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Arquivos de Medicina

On-line version ISSN 2183-2447

Arq Med vol.22 no.2-3 Porto  2008

 

Ricardo Jorge

Saúde Pública

 

Henrique Barros

Serviço de Higiene e Epidemiologia, Faculdade de Medicina da Universidade do Porto

 

Ricardo Jorge, merece ser visitado como um marco e enquanto personagem em si. Merece até a reparação simbólica, pois viveu essa forma poeticamente glosada de esta pátria flagelar os melhores - e, como sempre, à sombra póstuma do seu brilho deixar larvar muitos medíocres. Mas, muito mais que isso, os 150 anos que simbolicamente no seu nascimento se iniciam transportam as mudanças essenciais nos paradigmas da saúde, do ensino das profissões que à saúde respeitam e nos caminhos da investigação, que levaram a uma radical mudança na nossa forma de viver, de querer viver e de pensar a vida.

A saúde, vista sobretudo como a ausência de doença, passou a ser percebida como o resultado de interacções subtis entre hospedeiros que se acreditavam centrais - as pessoas - e agentes microbianos que invadiam fortalezas para as quais não se conheciam as estratégias de protecção. Depois, foi a invasão dos estilos de vida, a subtileza da passagem das vinganças divinas - as doenças como castigo por escolhas desconhecidas - para as flagelações pessoais - porque escolhi um trabalho, uma alimentação, um parceiro(a) - agora posso morrer. Ah! E inventadas que foram as protecções sociais perante a doença - afinal eram desígnios de Deus - podem agora arder as ajudas no altar das vítimas culpadas das suas escolhas evitáveis: e já não temos que pagar!

A saúde pública - conceito de subtis ressonâncias - foi também mudando radicalmente neste século e meio. No limite, ao propor-nos visões para o mundo em que desejamos viver e ao organizar respostas para os desafios que o desenho desse mundo sempre apresenta, a saúde pública nunca deixou de estar presente, desde que as pessoas se encontraram e organizaram socialmente. Mas no tempo que nos interessa, viveu muito da passagem de um lugar de autoridade (que por vezes teima em não ser ultrapassado) para um lugar de génio e inteligência: o exercício difícil de harmonizar interesses e saberes e, ainda por cima, fazê-lo de forma quantificada e com mecanismos de avaliação. Até para resultados que nos invadem, como as mortes evitáveis ou as condições reconhecidamente insalubres -físicas, intelectuais, económicas e sociais - em que nos vemos obrigados a viver! Por isso, a ciência, com os seus instrumentos, tomou o lugar da polícia sanitária (ainda que ela - a ciência - continue por vezes a ser usada com a ligeireza do bastão!) e a aventura de se pertencer ao mundo da saúde pública tornou-se muito mais atraente e parte natural de um desafio com o recato, a liberdade e o risco do mundo universitário.

Mas o desafio verdadeiro destes 150 anos cuja visita agora se inicia - porque foi imaginada como um envolver que culmina no dia da exposição a apresentar quando estiver habitável e habitada a casa do Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto - será compreender porque mudou tanto, mas só na aparência, a nossa capacidade de conhecer e mudar o mundo na perspectiva que a saúde pública nos propõe: enquanto aventura social. Afinal somos visitados pelas mesmas doenças, mais graves até na subtileza da fuga selectiva, conhecemo-las melhor mas isso resulta apenas numa área maior de desconhecimento que a cada pedaço de sombra conquistado se segue maior e maior, na sua noite a visitar. E a nossa função, sobretudo de cientistas, é promover excursões a essa noite desafiante. E fazê-lo bem, cada vez melhor! Inventamos a precaução mas não descobrimos novos mundos, vamos mais depressa mas pelos mesmos caminhos, deslumbramo-nos ciclicamente com descobertas que afinal devanecem fora da escala do laboratório. Os micróbios perderam para a caixa negra do ambiente, o ambiente para a caixa colorida dos genes, no impasse vem a escolha pelas interacções salvadoras e agora vamos descascando o conhecimento como uma cebola em busca do centro. Ganhamos anos de vida, muitos, mas não soubemos reparti-los. Verdadeiramente, estamos quase só perigosamente mais perto uns dos outros, mais parecidos e portanto menos livres e ainda não percebemos se era esse o nosso destino. Primeira etapa: conhecer como aqui chegamos para pensar como saímos. E, claro está, fazê-lo como se deve: com trabalho criativo, competindo e cooperando. Mas diga-se, também porque chega de quixotismo, com os meios a que temos objectivamente direito e por isso já cansa de pedir. Envergonha, até. Mais 150 anos virão. Acreditamos que sim: para isso a saúde pública contribuirá. E não esqueçam que alguém se irá lembrar disso. Em 150 anos!

 

Porto, 7 de Maio de 2008

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