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Arquivos de Medicina

On-line version ISSN 2183-2447

Arq Med vol.23 no.2 Porto Mar. 2009

 

Confidencialidade, Aconselhamento e Discriminação

 

Maria do Céu Rueff

Centro de Direito Biomédico da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra

 

Na exposição que se segue ter-se-ão em conta três mudanças de paradigma nesta matéria:

1 - Da “doença dos outros” à doença que “está entre nós” e é susceptível de atingir todos.

2 – Da notícia da mortalidade à notícia da vida em diferente realidade, ou a terapia anti-retroviral que permite viver com relativa qualidade.

3 – Da política de saúde pública de isolamento à defesa dos Direitos Humanos em saúde (1, 2).

Um estudo da Pan American Health Organization (3) pôs em evidência como estigma, discriminação, HIV/AIDS se relacionam e potenciam, tornando claro que o ponto de partida para um cenário ideal reside na identificação do HIV através de testes, que permitirão os cuidados de saúde e apoio, evitando-se o estigma e atingindo-se a prevenção, num ciclo que deveria suceder-se.

Recordámos a política dos “três Cs”: consent, counselling, confidentiality -, dos instrumentos internacionais (4) e a questão médica dos modos de transmissão do vírus (é o comportamento não protegido – e portanto não esclarecido acerca dessa possibilidade - que cria a susceptibilidade de transmissão, transformando-se no comportamento de risco).

Enfatizou-se o repúdio do “isolamento epidemiológico” dos chamados grupos de risco (5), sendo recordado que tal política significa não só a negação da verdade de que qualquer pessoa, seja qual for o grupo a que pertence, pode ser responsável pela propagação de HIV, como leva à discriminação arbitrária.

Os perigos pressentidos na política de detecção precoce relacionam-se com as seguintes questões, entre as mais frequentes colocadas no âmbito da discussão ético-jurídica:

a) A identificação do síndroma por meio de exame para detectar a infecção precoce deve ser obrigatória e determinando a falta de consentimento para a obtenção do teste?

Qualquer intervenção médica é considerada interferência no direito ao respeito pela vida privada, constituindo privação da liberdade. Recolher sangue no âmbito de exame médico para detectar HIV constitui ofensa à integridade física e se for efectuada por médico sem consentimento do paciente é facto que consubstancia o crime de intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos arbitrários - art 156º do C. Penal. A licitude dos testes de despistagem só ocorre com o consentimento informado, só então havendo compatibilidade com o artigo 8º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

Pareceimprovável, nas circunstâncias presentes, que algum esquema de rastreio obrigatório pudesse vir a satisfazer o teste de “ser necessário numa sociedade democrática”, para protecção da saúde pública, tal como exige o nº 2 do art. 8º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (política do Conselho da Europa, desde Recomendação Nº R (89) Comité de Ministros de 24 de Outubro de 1989). Alternativa: disponibilidade da realização de testes voluntários e campanha baseada na informação e educação, que encoraje o abandono de comportamentos de risco.

b) A Portaria nº 258/2005, de 16 de Março, que determinou a inclusão da infecção por HIV/Sida na tabela de doenças de declaração obrigatória, significará o fim da confidencialidade médica em matéria de HIV/Sida?

O objectivo da Portaria expressa no verso da folha de notificação: Definição de Casos de Sida para Fins de Vigilância Epidemiológica. Estatuiu-se apenas o dever de declaração dos casos de HIV/Sida ao Centro de Vigilância Epidemiológica das Doenças Transmissíveis, a coberto de confidencialidade, para um correcto entendimento do número de casos. Isto não desencadeia a aplicação à situação de HIV/Sida de regimes associados às tradicionais doenças contagiosas, nomeadamente: a Lei nº 2 036, de 9 de Agosto de 1949 (luta contra as doenças contagiosas), ou diplomas que prevêem a evicção escolar por motivos de doenças transmissíveis.

A Portaria nº 258/2005 prevê o modo de protecção dos dados a fornecer, pelo que o dever de declaração é feito de modo “procedimentalmente” controlado, não se confundindo com comunicação de informação a terceiros.

c) A instituição de programas de detecção precoce implica a quebra do segredo médico e a não protecção do anonimato e dos dados médicos em Saúde?

A resposta é liminarmente negativa.

A protecção do segredo médico ancora-se no art. 26º da CRP. As garantias legais da sua protecção encontram-se neste preceito e no Código Penal através da previsão dos crimes de violação de segredo e violação de segredo por funcionário público (artigos 195º e 383º).

A Lei (da Protecção de Dados Pessoais - LPDP) nº 67/98, de 26 de Outubro, proíbe em geral o tratamento de “dados sensíveis” (art 7º, nº 1), onde se referem, entre outros, dados pessoais atinentes à vida privada, origem racial ou étnica, bem como dados relativos à saúde e à vida sexual, incluindo os dados genéticos.

Também os artigos 85º a 93º do Código Deontológico dos Médicos (Regulamento nº 14/2009, DR, 2ª Série, Nº 8, 13 de Janeiro de 2009) vinculam os médicos ao segredo, sob pena de sanção disciplinar.

O estudo ONUSIDA (6) Estigma, discriminação e violação dos direitos humanos em relação ao HIV – Estudos de casos de programas bem sucedidos revelou que, apesar de metade das pessoas com HIV entrevistadas terem dito guardar segredo, 45% afirmaram que as equipas de cuidados lhes tinham dado confiança bastante para partilhar as informações sobre a sua seropositividade com outros, aumentando o número de pessoas dispostas a “tornar público” o seu estado serológico, depois de revelarem em grupos de apoio. Aconteceu assim no Projecto do Cambodja e manteve-se a tendência nos projectos da Tailândia, Bielorrússia e Uganda.

Mas há que ter em conta duas notas importantes:

1) Não confundir programas de detecção (voluntária) precoce com testagem obrigatória.

2) Não confundir revelação pública do estado serológico, por vontade própria, com cessação da confidencialidade. É que esta confidencialidade permite que as pessoas possam vir sem medo ao sistema para serem testadas, ao passo que aquela mostra apenas que tais pessoas podem viver sem esconder o estatuto serológico porque não serão então discriminadas. Nisto consiste o paradoxo do segredo: respeitando-se a confidencialidade é aumentada a confiança, sendo potenciadas as condições que permitem maior franqueza e abertura à verdade em saúde.

 

REFERÊNCIAS

1 - Rueff MC. Direitos Humanos, acesso à saúde e VIH/Sida. Arq Med 2007;21:59-65.         [ Links ]

2 - Rueff MC. O Segredo Médico como garantia de não discriminação. Estudo de caso HIV/SIDA. Coimbra: Centro de Direito Biomédico da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra / Coimbra Editora; 2009 (no prelo).

3 - Pan American Health Organization. Understanding and responding to HIV/AIDS - related stigma and STIGMA and DISCRIMINATION in the HEALTH SECTOR, Publications of the Pan American Health Organization, World Health Organization; 2003.

4 - WHO/ILO. Joint ILO/WHO guidelines on health services and HIV/AIDS, Geneva: International Labour Office; 2005.

5 - Ayres JRCM. Práticas educativas e prevenção do HIV/Aids: lições aprendidas e desafios actuais. Interface - Comunic, Saúde, Educ 2002;6:11-24.         [ Links ]

6 - ONUSIDA. Estigma, discriminação e violação dos direitos humanos em relação ao VIH - Estudos de casos de programas bem sucedidos, Genebra: Colecção Melhores Práticas da ONUSIDA; 2005.

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