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Arquivos de Medicina

On-line version ISSN 2183-2447

Arq Med vol.24 no.6 Porto Dec. 2010

 

COMENTÁRIO

O Paradoxo Moçambicano

1Ana Cláudia Carvalho

 

1Serviço de Doenças Infecciosas, Hospital de São João, Porto Serviço de Higiene e Epidemologia, Faculdade de Medicina da Universidade do Porto

 

Correspondência

 

Vais adorar! Era o que me diziam todos com quem falei antes de ir para Moçambique e que já lá tinham estado.Vais adorar! Impressionava-me a certeza indubitável com que o afirmavam, a mesma que esperaria sentir se em vez disso dissessem: o mar é salgado. Assim, verdade inquestionável. Parti tranquilizada e, achava eu, pronta para o que iria encontrar. Os meses de preparação teórica em saúde internacional e doenças tropicais que tinha feito pouco antes no ITM (Prince Leopold Institute ofTropical Medicine) em Antuérpia deram-me uma segurança adicional e entrei no avião como se também eu tivesse asas.

Sabia que Moçambique era ainda um dos países mais pobres do mundo; sabia que o ratio médico/habitante era um dos mais baixos do mundo; sabia que a prevalência da infecção pelo VIH era uma das mais altas do mundo. Sabia isso e mais ainda, conhecimento transformado em números.

Mas o primeiro dia bastou para perceber que essa matemática de pouco me servia. A terreino solo, voo abortado. Os números não contavam a história da pobreza que se vestia de buracos na roupa, da pobreza que comia no chão e dormia na terra sem almofada, da pobreza que caminhava todos os dias descalça. Os números não explicavam como é que é possível fazer medicina com um médico por distrito, e é, transferindo tarefas para enfermeiros ou técnicos e agentes de medicina formados ao longo de um a quatro anos. São eles que asseguram a prestação de cuidados nos postos de saúde periféricos e são eles que nos centros de saúde e hospitais distritais observam a maioria dos doentes, seja nas consultas, no banco de socorros ou nas enfermarias. Os números não explicavam como é possível trabalhar num hospital onde o abastecimento de água é irregular, onde os fármacos disponíveis se contam pelos dedos e os meios auxiliares de diagnósticos se resumem à determinação de hematócrito, aos exames directos para pesquisa de plasmódio ou de M.tuberculosis, à realização de radiografia e pouco mais, e é . Os números não explicavam porque é que a prevalência da infecção peloVIH atinge em algumas zonas os 30% ou porque é que a prevenção da transmissão mãe-filho está ainda tão longe do desejado, e está.

Os algarismos são iguais em qualquer parte do mundo, mas os números são também feitos de crenças e tradições que marcam diferenças que não se podem apagar, escarificações ancestrais feitas na alma colectiva de um povo. Por isso se procura agora a Moçambicanização da mensagem, juntamente com a descentralização e a integração dos programas de aconselhamento e de rastreio da infecção peloVIH, de tratamento, de prevenção da transmissão vertical. Por isso se procura aumentar o poder das mulheres, envolver a comunidade, os chefes de aldeia e os curandeiros.

O esforço feito nos últimos anos é notável. Muito dependente de ajuda externa, como comprovam as dezenas de organismos, parcerias público privadas e organizações não governamentais presentes em Moçambique de que o Banco Mundial, a ONUSIDA, a UNICEF são apenas alguns exemplos; mas sempre com um envolvimento forte das estruturas e recursos humanos locais, numa demonstração clara do empenho no desenvolvimento do país. Em 2003 apenas 3% das mulheres grávidas eram testadas para o VIH e apenas em 12 locais na capital era possível ter acesso a terapêutica antiretrovírica. Em 2008 a percentagem de mulheres grávidas testadas tinha subido para 47% e contavam-se em mais de 200 as estruturas sanitárias que disponibilizavam medicação. Ainda longe da meta, é certo, mas distante também do ponto de partida. Caminho a desbravar a savana, tapete de terra vermelha a desenrolar Moçambique.

Em muitas pessoas encontrei uma passividade estranha que as parecia mergulhar num conformismo anestésico. Talvez ainda convencidas de que tinham esgotado todos os créditos da esperança com os pedidos de liberdade e de paz que tinham feito durante anos: na guerra colonial primeiro, no conflito interno depois. Aceitavam tudo como se fosse um destino inalterável. Mas também encontrei muitas pessoas cheias de entusiasmo, comprometidas com a construção de um país menos pobre, menos doente, mais justo. Fiquei surpreendida com a simpatia dos moçambicanos e com a forma como me trataram, como me fizeram sentir em casa, entre família, tornando claro que a guerra foi contra o regime, não contra os portugueses. A nossa ligação com Moçambique vê-se nos edifícios, ouve-se no português mais musical, sente-se.

Vivi dias eternos, feitos de dor e riso. Escrevi por urgência. Para suportar, algumas vezes, para recordar, sempre. Partilho agora um pouco da minha experiência. Porque agora já sei. A mim, quando me perguntarem sobre Moçambique vou dizer: No início vai ser difícil. Vai ser duro, forte, intenso. Lá o sol nasce no mar e morre na terra. Ao contrário. Todos os dias. Nissico nissico, como se diz em Xangana. Vais sentir que voltas ao passado cheio de futuro nos bolsos. Vais ficar sem fôlego, a dançar ou simplesmente deslumbrado com a paisagem. No fim, no fim sim, vais adorar.

 

Maputo, 28 Julho 2010

Tudo tem duas faces. As moedas, as cidades, as pessoas. O meu avô tinha vários passatempos mas a numismática sempre foi o que mais me fascinou. Por isso o ajudava na limpeza e catalogação. Tentava imaginar por onde as moedas teriam andado, que histórias contariam, se pudessem. Depois cresci e compreendi que o principal desígnio de uma moeda era outro. Hoje, se pudesse, recolhia todas as moedas. E depois lavava-as com uma escova e pasta de dentes antes de as envernizar e deixar a secar ao sol. Hoje, se pudesse, guardava todas as moedas do mundo, só para colecção. E talvez amanhã descobríssemos outra moeda de troca.

 

Manhiça, 2 Agosto 2010

Maputo ficou para trás hoje. A cidade das acácias que marcam presença em todas as ruas. É uma cidade muito bonita. Não tanto pelo que é hoje, mas porque é impossível não olhar para aquelas ruas de passeios planos e largos, para os edifícios sólidos e com fachadas harmoniosas, para os parques com sombras majestosas e recantos de sonho e não imaginar o que forame o que poderão um dia vira ser. Dá vontade de sacudir a cidade, como um tapete, e depois pôr tudo no sítio, já limpo e arranjado. Percebo agora porque brilham os olhos de quem recorda uma infância vivida em Lourenço Marques. A estação foi recuperada, com emoraesteano100 anos. Linda! Lá dentro existe agora um espaço transformado em restaurante e local para exposições e concertos ao vivo. O antigo teatro Gil Vicente embora degradado oferece ainda noites de jazz. Perto, o centro cultural franco moçambicano fervilha ao lume com tempero de teatro, música e exposições. E uma esplanada que convida a criar raízes. A cidade é ainda mais bonita ao Domingo, liberta do trânsito caótico. Anoitece muito cedo e aqui em Manhiça a noite é ainda mais escura. Mas também com mais estrelas. Cheguei ainda de dia e mal pousei as coisas parti à descoberta. E do cimo do planalto vi o horizonte, fronteira sem guarda entre o céu azul e a terra castanha doce de cana por onde o rio Incomati deslizou, aproximando-se, curvando-se e afastandose novamente deixando um rasto líquido. Foi amor à primeira vista. Deslumbramento taquicardizante que fez parar o tempo por alguns segundos. Hoje tive a sensação de recuar no tempo, vendo dois meninos a brincar com carrinhos feitos de arame enquanto me fitavam com um misto de curiosidade e timidez. Aproximei-me. Gastam muita gasolina, perguntei, fazen doar sério de dúvida. Riram-se, com aquele riso de quem descobre (mais uma vez) que os grandes não sabem tudo.Com o riso confiante de quem detém a verdade. Não, estes não gastam, respondem-me como se me revelassem um segredo! As crianças são sábias em qualquer parte do mundo!

 

Manhiça, 6 Agosto 2010

Como todos os dias que terminam grandes também este foi inesperado. Acordei com luz, calor e vozes, como todos os dias. Com a luz que atravessa a rede mosquiteira e pinta o quarto de dourado, como calor que forma gotas no pescoço, com as vozes das mulheres que mesmo em frente, do outro lado da porta já lavam lençóis e mágoas enquanto esperam a hora para matabichar. Tomei um banho rápido depois de conseguir expulsar a maioria dos mosquitos que se refugiaram no chuveiro durante a noite. E ainda com o cabelo a pingar tomei um café e um pão com queijo que a Matilde preparou calmamente, como todos os dias desde que cheguei ao Centro de Investigação em Saúde de Manhiça (CISM), um verdadeiro formigueiro construído sob o sol africano. E pouco depois já ia rumo a Maragra, Malavela, Palmeira,lha Josina. O Sr Germano guiava o jipe e guiava-me a mim porentre caminhos de areia e casas de caniço. Casas sem janelas, sem divisões, sem cantos, com chão feito de terra pisada. Cimento duro feito de areia, suor, lágrimas e ranho de criança. Muito! À voltada casa na terra penteada quase sempre uma esteira estendida. Quase sempre uma criança a mamar. Ou só sentada, a estar. Quase não vi velhos com idade, só velhos novos. Cheirei suor e doença e caca de galinha, beijei recém nascidos (beija bébé mana mulungo*), vi descascar amendoim, preparar água de arroz, fazer gorros de lã. Vi mulheres a lavar roupa, no chão, meninos a jogar futebol com caricas, no chão, meninas a fazerem tranças sentadas nas esteiras, no chão. Gente que vive da terra, na terra. Da terra que dá a mandioca, fica melhor cozida, fiquei a saber quando me ofereceram uma num dos postos de saúde. Alguns vazios, à espera dos doentes “referenciados” da parteira tradicional e do curandeiro. Em Palmeira há uma bomba de água mesmo ao lado do posto de saúde que serve a população. Do posto via e ouvia as dezenas de crianças e mulheres que se juntavam a cumprir o diário ritual em busca de água. E fui-me aproximando. As vozes diminuindo. Quando lá cheguei ouvia só o silêncio. Olhares abertos, vivos e curiosos. Disse ditchilé (bom dia) e foi uma risada só. Mulungo a falar xangana! Depois juntaram-se à minha volta, primeiro as crianças, depois as meninas já adolescentes. Uma delas foi-se aproximando, devagar, devagarinho, olhando fixamente até ganhar coragem para num movimento fugaz tocar o meu cabelo. Foi como se queimasse, tal a rapidez com que retirou a mão. Peguei na mão dela e coloquei-a novamente sobre o meu cabelo, com calma. É diferente não é? O teu também é muito bonito! Depois foi o delírio com a máquina fotográfica! A descoberta congelada a cores de si próprios motivou gritos e gargalhadas. Uma das mulheres, grávida, jurou não mais tirar a camisola amarela que vestia, sentindo-se abençoada por aquela caixa tão especial. Pensamento mágico, puro, primitivo! This is Africa!

 

Manhiça, 13 Agosto 2010

Não consigo adormecer. Penso no João. Embrulhado em quatro ou cinco capulanas, por cima da cama do hospital que nunca é desfeita. E deve ter os pés gelados, como tinha hoje de manhã. E deve estar a dormir. Espero que esteja a dormir. O João tem 8 anos, mais ou menos, que a data de nascimento nunca se sabe ao certo. Pesa 10kg e nesse seu corpo frágil, pequeno, quase imóvel, só os olhos denunciam a idade. Um olhar de pacífico desespero que não pestaneja. Um olhar que mergulhou em mim silenciosamente, sem salpicos. A mãe morreu com tuberculose, o João ainda não teria um ano. A avó olhou por ele como sabia, não sabendo. E esta semana trouxe-o ao hospital. Com 7 anos de atraso. O João está no quarto 10 onde são tratadas as crianças com malnutrição grave. E ao contrário da maioria tem a sorte de não ter escrito no processo as iniciais SP, de ser o positivo. Tem a sorte de só ter uma tuberculose disseminada. O azar de não ter sorte nenhuma! Ah que raiva! Não consigo encontrar uma resposta. E o olhar que mergulhou em mim vai descendo. E eu não consigo arrancar-lhe um sorriso, mesmo com um balão verde. Com as bolas de sabão conquistei um aceno de cabeça a pedir mais balões transparentes que rebentavam sem fazer barulho. Hoje enchi-me de esperança quando percebi que tentava falar. O que foi João? Pão. Foi o que disse. Pão. E o olhar que mergulhou em mim afogou-me. Não sei nadar neste mar.

 

Maputo, 31 Agosto 2010

Vocês europeus não acreditam na magia africana mas ela existe. Eu já vi muitas vezes, disse-me o Luís. E passou a explicar, com exemplos. Das mulheres de Tete que enfeitiçam os homens que nunca mais regressam do Norte, do mau olhado transformado em paralisia que um colega de trabalho mais velho lançou por inveja ao mais novo que subiu na carreira. Ele não conseguia andar. Eu vi. E tudo começou depois dele começar a conduzir o carro que tinha sido do outro, do mais velho. Os médicos disseram que não encontravam a causa, que não tinham mais nada a fazer. Então a família levou ele a um curandeiro que fez uns tratamentos e disseque ele ia ficar bem mas não podia voltar a trabalhar mais naquela empresa. E ele ficou bem. É magia africana. Como é que explicas? Os médicos disseram que não havia nada a fazer! Como é que explicas?

 

Maputo, 3 Setembro de 2010

Ainda não parti e já tenho saudades. Não quero esquecer-me de nada. Mesmo do que me fez sofrer. De tudo, quero lembrar-me de tudo. Do sabor do ricoffe, da matapa, do caril de camarão da Rita. Da mandioca, do caju, da 2M bem gelada. Quero lembrar-me do cheiro dos campos de cana-de-açúcar a arder, do cheiro de urina e suor das capulanas que embrulhavam corpos doentes, magros, abandonados, adiados. Quero lembrar-me dos risos espontâneos e ruidosos das crianças que gritavam mulungo enquanto tocavam com um dedo na minha pele virada do avesso. E da caixa de música que com cinco meticais despertava o ritmo ondulante e sensual de Moçambique. Não quero esquecer as águas quentes do Índico, o pôr-do-sol sobre a cidade de Maputo, a visão deslumbrante do Incomati, morada de crocodilos e hipopótamos que me arrebatou desde o primeiro dia. Não quero esquecer as estradas feitas de areia ou buracos, as palmeiras, as mangueiras, as acácias. E a língua, o português feito simples, musical. Estou a pedir folha de chã. Hei-de trazer. Não me vou esquecer da simpatia genuína, o interesse desinteressado da gente boa. Não quero esquecer as lições de história do Jorge, a companhia maternal da Ana, os momentos de camaradagem que vivi com a Reyes, o Miguel, a Olivia, a Nilsa, a Gemma. Nem as histórias que ouvi feitas de curandeirismo e tradições. Não quero esquecer o passo lento, o ritmo calmo que delicia tantas vezes quantas as que desespera. Hei-de trazer. E trazem. Como vão trazer o futuro. Parece que está tudo por fazer. Nos primeiros dias no hospital quase paralisei. Mas rapidamente transformei desespero em motivação. Quase tudo está por fazer, é verdade. Mas isso também quer dizer que se pode fazer de novo, bem. Acreditando que o paraíso pode ser aqui.Com mangas em vez de maçãs.

Hei-de voltar.

 

Correspondência

Ana Cláudia Carvalho Serviço de Doenças Infecciosas Hospital de São João Al. Prof. Hernâni Monteiro 4200-319 Porto, Portugal. Email: claudiac@med.up.pt

 

Notas

* Palavra em dialecto local (xangana) que designa indivíduo de raça branca

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