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Arquivos de Medicina

On-line version ISSN 2183-2447

Arq Med vol.24 no.4 Porto Aug. 2010

 

CASOS CLÍNICOS/SÉRIE DE CASOS

Tuberculose Cutânea num Doente Imunocomprometido

Cutaneous Tuberculosis in Immunocompromise Patient

Ana Paula Vaz*, Tiago Gregório**,***, Alice Barbosa*, Adelina Amorim*,**

 

* Serviços de Pneumologia Hospital de São João - EPE, Porto

** Medicina Interna, Hospital de São João - EPE, Porto;

*** Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, Porto

 

Correspondência

 

RESUMO

A incidência da tuberculose em doentes imunocomprometidos tem vindo a aumentar, incluindo a cutânea, uma manifestação rara, que corresponde a 1,5% de todas as formas da doença. Descreve-se o caso de um doente de 77 anos, sob corticoterapia sistémica crónica, com tuberculose disseminada com envolvimento pulmonar e ganglionar, que se apresentou com nódulos subcutâneos resultantes da disseminação por continuidade e por via hematogénea/linfática, respectivamente nas formas de escrofuloderma no pescoço e abcessos metastáticos na mão. O isolamento do Mycobacterium tuberculosis na cultura dos exsudados da pele permitiu o diagnóstico definitivo e a terapêutica antibacilar uma evolução favorável e um bom prognóstico. Pretende-se realçar a raridade do envolvimento cutâneo na tuberculose e a importância da suspeita diagnóstica em face da diversidade de manifestações da doença.

Palavras-chave: tuberculose; cutânea; disseminada; corticoesteróides.

 

ABSTRACT

Incidence of tuberculosis in immunocompromised patients has been rising, including cutaneous, a rare manifestation that accounts for 1.5% of all forms of disease.

We described a case of a 77-year-old man, on chronic systemic corticotherapy, with disseminated tuberculosis involving lung and lymph nodes that presented with subcutaneous nodules resulting from continuity and haematogenous/lymphatic infection spread, respectively in forms of scrofuloderma on the neck and metastatic abscess of the hand. Isolation of Mycobacterium tuberculosis in skin exudates culture allowed definite diagnosis and antituberculous therapy a favourable evolution and therefore a good prognosis.

Purpose of this case is to point out attention to rarity of cutaneous involvement in tuberculosis and importance of diagnosis suspicion in face of diversity of clinical manifestations.

Key-words: tuberculosis; cutaneous; disseminated; corticosteroids.

 

Introdução

Com a emergência de situações associadas com o comprometimento do sistema imunológico, como a epidemia pelo vírus da imunodeficiência humana (VIH) e o uso crescente de fármacos imunossupressores, tem-se verificado um aumento de todas as formas de tuberculose (TB), nomeadamente das extrapulmonares, incluindo a cutânea (1), e da doença disseminada resultante da disseminação hematogénica do bacilo (2).

A TB cutânea compreende 1,5% de todas as formas da doença (3), sendo responsável por 0,04 a 2% de todas as patologias dermatológicas (4-6).

Frequentemente, a TB de pele resulta da disseminação hematogénea ou por continuidade da infecção, embora a inoculação primária também esteja documentada. Encontram-se descritas diferentes formas de TB cutânea de acordo como mecanismo de infecção, o estado imunológico do doente e a importância de inoculum bacteriano (7, 8). Não obstante, o diagnóstico de TB cutânea requer um índice elevado de suspeição, não só dada a sua raridade, mas também porque as manifestações clínicas da doença são diversificadas e a micobactéria nem sempre é identificada nos exames microbiológicos (1).

O caso descrito ilustra o envolvimento cutâneo na TB disseminada, nas formas de escrofuloderma e abcesso metastático, num doente idoso e imunocomprometido por corticoterapia sistémica.

 

Caso Clínico

Um doente do sexo masculino, de 77 anos, de raça branca, apresentou-se com um quadro de febre persistente, com seis semanas de evolução, apesar de um curso de antibioterapia empírica, acompanhado de emagrecimento de 6 Kg nos últimos três meses.

A história pregressa incluía patologia discal lombar encontrando-se medicado cronicamente com coesteróides sistémicos (metilprednisolona, 8 mg/dia), desde há dez anos, embora sem seguimento clínico regular. O doente negava antecedentes de doença infecciosa, nomeadamente TB, incluindo nos contactos.

Na admissão, apresentava um bom estado geral, evidenciando-se adenomegalias móveis e indolores nas cadeias supraclavicular e do esternocleidomastoideo à direita e na axila à esquerda.

O estudo analítico mostrou uma anemia de doença crónica (12.4 g/dl), uma hiponatremia (133 mEq/L) e uma elevação tanto da proteína C-reactiva (62.7 mg/L), como da velocidade de sedimentação (71 mm/h). A radiografia torácica era normal. A pesquisa de bacilos álcool ácido resistentes (BAAR) no aspirado gástrico, urina e sangue foi negativa, bem como as culturas para outras bactérias e fungos. O estudo imunológico era normal e as serologias sanguíneas, incluindo o rastreio da infecção VIH foram negativos. A tomografia computadorizada mostrou nódulos com padrão em árvore botão e discretas consolidações com broncograma aéreo nos lobos pulmonares superiores (Figura 1 A, B). A biopsia aspirativa das adenomegalias cervicais revelou BAAR e a pesquisa de ADN do Mycobacterium tuberculosis (Mt) no lavado broncoalveolar (LBA) foi positiva.

 

 

Atendendo ao diagnóstico de TB disseminada, foi nas região metacarpofalângica dos segundo e terceiro dedos, na palma da mão esquerda. Em ambas as lesões constatou-se uma evolução semelhante, gradualmente para a flutuação e supuração formando úlceras com drenagem de material caseoso (Figura 2 A, B). Em ambos os exsudados identificaram-se BAAR. No pescoço, iniciada terapêutica antituberculosa com quatro fármacos (Isoniazida (H), Rifampicina (R), Pirazinamida (Z) e Etambutol (E)), bem como redução da corticoterapia, dada a ausência de critérios clínicos, imunológicos e radiológicos de outra patologia, que não a degenerativa osteoarticular.

 

 

Duas semanas após o início do tratamento antibacilar, o doente apresentou nódulos subcutâneos eritematosos, firmes e indolores no pescoço à direita. Uma semana depois, surgiram outros nódulos subcutâneos os achados coadunaram-se com os da escrofuloderma, resultantes da propagação por continuidade de focos tuberculosos ganglionares. Quanto às lesões na mão, o estudo radiológico excluiu envolvimento subjacente do osso e articulação, pelo que, clinicamente, foram consideradas abcessos metastáticos tuberculosos, resultantes da disseminação hematogénea/linfática de um foco sistémico da doença, achado corroborado pela presença das adenopatias axilares à esquerda.

Após quatro semanas de tratamento antibacilar verificou-se melhoria clínica. Mycobacterium tuberculosis complex, sensível aos fármacos de primeira linha, foi isolado na cultura do LBA e nos exsudados da pele. A terapêutica antituberculosa foi descontinuada para dois fármacos (H, R) e a corticoterapia suspensa, ao fim de dois meses. Após os seis meses de tratamento constatou-se resolução clínica e radiológica, incluindo das lesões cutâneas, o que ocorreu sem a formação de cicatrizes. O seguimento do doente nos dois anos seguintes não mostrou sinais de recidiva.

 

Discussão

A TB cutânea pode ser causada pelo Mt, Mycobacterium bovis, micobacterias atípicas e, raramente, pelo bacilo Calmette Guerin (8).

Após a descrição de Laennec, em 1826, do seu “prosector wart” (9), foram propostas várias classificações da TB cutânea.

ATB da pele é classificada em TB cutânea verdadeira e tuberculides (7, 8), a primeira ocorrendo na sequência da proliferação dos bacilos na pele, e a última na sequência de uma reacção de hipersensibilidade a lesões tuberculosas noutros órgãos.

A classificação mais consensual da TB cutânea verdadeira baseia-se no modo de infecção e no estado imunológico do hospedeiro (7, 8). As lesões causadas por inoculação exógena podem manifestar-se como cancro tuberculoso venéreo, cutis verrucosa e, ocasionalmente, lupus vulgaris. A infecção endógena pode surgir como escrofuloderma e TB orificial, quando ocorre extensão por contiguidade; lupus vulgaris, TB miliar aguda e abcessos metastáticos quando ocorre disseminação hematogénea/ linfática. As últimas duas formas encontram-se usual-mente associadas a situações de comprometimento imunitário do hospedeiro. Um conceito adicional inclui a distinção baseada no inoculum bacteriano: multibacilar no cancro tuberculoso venéreo, escrofuloderma, orificial, miliar aguda e abcesso tuberculoso; paucibacilar na cutis verrucosa e lupus vulgaris.

O envolvimento de pele pode ocorrer de forma isolada ou acompanhando a doença noutros órgãos, na TB disseminada (1). Contudo, a acrescentar à baixa incidência da TB cutânea em geral, também a incidência desta forma de doença associada à TB noutros órgãos é baixa. Uma revisão incluindo 370 doentes demonstrou uma incidência de 3,5%, com os gânglios e o pulmão a serem os órgãos mais frequentemente envolvidos e a escrofuloderma, a forma mais frequente de TB cutânea associada (10).

Os autores descrevem um caso clínico de um doente sob corticoterapia sistémica crónica, um factor predisponente conhecido para a imunossupressão e para a reactivação da tuberculose latente, neste caso, de uma forma invulgar num doente idoso (11).

O aparecimento de nódulos subcutâneos tanto no pescoço, como na mão, secundariamente evoluindo para a fistulização e ulceração durante o tratamento da TB disseminada, levantou a suspeita do envolvimento da pele pela doença. Para além da necessidade de considerar outros diagnósticos diferenciais, como as micobacterioses atípicas, sífilis, esporotricosis, actinomicosis e acne conglobata, o diagnóstico definitivo da TB cutânea requer a correlação dos achados clínicos com os resultados de testes diagnósticos como a PCR, microbiologia e histologia (8). No entanto, como a rentabilidade da cultura e da PCR é frequentemente baixa, o diagnóstico da TB cutânea pode depender da correlação com a histologia (6). No caso apresentado, o diagnóstico definitivo foi obtido após o isolamento do Mt na cultura dos exsudados de pele.

A identificação de um foco tuberculoso subjacente, como o osso, o epidídimo ou, mais frequentemente, os nódulos linfáticos, como aconteceu na região cervical no nosso doente, permitiu a diagnóstico da escrofuloderma. Por outro lado, a lesão na mão esquerda assemelhou-se a um abcesso tuberculoso metastático, uma forma mais rara que surge na ausência de envolvimento subjacente, resultando portanto da disseminação hematogénea/linfática da micobactéria, usualmente para o tronco, cabeça e extremidades em doentes imunocomprometidos.

Dado que a maioria dos casos de TB cutânea surgem na sequência do envolvimento sistémico pela doença e o inoculum bacilar ser geralmente inferior ao da TB pulmonar, os esquemas terapêuticos são semelhantes aos da TB em geral (8), o que no caso em questão resultou numa evolução favorável e num excelente prognóstico.

 

Referências

1 -Almaguer-Chávez J,Ocampo-Candiani J, Rendón A.Current panorama in the diagnosis of cutaneous tuberculosis. Actas Dermosifiliogr 2009;100:562-70.         [ Links ]

2 -Kreider ME, Rossman MD: Clinical presentation and treatment of tuberculosis. In Fishman AP, Elias JA, Fishman JA, Grippi MA, Senior RM, Pack AL. Fishman Pulmonary Diseases and Disorders. 4th ed. New York. Mc Graw-Hill 2008;2465-85.         [ Links ]

3 -Farina MC, Gegundez MI, Pique E. Cutaneous tuberculosis: a clinical, histopathologic and bacteriologic study. J Am Acad Dermatol 1995;33:433-40.         [ Links ]

4 -Umapathy KC, Begum R, Ravichandran G, Rahman F, Paramasivan CN,Ramanathan VD.Comprehensive findings on clinical,bacteriological,histopathological and therapeutic aspects of cutaneous tuberculosis. Trop Med Int Health 2006;11:1521-8.         [ Links ]

5 -Ho CK, Ho MH, Chong LY. Cutaneous tuberculosis in Hong Kong: an update. Hong Kong Med J 2006;12:272-7.         [ Links ]

6 -Zouhair K, Akhdari N, Nejjam F, Ouazzani T, Lakhdar H. Cutaneous tuberculosis in Morocco. Int J Infec Dis 2007;11:209-12.         [ Links ]

7 -Tigoulet F, Fournier V, Caumes E. Clinical forms of the cutaneous tuberculosis. Bull Soc Pathol Exot 2003;96:362-7.         [ Links ]

8 -Barbagallo J, Tager P, Ingleton R, Hirsch RJ, Weinberg C. Cutaneous tuberculosis: diagnosis and treatment. Am J Clin Dermatol 2002;3:319-28.         [ Links ]

9 -Sehgal VN, Wagh SA. The history of cutaneous tuberculosis. Int J Dermatol 1990;29:666-8.         [ Links ]

10 -Kinvanç-Altunay I, Baysal Z, Ekmekçi TR, Köslu A. Incidence of cutaneous tuberculosis in patients with organ tuberculosis. Int J Dermatol 2003;42:197-200.         [ Links ]

11 -Haanes OC, Bergmann A. Tuberculosis emerging in patients treated with corticosteroids. Eur J Respir Dis 1983;64:294-7.         [ Links ]

 

Correspondencia:

Dr.ª Ana Paula Vaz Serviço de Pneumologia

Hospital de São João Alameda Prof. Hernâni Monteiro, 4200-319 Porto. E-mail: vaz.anapaula@gmail.com

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