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Arquivos de Medicina

On-line version ISSN 2183-2447

Arq Med vol.24 no.3 Porto June 2010

 

INVESTIGAÇÃO ORIGINAL

Influência dos Factores Socio-Demográficos e Clínicos na Qualidade de Vida Relacionada com a Saúde dos Doentes Hemato-Oncológicos

Influence of Socio-Demographic and Clinical Factors in Health Related Quality of Life of Hemato-Oncologic Patients

Luísa Queiroz*, Filipa Sousa**, Herlander Marques*

 

* Serviços de Oncologia Médica

** Neurologia, Hospital de Braga

 

Correspondência

 

RESUMO

Introdução: Nos últimos anos assistiu-se a um crescente interesse sobre a temática da Qualidade de Vida (QdV), contudo ainda existem poucos trabalhos em doentes hemato-oncológicos e não existem estudos relativos à influência dos factores socio-demográficos e clínicos neste tipo de doentes.

Objectivos: Avaliação da QdV dos doentes hematooncológicos e sua relação com os aspectos socio-demográficos e clínicos. Material e Métodos: Aplicação do Questionário de QdV da European Organization for Research and Treatment Of Cancer versão 3.0 (EORTC QLQ-C30) e o da Classe Social de Graffar a 74 doentes hemato-oncológicos, e recolha dos dados socio-demográficos e clínicos.

Resultados: Idade mais avançada associou-se a pior função física (p=0,05). Doentes casados apresentaram menor fadiga (p=0,017). A um ensino superior ao obrigatório associaram-se melhor função física (p=0,02), social (p=0,028) e desempenho (p=0,044). As classes sociais altas obtiveram maior pontuação na função física (p=0,004), as médias apresentavam maior função emocional (p=0,003) e impacto financeiro (p=0,004), e as baixas maior dor (p=0,021). Verificou-se que doentes com diagnóstico de Linfoma Não Hodgkin apresentaram melhor função social (p=0,015) do que as restantes patologias, e que doentes com 1ª ou mais recidivas apresentaram níveis superiores de anorexia (p=0,012). Os doentes sob quimioterapia apresentaram pior desempenho (p=0,09), pior função social (p=0,025) e maior obstipação (p=0,03). Os doentes com maior número de tratamentos citotóxicos apresentaram níveis mais elevados de dor (p=0,023). Níveis de hemoglobina mais baixa associaram-se a piores resultados nas escalas funcionais.

Discussão/Conclusão: Identificaram-se factores socio-demográficos e clínicos que afectam domínios da QdV dos doentes hemato-oncológicos. Estes dados, alertam para a necessidade do conhecimento e compreensão das repercussões da patologia oncológica nos diferentes aspectos da QdV ser um passo importante na definição de estratégias visando melhorar o bem-estar dos doentes.

Palavras-chave: hemato-oncologia; qualidade de vida; factores socio-demográficos; factores clínicos.

 

ABSTRACT

Introduction: In the last years have witnessed a growing interest on the topic of Quality of Life (QoL), however there are still few studies in hemato-oncology patients and are no studies on the influence of socio-demographic and clinical data in this type patients.

Objectives: Evaluation of QoL of hemato-oncologyc patients and its relationship with socio-demographic and clinical factors. Methods: Application of QoL Questionnaire of the European Organization for Research and Treatment of Cancer version 3.0 (EORTC QLQ-C30) and the Social Class of Graffar questionnaire to 74 hemato-oncologyc patients, and collection of socio-demographic and clinical data.

Results: Older age was associated with worse physical function (p=0.05). Married patients had less fatigue (p=0.017). Higher than required education was associated with better physical (p=0.02), social (p=0.028) and performance (p=0.044) functions. The upper social class had higher scores in physical function (p=0.004), the middle social class had higher emotional function (p=0.003) and higher financial impact (p=0.004), and the low social class higher pain (p=0.021). It appears that patients with Non-Hodgkin Lymphoma diagnostic have better social function (p=0.015) than the other pathologies, and patients with 1 or more recurrences have higher level of anorexia (p=0.012). Patients on chemotherapy have worse performance function (p=0.09), worse social function (p=0.025) and more constipation (p=0.03). Patients with higher number of cytotoxic treatments have higher levels of pain (p=0.023). Lower hemoglobin levels were associated with worse outcomes in functional scales.

Discussion/Conclusion: Socio-demographic and clinical factors affect areas of QoL of hemato-oncology patients. These data highlight the need for knowledge and understanding of the impact of oncologic pathology in different aspects of QoL is an important step in developing strategies to improve the welfare of patients.

Key-words: hemato-oncology; quality of life; socio-demographic factors; clinical factors

 

Introdução

Nas últimas décadas a qualidade de vida (QdV) tem assumido um papel de crescente interesse em variadas disciplinas de ciências médicas, sociais e humanas e embora não exista uma definição clara de QdV, a Organização Mundial de Saúde (OMS), em 1993, defeniu QdV como “ … a percepção que o indivíduo tem do seu lugar na vida, no contexto da cultura e do sistema de valores nos quais vive, em relação com os seus objectivos, os seus desejos, as suas normas e as suas inquietudes...” (1).

Nos últimos anos tem-se assistido á emergência de diversos estudos que tem por base a QdV, no entanto muito falta ainda, para se reconhecer a sua verdadeira dimensão nos doentes com cancro. Pouco é conhecido sobre a influência de factores socio-demográficos e clínicos na QdV dos doentes oncológicos, particularmente na área da hemato-oncologia, dado que os poucos estudos existentes baseiam-se em doentes com tumores sólidos, e demonstram resultados controversos (2-5).

Neste trabalho pretende-se avaliar a QdV dos doentes hemato-oncológicos através da aplicação do questionário EORTC QLQ-C30, e explorar as eventuais inter-relações com os aspectos socio-demográficos e clínicos.

 

Material e métodos

Desenho de estudo e amostra

Este trabalho consistiu num estudo observacional transversal, com componente descritiva e analítica. Foi realizado no Serviço de Oncologia do Hospital de São Marcos (HSM),no período comprendido entre 19 de Junho a 13 de Julho de 2007. A população em estudo incluiu os doentes seguidos neste Serviço até à data da realização do estudo, com diagnóstico de doenças malignas do sangue, exceptuando as leucemias agudas por não serem acompanhadas neste centro, identificados através dos registos médicos. Foram considerados elegíveis todos os doentes residentes em território Português, que dominavam a língua portuguesa, maiores de 18 anos e com doença hemato-oncológica maligna. Foram excluídos todos os doentes que à data de realização do estudo ainda não tinham diagnóstico definitivo, não apresentavam patologia hemato-oncológica maligna e que não responderam ao questionário.

Todos os doentes considerados elegíveis para o estudo, foram convidados a participar sendo-lhes entregue os questionários da avaliação da Qualidade de Vida Relacionada com a Saúde (QdVRS) da European Organization for Research and Treatment Of Cancer versão 3.0 (EORTC QLQ-C30) e o relativo à Classificação Social de Graffar. Não foram oferecidos incentivos e foi garantida total confidencialidade dos dados.

Foi elaborada uma ficha onde foi registada informação acerca dos dados socio-demográficos e clínicos onde constavam itens como: sexo (feminino vs masculino), data de nascimento (idade em valor absoluto), estado civil (casado, solteiro, divorciado, viúvo), nível de instrução (= 12 anos de estudo, 10-11 anos de estudo, 8-9 anos de estudo, 6-7 anos de estudo e ensino primário incompleto ou nulo) e classe socio-economica (Classe Social de Graffar I, II, III, IV, V) obtidos através do questionário da Classificação Social de Graffar, tipo de doença (Linfoma de Hodgkin (LH), Linfoma Não Hodgkin (LNH), Mieloma Multiplo (MM), Leucemia Linfoide Crónica (LLC)), estadio inicial (doença localizada vs avançada), fase da doença (diagnóstico inicial vs 1ª ou mais recidivas), presença de tratamento actual (com vs sem Quimioterapia (QT)), número de esquemas de tratamentos citotóxicos (1º vs 2 ou mais), e o valor de hemoglobina sérica do último mês (valor absoluto). Tendo em conta o tamanho da amostra houve necessidade de reagrupamento de algumas variáveis, para fins de tratamento estatístico, conforme demonstra a tabela 1.

 

Instrumentos

Foi utilizado o Questionário de Qualidade de Vida da European Organization for Research and Treatment Of Cancer versão 3.0 (EORTC QLQ-C30) validado para a língua portuguesa (Portugal) (6, 7, 8). Este questionário é composto por 30 itens que definem: cinco escalas funcionais; física (FF), emocional (FE), cognitiva (FC), social (FS) e desempenho (DE); uma escala de qualidade de vida/saúde global (QdVida/Saúde Global), três escalas de sintomas; fadiga (FA), dor (DO), náuseas/vómitos (NV); seis itens individuais, nomeadamente dispneia (DI), insónia (IN), anorexia (AN), obstipação (OP), diarreia (DA) e o impacto financeiro da doença (IF). Os valores originais das dimensões da QdV foram transformados por regressão linear e agrupados de forma a obter escalas globais (funcional, sintomas, itens individuais e QdVida/Saúde Global) com pontuações entre 0 e 100. Pontuações elevadas nas escalas funcionais e escala global de QdV e saúde indicam uma melhor capacidade, enquanto pontuações elevadas nas escalas de sintomas e itens individuais representam pior sintomatologia ou pior impacto financeiro (8). Foi também utilizado o questionário da Classe Social de acordo com a Classificação de Graffar (9). Esta consiste numa classificação social internacional que se baseia no estudo de um conjunto de cinco critérios: profissão, nível de instrução, fontes de rendimento, conforto do alojamento e aspecto do bairro onde habita.

 

Análise estatística

Os dados foram codificados e processados em Microsoft Excel 2007©, e convertidos em SPSS (Statistical Package for Social Science) para Windows versão 15.0 (SPSS Inc, Chicago, EUA), procedendo depois ao tratamento estatístico. As categorias e os dados qualitativos foram expressos como número e/ou percentagem e as varíaveis contínuas foram expressas em média e desvio padrão (DP).

A análise da consistência interna das escalas foi verificada através do Coeficiente Alfa de Cronbach. Foi utilizado o teste t student para comparações de variáveis contínuas (scores de QdVRS) entre dois grupos independentes, quando estas amostras apresentavam uma distribuição normal (sexo, estado civil e fase do tratamento). Testes não paramétricos foram aplicados quando as variáveis não apresentavam uma distribuição normal, nomeadamente o teste de U Mann – Whitney (tipo de doença, estádio inicial, fase da doença, nº esquemas de QT) e Kruskal-Wallis (escolaridade e classe socioeconómica) para comparação entre dois grupos ou mais, respectivamente. O teste de correlação de Pearson foi utilizado para analisar variáveis contínuas e verificar a sua associação (idade, níveis de hemoglobina).

Para todos os testes foi estabelecido um nível de significância de 5%.

 

Resultados

Caracterização da amostra

Dos 106 doentes que constavam nos registos clínicos verificou-se no início do estudo que 14 tinham falecido, 2 foram excluídos por ainda não terem diagnóstico definitivo e 2 por não apresentarem patologia maligna. Dos 88 considerados elegíveis para o estudo, apenas 74 responderam ao questionário, representando uma percentagem de resposta de 84,1%.

Caracterização dos Factores Socio-Demográficos, Clínicos e dos Scores de QdVRS segundo a e ORTC QLQ-30

As características socio-demográficas, clínicas e os scores de QdVRS da população em estudo encontram-se representadas na tabela 1 e 2.

 

 

Embora o questionário utilizado se encontrasse validado foi calculado o coeficiente alfa de Cronbach para avaliar a consistência interna das diversas escalas que constituíam o questionário, nomeadamente das 5 funcionais, das 3 de sintomas e da QdVida/Saúde Global. Os valores obtidos para as cinco escalas funcionais encontravam-se todos acima de 0,706 excepto para a função cognitiva em que assumiu o valor de 0,323. Por não ter obtido um bom grau de confiabilidade, podendo levar à inferência de associações erróneas, foi excluída a sua avaliação neste estudo. Todas as escalas de sintomas apresentavam valores superiores ao valor limite de 0,7 para serem consideradas consistentes (10).

 

Impacto da Idade e Género na QdVRS

Doentes mais velhos obtiveram pior FF (p=0,000) e DE (p=0,013) e maior fadiga (p=0,019), dor (p=0,016) e anorexia (p=0,006) (tabela 3). Estes resultados apresentaram um grau de correlação considerado válido, destacando-se a FF pelo maior coeficiente de correlação. No parâmetro da QdVida/Saúde Global não se verificaram diferenças significativas estatisticamente.

Relativamene ao género não foram encontradas diferenças estatisticamente significativas.

Impacto do estado Civil na QdVRS

Os doentes casados obtiveram pontuações mais elevadas na FF, DE, FE, FS e QdVida/Saúde Global, enquanto o grupo solteiros/divorciados ou viúvos registaram maiores valores na maioria das escalas de sintomas e itens individuais. A fadiga constitui porém, a única escala em que existiu uma diferença estatisticamente significativa (p=0,017), obtendo um valor inferior nos doentes casados (Tabela 3).

 

Impacto da escolaridade e Classe Social de Graffar na QdVRS

A uma escolaridade superior à obrigatória associouse melhor FF (p=0,002), FS (p=0,028) e DE (p=0,044). A escolaridade média/obrigatoria esteve associada a maior dor (p=0,05) e a incompleta/nula a maior anorexia (p=0,038).

Indivíduos pertencentes à classe social alta obtiveram maior pontuação na FF (p=0,004), os da classe média apresentaram maior FE (p=0,03) e os da classe baixa maior impacto financeiro (p=0,004), e maior dor (p=0,021) (Tabela 3).

 

Impacto do tipo de Doença na QdVRS

O tipo de doença não teve impacto na maioria das escalas com excepção da função social (p=0,015), que foi superior nos doentes com LNH (Tabela 4).

 

Impacto do estadio Inicial na QdVRS

Sem diferenças estatisticamente significativas.

 

Impacto da Fase da Doença na QdVRS

A fase da doença não teve impacto na maioria das escalas com a excepção da anorexia (p=0,012), que foi superior nos doentes com 1ª ou mais recidivas (Tabela 4).

 

Impacto da Quimioterapia (Qt) citotóxica na QdVRS

AQT não teve impacto na maior parte das escalas com excepção do desempenho, da FS e da obstipação. Assim, os doentes sob QT apresentaram pior desempenho (p =0,09), pior função social (p=0,025) e maior obstipação (p=0,03) (Tabela 4).

 

Impacto do número de esquemas de tratamentos Citotóxicos em Doentes actualmente em Qtna QdVRS

O número de esquemas de tratamento citotóxico não influênciou a maioria das escalas com excepção da escala da dor (p=0,023), que foi superior nos doentes com maior número de esquemas citotóxicos (Tabela 4).

 

Impacto dos Valores Séricos da Hemoglobina na QdVRS

Verificou-se que existia significância estatistica para a função física, emocional, social, desempenho, fadiga, náuseas/vómitos, anorexia, diarreia e QdVida/Saúde Global. Constatou-se ainda que nas escalas funcionais existia uma correlação positiva (níveis de hemoglobina mais altos associavam-se a melhores scores funcionais) e nas escalas de sintomas uma correlação negativa (níveis de hemoglobina mais altos associavam-se a menor sintomatologia) (Tabela 4).

 

Discussão

A excelente taxa de resposta obtida ao inquérito neste estudo (84%) permitiu alcançar uma amostra significativa da população (11).

O perfil socio-demográfico da população estudada revelou uma idade média de 61 anos, e um nível de instrução escolar maioritariamente incompleto ou nulo. O baixo nível de escolariadade pode dever-se á zona de referenciação Oncológica do Hospital incluir zonas rurais e á frequência elevada de idosos. Evidenciou-se que uma elevada proporção dos inquiridos se incluía em classes socioeconómicas mais baixas, realçando a importância do desenvolvimento de estratégias de apoio social.

A maioria dos doentes encontravam-se em diagnóstico inicial e a patologia mais frequente foi o LNH. A idade média da população está de acordo com a idade média de diagnóstico do LNH.

No que concerne aos scores de QdVRS verificou-se nas escalas funcionais médias mais altas para a FF e FE. Apesar da FF ser relatada frequentemente como uma das escalas com valores mais altos, a função emocional tem sido descrita como uma das funções mais afectadas pela patologia oncológica (12). Neste estudo, este resultado poderá ser interpretado face ao facto da maioria dos doentes ainda se encontrar em diagnóstico inicial, e pela eventual perspectiva de cura deste tipo de doença oncológica. Na escala de sintomas, uma média mais alta foi relatada para a fadiga, dor e insónias, o que esta de acordo com a literatura (12).

Calculou-se a consistência interna das subescalas do QLQ-C30, uma vez que a QdVRS é uma variável dinâmica, assim, apesar do questionário estar validado para Portugal, isto apenas significa que provavelmente ele tem boas capacidades psicométricas numa população similar que precisa de ser confirmado. No presente estudo, os valores de fidelidade das subescalas do questionário e a média total podem ser considerados bons. O instrumento apresenta boa consistência interna,à excepção da funcão cognitiva, que apresenta um valor baixo, à semelhança do que também se verifica noutros estudos (12).

Como esperado, a idade representa um importante factor de influência nos vários domínios da QdVRS, verificando-se uma correlação negativa com FF e DE (traduzindo pior FF e DE com o aumento da idade), e positiva com a fadiga, dor e anorexia (traduzindo maior sintomatologia com o aumento da idade), sendo estes resultados concordantes com a literatura existente (11). Apesar de todas estas escalas apresentarem corrrelações consideradas razoáveis, a FF destaca-se pelo maior grau de correlação. De facto, a população mais idosa apresenta um comprometimento funcional prévio que irá ser agravado pela patologia oncológica e seu tratamento, reflectindo-se numa maior limitação física.Manifestações mais exuberantes de dor e fadiga, nos doentes mais velhos, podem estar relacionadas com a existência potencial de maior número de comorbilidades neste grupo etário. Diversos estudos relatam a existência de uma anorexia do envelhecimento, que é ainda mais acentuada nestes doentes pela própria doença oncológica, assim como pelos tratamentos anticancerígenos, alertando para o facto de a desnutrição proteico-energética ser um problema grave nos idosos (13). No entanto, neste estudo com doentes com patologia oncológica hematológica, não se verificaram diferenças na QdVida/Saúde Global ao contrário de outros estudos, o que se poderá dever ao tamanho reduzido da população ou por se tratar de um grupo específico de patologia oncológica (11).

A comparação entre géneros não demonstrou existência de diferenças significativas, não se verificando a tendência das mulheres para níveis de QdVida/Saúde Global mais baixos e para valores mais altos nas escalas de sintomas ou itens individuais, identificados noutros estudos (11).

Neste trabalho pretendeu-se avaliar se o facto do doente viver acompanhado tinha repercussões na QdV, para tal, recorreu-se ao estado civil tendo-se constituido dois grandes grupos (casados vs solteiros/divorciados e viúvos). Verificou-se que os doentes casados apresentam menor fadiga, ao contrário dos estudos apresentados por Hagelin,no entanto, deve-se ter em conta, que os resultados deste autor incidiram na população oncológica geral e em doentes em fase terminal (14). No nosso estudo, este resultado poderá dever-se ao facto destes doentes possuírem, na maioria dos casos, apoio nas suas tarefas diárias. Contudo não se provou a existência de distintos padrões de impacto nas escalas funcionais ou na QdVida/ Saúde Global. Salienta-se ainda que neste estudo, não foi aferida informação acerca de outros aspectos de suporte social para além do estado civil (rede social, existência de filhos e qualidade da relação conjugal), o que poderá influênciar os resultados.

Relativamente à escolaridade, verificou-se que a função física, social e desempenho apresentou-se mais elevada nos doentes com a escolaridade superior à obrigatória. As classes sociais altas associaram-se a melhor FF. Estes resultados reflectem a tendência dos indivíduos de níveis socioeconómicos e culturais mais altos de possuírem maior facilidade em utilizar estratégias cognitivo-comportamentais, que lhes permitem uma maior capacidade de descentração dos problemas emocionais e envolvimento em tarefas, apresentando deste modo, menores limitações e restrições relacionadas com o cancro (2,11,15).Aanorexia atingiu valores médios mais altos associados a escolaridade incompleta/nula, enquanto o ensino médio/obrigatório reportou pontuações mais elevadas na dor. Estes resultados poderão ser explicados por uma menor adesão à terapêutica de controlo destes sintomas, devido a uma pior compreensão da sua cor-recta utilização ou maior efeito apelativo para medicação anti-emética profilática.

O impacto financeiro da doença revelou-se significativamente maior nos doentes de classes sociais mais baixas, mais vulneráveis a um agravamento de ordem financeira. Estas situações podem ser agravadas pelas limitações temporárias ou permanentes da actividade laboral, geralmente de mais exigência fisica, nas classes sociais mais baixas. Pontuações mais elevadas na escala dor surgem também acopladas a estas classes sociais, o que está de acordo com o descrito na literatura (2).

No que diz respeito ao impacto da doença na QdVRS verificou-se que os doentes com LNH apresentaram melhor função social que as restantes patologias, o que neste estudo poderá dever-se à percentagem significativa de Mieloma Múltiplo no último grupo, que se associa a níveis significativos de morbilidade podendo desta forma afectar a FS.

Ao contrário de outros trabalhos na área da oncologia, neste estudo não foram encontradas diferenças com significado estatístico no que concerne ao estadio provavelmente porque os doentes melhoram rapidamente a QdVRS após a quimioterapia inicial e o estudo incluiu um maioria de doentes em fase iniciais (16). Por outro lado, em Oncologia Hematológica o estadiamento constitui um método pouco preciso de avaliar a massa tumoral e a actividade da doença, tendo surgido de modo a superar essa incapacidade, índices de prognóstico (como o IPI no LNH ou o IPS no Linfoma de Hodgkin) no qual o estadio é apenas um parâmetro entre outros com igual ou maior importância (17,18).

Os doentes com 1ª ou mais recidivas apresentavam mais anorexia em relação aos doentes com diagnóstico inicial, o que está de acordo com o pressuposto que no cancro os mesmos factores que influenciam o crescimento tumoral também são responsáveis pela anorexia associada ao cancro (19).

Além disso, experiência anterior de tratamentos citotóxicos com potencial emético, pode condicionar naúseas e vomitos psicogénicos.

Este estudo permitiu observar que os doentes que se encontravam em tratamento citotóxico actual apresentaram pior desempenho e função social e um maior score na escala de sintomas relativa à obstipação. Isto explica-se pelo facto da quimioterapia ter normalmente um impacto nocivo no bem-estar do doente e na QdVRS, como foi previamente publicado (20). Verificou-se ainda que quanto maior o número de esquemas de tratamentos citótoxicos efectuados, maior a sintomatologia álgica. Avança-se a hipótese da quimioterapia causar um impacto negativo cumulativo no doente, físico ou psicológico, reflectindo-se num menor limiar álgico. Pode também haver taquifilaxia aos analgésicos ou associação à resistência da doença.

A importância de relacionar os níveis de hemoglobina com a QdV, deve-se ao facto da anemia ser uma condição muito comum nos doentes com cancro, repercutindo-se em termos físicos e psicológicos, afectando a QdV (21- 23).Neste projecto pretendeu-se perceber a relação entre os níveis de hemoglobina sérica e a QdVRS. Constatou-se a existência de correlações com significado estatistico em diversos domínios, apresentando os doentes com níveis superiores de hemoglobina melhor função física, emocional, social, desempenho e QdVida/Saúde Global e menor sintomatologia no que refere à fadiga, náuseas/ vómitos, anorexia e diarreia. Tendo em conta o tamanho da amostra, todas estas correlações são consideradas válidas, salientando-se o DE, FS e FE por apresentarem os maiores níveis de correlação. A maioria dos estudos revela que a anemia relacionada com o cancro está associada a maiores índices de fadiga, menor capacidade para o trabalho e pior QdV o que vai de encontro aos resultados obtidos neste estudo (21-23).

É importante salientar que, dado o escasso número de artigos na literatura portuguesa relativos ao estudo da influência de factores socio-demográficos e clínicos na QdVRS dos doentes oncológicos, os resultados foram analisados segundo uma perspectiva comparativa com estudos realizados noutros países. Particularmente em doentes hemato-oncológicos, esta temática tem sido pouco explorada.

Apontam-se como principais limitações a este trabalho o facto da população utilizada ser relativamente pequena, o que obrigou à formação de subgrupos com tamanho limitado influenciando osresultados,e o facto da aplicação do EORTC QLQ-C30 se efectuar de forma transversal, ou seja, num período curto de tempo. Nestes doentes é previsivel uma evolução dinâmica da QdVRS dependendo da fase de tratamento do doente. Ainda relativamente à população, salienta-se o facto de a aplicação dos questionários aos doentes hemato-oncológicos de um único centro, limitar a sua aplicação, nomeadamente a outras populações, hospitais, ou patologias.

 

Conclusão

O conhecimento e compreensão das repercussões da patologia oncológica nos diferentes aspectos da QdV é um passo importante na definição de estratégias visando melhorar a QdV e bem estar dos doentes. Cada vez mais importa perceber se o facto de prolongar a vida representa efectivamente qualidade de vida. Assim neste estudo, identificaram-se factores socio-demográficos e clínicos que afectam vários domínios da QdVRS dos doentes hemato-oncológicos do HSM. Estes dados, alertam para

o facto da necessidade de atenção para as várias dimensões da QdV e para o contexto biopsicossocial onde o doente oncológico se insere, de forma a poder oferecer uma melhor adequação dos serviços de saúde às reais condições destes doentes e assim minorar o impacto da doença e dos tratamentos na sua QdV.

 

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Correspondencia:

Dr.ª Luísa Queiroz

Serviço de Oncologia Médica Hospital de Braga Apartado 2242 4701-965 Braga. E-mail: lavqueiroz@gmail.com

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