante estes exames auxiliares de diagnóstico, foi colocada a hipótese de poder tratar-se de um status pseudo bulbar precipitado pelo aparecimento de nova lesão isquémica (coroa radiada esquerda). Foram ainda ponderados diagnósticos alternativos: síndrome de Fisher-Bickerstaff, botulismo ou miastenia gravis (embora estas duas últimas hipóteses de diagnóstico parecessem menos prováveis, pelo enquadramento clínicoe epidemiológico).

Da investigação etiológica, adicionalmente efectuada, salientam-se:

    • electromiografia, estudos de condução nervosa dos membros e estudo de estimulação repetitiva 10 dias após início dos sintomas: sem evidência electrofisiológica de neuropatia periférica ou sinais de disfunção da placa motora;

    • estudo imunológico: sem alterações; negativo para anticorpo anti-GQ1b;

    • serologia de Campylobacter jejuni no soro: igG negativa, igMpositiva. Foi ainda repetida a RMN cerebral com contraste endovenoso, 20 dias após o início dos sintomas, que não mostrou alterações de novo. especificamente, não foram detectadas alterações morfológicas ou de sinal na região infratentorial e pares cranianos baixos. tendo em conta estes resultados, a síndrome de Fisher-Bickerstaff tornou-se a mais provável das hipóteses de diagnóstico sugeridas. Entretanto, o doente iniciou um programa diário de Fisioterapia, bem como de terapia da Fala. Dado o contexto de doença auto-imune, foi introduzida terapêutica com imunoglobulinas intravenosas.

Gradualmente, o doente recuperou dos défices neurológicos (primeiro, movimentos oculares; depois, sintomas bulbares e ataxia, por esta ordem). À data da alta hospitalar (62 dias após início dos sintomas),o doente não tinha limitação dos movimentos oculares, parésia facial ou disfagia. Apresentava disartria e disfonia, assim como ataxia ligeira do tronco e da marcha, sendo capaz de realizar marcha autónoma, sem auxiliares. Pontuava 3 na escala de Rankin modificada.

Os diagnósticos finais foram: síndrome de Fisher-Bickerstaff, sem anticorpo anti-GQ1b, provavelmente secundária a infecção por Campylobacter jejuni e AVC isquémico lacunar do território da artéria cerebralmédia esquerda coincidente.

 

Discussão

A síndrome de Fisher-Bickerstaff cursa tipicamente com dissociação albumino-citológica2,3 e positividade para o auto-anticorpo anti-GQ1b2 (em 85% dos casos5,6). Na maioria dos doentes, os estudos imagiológicos não revelam alterações específicas2, tal como no doente que apresentámos. Porém, em alguns, a RMN demonstra alterações no mesencéfalo, cerebelo ou pedúnculo cerebeloso médio7, que geralmente surgem hiperintensas em T2 ou, mais comummente, como áreas captantes de contraste em T12. O diagnóstico diferencial inclui uma lesão aguda do tronco cerebral, principalmente encefalite do tronco3. Na síndrome de Fisher-Bickerstaff, o sintoma inicial mais frequente é a diplopia, seguida de perturbações da marcha7. Sintomas de apresentação menos comuns incluem parésia facial, ptose palpebral, fraqueza muscular dos membros, disfagia, fotofobia, hipovisão, tonturas e cefaleias2. Neste doente, os sintomas de apresentação foram disartria e parésia facial. A oftalmoplegia é o achado mais prevalente e consistente na fase aguda da doença19, sendo, na maioria dos doentes, bilateral e relativamente simétrica2. A ataxia pode ser bastante severa, originando uma perturbação da marcha; asua patogénese ainda não está completamente estabelecida, acreditando-se que possam estar implicados mecanismos periféricos (proprioceptivos) e centrais (cerebelosos)2. A maioria dos doentes recupera de forma espontânea e completa dentro de 2 a 3 meses após o início da doença2. O tempo médio desde o começo dos sintomas neurológicos até o início da recuperação é 12 dias para a ataxia e 15 para a oftalmoplegia. O tempo médio para a resolução completada a taxia é de 1 mês e de 3 meses para a oftalmoplegia. Aos 6 meses após o início da doença, os doentes não apresentam normalmente limitações significativas na actividade. A rapidez de recuperação é independente da idade do doente, sexo, evidência de infecção precedente, grau de incapacidade no pico da doença ou tempo de latência até ao pico8. O tratamento com imunoglobulinas intravenosas não tem habitualmente efeito no resultado global, provavelmente porque os doentes tipicamente têm uma boa recuperação espontânea9. É difícil estabelecer uma relação directa entre a recuperação neurológica deste doente e a aplicação da imunoglobulina, não se podendo, contudo, excluir a sua contribuição. Um programa adequado de reabilitação multidisciplinar é fundamental, sendo mais importante do que a imunoterapia. O programa de reabilitação tem como objectivos auxiliar na regressão dos sintomas, prevenir as complicações da doença e compensar os défices funcionais e deve ser começado numa fase precoce da doença, assim que a situação clínica o permita. Na fase aguda, a intervenção da Medicina Física e de Reabilitação (seja através de Fisioterapia ou terapia da Fala) visa a prevenção e o tratamento de complicações, muitas das quais associadas à imobilidade: retracções músculo-tendinosas, fenómenos tromboembólicos, complicações respiratórias (atelectasias, infecções respiratórias), úlceras de pressão, úlceras de córnea (sequelares a não encerramento palpebral completo), disfunção autonómica e problemas de deglutição. Posteriormente, visa o tratamento do défice motor (parésia facial), ataxia, anartria e disfagia10. No caso do doente descrito, o prognóstico funcional está agravado pela concomitância de doença vascular cerebral marcada. O caso acima descrito realça ainda a importância de uma colaboração estreita entre a Neurologia e a Medicina Física e de Reabilitação.

 

Referências

1. Yuki N. Fisher syndrome and Bickerstaff brainstem encephalitis (Fisher-Bickerstaff syndrome). J Neuroimmunol 2009; 215: 1-9.         [ Links ]

2. Snyder LA, Rismondo V, Miller N. The Fisher Variant of Guillain-Barré Syndrome (Fisher Syndrome). J Neuro-Ophthalmol 2009; 29: 312-24.         [ Links ]

3. Hughes RA, Cornblath DR. Guillain-Barré Syndrome. The Lancet 2005; 366: 1653-66.         [ Links ]

4. Odaka M, Yuki N, Yamada M et al.Bickerstaff brainstem encephalitis: clinical features of 62 cases and a subgroup associated with Guillain-Barré syndrome. Brain 2003; 126: 2279-90.         [ Links ]

5. Chiba A, Kusunoki S, Shimizu T et al. Serum IgG antibody to ganglioside GQ1b is a possible marker of Miller Fisher syndrome. Ann Neurol 1992; 31: 677-9.         [ Links ]

6. Nishimoto Y, Odaka M, Hirata K et al. Usefulness of anti-GQ1b IgG antibody testing in Fisher syndrome compared with cerebrospinal fluid examination. J Neuroimmunol 2004; 148: 200-5.         [ Links ]

7. Ito M, Kuwabara S, Odaka M, et al. Bickerstaff brainstem encephalitis and Fisher syndrome form a continuous spectrum: clinical analysis of 581 cases. J Neurol 2008; 255: 674-82.         [ Links ]

8. Mori M, Kuwabara S, Fukutake T et al. Clinical features and prognosis of Miller Fisher syndrome. Neurology 2001; 56: 1104-6.         [ Links ]

9. Mori M, Kuwabara S, Fukutake T et al. Intravenous immunoglobulin therapy for Miller Fisher syndrome. Neurology 2007; 68: 1144-6.         [ Links ]

10. Salle JY, Guinvarc’h S, Munoz M, Cresson G, Dauriac S, Sombardie T, Dudognon PJ, Labrousse CL . Principios de rehabilitación del síndrome de Guillain-Barré, de polirradiculopatías y polineuropatías. In Enciclopedia Médico-Quirúrgica Kine 2008.         [ Links ]

 

Correspondencia:

Sabrina Pimentel

Serviço de Medicina Física e de Reabilitação, Hospital São João, Al. Prof. Hernâni Monteiro, 4200-319 Porto. Email: pimentel.sc@gmail.com

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons