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Arquivos de Medicina

versão On-line ISSN 2183-2447

Arq Med v.23 n.1 Porto  2009

 

Síndrome de Choque Tóxico Estafilocócico

Carla Pina*, Isabela Carvalho†, Marcília Teixeira*, Graça Rodrigues*

Serviços de *Ginecologia e Obstetrícia e †Medicina, Centro Hospitalar do Tâmega e Sousa, Penafiel

 

Os autores apresentam um caso clínico de Síndrome de Choque Tóxico Estafilocócico (SCTE) num puerpério cirúrgico de gravidez gemelar, com realce das particularidades clínicas e terapêuticas, tecendo algumas considerações teóricas actuais sobre este tema.

Palavras-chave: síndrome de choque tóxico; Staphylococcus aureus.

 

Staphylococcal Toxic Shock Syndrome

The authors present a clinical case of Staphylococcal toxic-shock syndrome in a surgical postpartum twin pregnancy and review the most up to date literature of such matter.

Key-words: toxic-shock syndrome; Staphylococcus aureus.

 

INTRODUÇÃO

O Síndrome de Choque Tóxico Estafilocócico (SCTE) foi descrito pela primeira vez em 1978 (1) associado a casos menstruais, isto é, secundário ao uso de tampões altamente absorventes.

O SCTE é provocado essencialmente pela toxina-1 do Síndrome de Choque Tóxico sendo produzida por 90100% das estirpes de Staphylococcus aureus associados aos casos menstruais e por mais de metade das estirpes responsáveis pelos casos não-menstruais (2,3).

O S. aureus é um coco aeróbico, Gram-positivo, responsável por várias infecções, variando em gravidade desde foliculites e abcessos cutâneos até endocardite e bacteriémia. O S. aureus coloniza a pele e as mucosas de 30 a 50% de adultos e crianças saudáveis (4).

Para o diagnóstico desta rara entidade clínica, devemonos basear nos critérios revistos em 1997 pelo Centers for Disease and Prevention (CDC), que ainda se mantêm actuais (Tabela1) (5).

Aproximadamente metade dos casos de SCTE são não-menstruais, ocorrendo em várias situações clínicas, nomeadamente em infecções puerperais da ferida operatória, mastite, septorinoplastia, sinusite, osteomielite, artrite, queimaduras, lesões cutâneas, infecções respiratórias por influenza e enterocolite (6); entre todos estes casos, 93% envolvem mulheres.

A taxa de mortalidade do SCTE é de 5% (7).

 

CASO CLÍNICO

Doente de 30 anos, caucasiana, casada e natural de Paredes. Gesta 2 Para 3 (1º parto eutócico; 2º parto distócico por cesariana por gemelar e 1º feto em apresentação de pelve).

Antecedentes ginecológicos: menarca – 12 anos, interlúneos regulares (28/28 dias); cataménios – 5 dias. Coitarca – 20 anos.

Antecedentes pessoais e familiares irrelevantes.

Foi internada às 38 semanas de gestação, na véspera da cirurgia, tendo a mesma ocorrido sem intercorrências. Teve alta ao 3º dia de puerpério, clinicamente bem.

Ao 6º dia de puerpério iniciou febre (Ta - 39ºC), rash macular pruriginoso generalizado, astenia e mau-estar geral, com 3 dias de evolução, sintomatologia esta acrescida de dispneia, náuseas e dor abdominal no 3º dia, pelo que recorreu ao Serviço de Urgência (SU) do Centro Hospitalar Tâmega e Sousa.

No SU, apresentou-se prostrada, muito queixosa, com febre (Ta - 39ºC), hipotensão (TA - 85/45 mm/Hg), taquicardia (FC - 145 bpm), taquipneia (FR - 48 ciclos/min), eritema não descamativo generalizado, com acentuação nas regiões abdominal, torácica,joelhos, palma das mãos e planta dos pés. O exame abdominal revelou abdómen difusamente doloroso à palpação, globoso, com defesa e ruídos hidraéreos intestinais diminuídos; a ferida operatória não apresentava sinais inflamatórios. O exame ginecológico e mamário não revelaram alterações, com lóquios e involução uterina normais.

As principais alterações dos exames laboratoriais foram: hemoglobina 16,9 g/dl, hematócrito 47,4%,leucóci-tos 7,5x103/µl, neutrófilos 95,4%, plaquetas 90000/mm3, ureia 68 mg/dl, creatinina 2,2 mg/dl,AST 145 UI/L,ALT 151 UI/L, PCR 336,4 mg/dl e estudo da coagulação normal.

A ecografia abdominal e pélvica revelou a presença de cavidade uterina virtual, líquido livre em grande quantidade e distensão marcada das ansas intestinais, com conteúdo líquido.

Atendendo à presença de abdómen agudo, procedeu-se a laparotomia exploradora. Após a remoção dos agrafes, verificou-se a saída de exsudado purulento em elevada quantidade (enviado para exame cultural e teste de sensibilidade aos antibióticos). A cavidade abdominal e pélvica encontrava-se preenchida com moderada quantidade de exsudado seroso, tendo-se procedido a lavagem abundante com soro fisiológico (SF).

Esteve na Unidade de Cuidados Intensivos durante 3 dias, em ventilação mecânica assistida durante 24 horas. Foi-lhe efectuada fluidoterapia e suporte vasopressor com dopamina. Iniciou antibioterapia empírica com Clindamicina (600 mg 6/6 horas, endovenoso-ev) associado a tigecilina (50 ml em 100 cc SF, em duas doses, ev), durante 14 dias.

A doente apresentou boa evolução clínica e analítica (normalização dos valores laboratoriais no final da 2ª semana), tendo-se isolado S. aureus sensível à meticilina no sangue e no exsudado purulento. Teve alta ao 21º dia.

Cerca de 1 ano após esta ocorrência, a doente encontra-se bem e sem sequelas aparentes.

DISCUSSÃO

Neste caso clínico, verificamos a presença de febre, hipotensão, erupção macular generalizada associados a envolvimento hematológico, renal e hepático. As hemoculturas confirmaram a existência de S. aureus meticilino-sensível. Segundo os critérios do CDC, reúnem-se os critérios necessários ao diagnóstico de SCTE.

Na presença de uma doente em choque associado a abdómen agudo, foi urgente e inevitável a necessidade de iniciar antibioticoterapia e de efectuar laparotomia exploradora pela forte suspeita de clínica de abcesso intra-abdominal ou então exclusão de outras situações patológicas (ex: presença de corpos estranhos intraabdominais, atendendo à cirurgia recente a que foi submetida).

Os sintomas e sinais de SCTE desenvolvem-se rapidamente, sendo em média 2 dias nos casos póscirúrgicos; contudo, já foram descritos casos ocorridos 65 dias após a cirurgia (8).

O diagnóstico do SCTE é baseado nos critérios do CDC (5) (Tabela 1). Para cumprir os critérios, os doentes devem apresentar febre >38,9ºC, hipotensão, eritema difuso e descamativo (este na convalescença) e envolvimento de, pelo menos, 3 sistemas orgânicos. Apesar de 80-90% destas doentes apresentarem isolamento de S. aureus das feridas operatórias ou das superfícies mucosas, o isolamento do agente não é necessário parao diagnóstico do SCTE.

 

Tabela 1 - Definição de Síndrome de Choque Tóxico baseado nos critérios do CDC (1997).

A apresentação clínica é semelhante nos casos menstruais ou não-menstruais; num estudo efectuado com pequena amostra, os SCTE não-menstruais foram associados a início mais precoce de rash e febre, complicações renais e do SNC e menos envolvimento musculo-esquelético. As feridas operatórias frequentemente apresentam aspecto normal devido à menor reacção inflamatória associada à toxina tipo 1 do S. aureus (9).

Embora a maioria dos casos de SCTE seja provocada por S. aureus meticilino-sensíveis, a emergência de S. aureus meticilino-resistentes (MRSA) é uma realidade, particularmente devido à presença de estirpes da comunidade cada vez mais patogénicas e, por outro lado, ao uso generalizado e frequente de antibioterapia (10,11).

As alterações laboratoriais reflectem a presença de choque e a falência orgânica.Aleucocitose pode não estar presente, mas o número total de neutrófilos maduros e imaturos geralmente excede 90%, com neutrófilos imaturos correspondendo a 25-50% do total. Trombocitopenia e anemia estão presentes durante os primeiros dias, frequentemente acompanhados por tempo de protrombina e tromboplastina parcial activada prolongados. Outras alterações laboratoriais que reflectem falência orgânica incluem: elevação da ureia e creatinina séricas, elevação dos testes da função hepática e elevação da creatininafosfocínase (CPK). A maior parte dos testes laboratoriais volta ao normal 7 a 10 dias após o início da doença.

A pedra angular do tratamento do SCTE é o tratamento de suporte. Os doentes necessitam de fluidoterapia intensiva (10 a 20 litros/dia) para manter a perfusão devido à presença frequente de hipotensão refractária. Embora a pressão arterial possa melhorar apenas com fluidoterapia, por vezes pode ser necessário o recurso a vasopressores. É obrigatória a exclusão de materiais estranhos na vagina (ex: tampões, esponjas contraceptivas) bem como a drenagem de qualquer foco infeccioso.

Hemoculturas, culturas e teste de sensibilidade aos antibióticos da vagina nos casos menstruais ou de material obtido a partir de um foco infeccioso ou de ferida operatória nos casos não-menstruais são essenciais devido à possibilidade da presença de um microorganismo MRSA (10,11).

Relativamente à antibioterapia, não há consenso se os antibióticos alteram o curso desta doença; no entanto, a terapêutica anti-estafilocócica é necessária para a erradicação dos portadores e prevenção das recorrências. As recomendações actuais são para iniciar tratamento empírico com clindamicina (adultos: 600 mg 6/6horas, ev) associada a vancomicina (adultos: 30 mg/Kg/dia, ev, dividido em 2 doses). Caso haja disponibilidade de cultura e teste de sensibilidade aos antibióticos, deve administrar-se clindamicina associado à oxacilina (2 g 4/4horas, endovenoso) ou tigecilina (50 ml em 100 cc SF, repartido por duas doses/dia). Dever-se-á manter a vancomicina na presença de MRSA (12), com duração de tratamento entre 10 a 14 dias.

Apesar de não existirem estudos randomizados e controlados com o uso de globulina imune endovenosa, está recomendado o seu uso nos casos graves de SCTE refractários à fluidoterapia, na dosagem de 400 mg/Kg em dose única (13). Não se recomenda o uso de corticóides dado que não existem dados suficientes que apõem esta prática.

 

CONCLUSÕES

Embora o puerpério não receba a mesma atenção que muitos outros aspectos da gravidez, a sua importância permanece incontestável, atendendo a que 60% da mortalidade materna ocorre durante este período, sendo a infecção puerperal a complicação mais frequente.

Os factores de risco para o caso apresentado foram: a gravidez, a Diabetes Gestacional, o puerpério, o internamento hospitalar e a intervenção cirúrgica. Os 3 primeiros contribuíram pela imunosupressão a que estão associados, a intervenção cirúrgica constituiu provavelmente a porta de entrada e o internamento hospitalar na provável aquisição duma infecção nosocomial.

Em suma, apesar de constituir uma entidade clínica rara, é necessário ter presente os critérios diagnósticos do CDC para que seja prontamente diagnosticada e tratada atempadamente contribuindo, desta forma, para uma evolução favorável e prevenção de sequelas e recorrências.

 

REFERÊNCIAS

1 -Todd J, Fishaut M, KapralF, Welch T. Toxic-shock syndrome associated with phage-group-I Staphylococci. Lancet 1978;2:1116.

        [ Links ]

2 -Bergdoll MS, Crass BA, Reiser RF, et al. A new staphylococcal enterotoxin, enterotoxin F, associated with toxic-shock-syndrome Staphylococcus aureus isolates. Lancet 1981;1:1017.

3 -Schlievert PM, Shands KN, Dan BB, et al. Identification and characterization of an exotoxin from Staphylococcus aureus associated with toxic-shock syndrome. J Infect Dis 1981;143:509.

4 -Kluytmans J, van Belkum A, Verbrugh H. Nasal carriage of Staphylococcus aureus: epidemiology, underlying mechanisms, and associated risks. Clin Microbiol Rev 1997;10:505.

5 -Centers for Disease Control and Prevention. Case definitions for infectious conditions under public health surveillance. MMWR Recomm Rep 1997;46(RR-10):1.

6 -Kotler DP, Sandkovsky U, Schlievert PM, Sordillo EM. Toxic shock-like syndrome associated with staphylococcal enterocolitis in an HIV-infected man. Clin Infect Dis 2007;44:e121.

7 -Hajjeh RA, Reingold A, Weil A, et al. Toxic shock syndrome in the United States: surveillance update, 1979-1996. Emerg Infect Dis 1999;5:807.

8 -Bartlett P, Reingold AL, Graham DR, et al. Toxic shock syndrome associated with surgicalwoundinfections. JAMA 1982;247:1448.

9 -Kain KC, Schulzer M, Chow AW. Clinical spectrum of non-menstrual toxic shock syndrome (TSS): comparison with menstrual TSS by multivariate discriminant analyses. Clin Infect Dis 1993;16:100.

10 -Durand G, Bes M, Meugnier H, et al. Detection of new methicillin-resistant Staphylococcus aureus clones containing the toxic shock syndrome toxin 1 gene responsible for hospital- and community-acquired infections in France. J Clin Microbiol 2006;44:847.

11 -Fey PD, Said-Salim B, Rupp ME, et al. Comparative molecular analysis of community- or hospital-acquired methicillin-resistant Staphylococcus aureus. Antimicrob Agents Chemother 2003;47:196.

12 -Andrews MM, Parent EM, Barry M, Parsonnet J. Recurrent Nonmenstrual Toxic Shock Syndrome: Clinical Manifestations, Diagnosis, and Treatment. Clin Infect Dis 2001; 32:1470.

13 -Keller MA, Stiehm ER. Passive immunity in prevention and treatment of infectious diseases. Clin Microbiol Rev 2000;13:602.

 

Correspondência:

Dr.ª Carla Pina

Serviço de Ginecologia e Obstetrícia

Centro Hospitalar do Tâmega e Sousa, EPE

Lugar do Tapadinho

4564-007 Penafiel

e-mail: carlampina@gmail.com

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