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Arquivos de Medicina

On-line version ISSN 2183-2447

Arq Med vol.21 no.2 Porto Mar. 2007

 

Direitos Humanos, Acesso à Saúde e VIH/sida

Maria do Céu Rueff

Universidade Lusíada, Lisboa

 

I -

Desde a Declaração de Londres, de 28 de Janeiro de 1988, proferida na Cimeira Mundial de Ministros da Saúde e promovida pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e pelo Governo britânico, que se tem sublinhado a necessidade de protecção dos direitos humanos e da não discriminação dos portadores do HIV e se tem considerado esta doença como um problema de saúde pública, a que se deve fazer frente com razões da mesma natureza1. Posteriormente este desiderato encontrou consagração noutros textos e locais, vindo a confirmar-se até ao presente2.

II -

Mais especificamente, os princípios e direitos humanos para protecção da dignidade das pessoas infectadas e afectadas pela infecção do HIV/sida, bem como tendentes a prevenir o alastramento desta epidemia incluem: o direito à saúde; o direito à igualdade e o princípio da não discriminação; o direito à educação e informação; os direitos da criança; o direito ao trabalho; o direito à privacidade; o direito a casar e a fundar uma família; o direito à liberdade, o direito à segurança social, assistência e bem estar; o direito à liberdade de movimentos e a não ser submetido a tratamentos cruéis desumanos ou degradantes, entre outros.

Todos estes direitos têm consagração nos instrumentos internacionais a que Portugal aderiu, nomeadamente a Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948), A Convenção Europeia dos Direitos Humanos (doravante CEDH, de 1950 e respectivo Protocolo nº 12), o Pacto Internacional Sobre Direitos Económicos Sociais e Culturais (1966) e o Pacto Internacional Sobre os Direitos Civis e Políticos (1966).

III -

Debruçar-nos-emos, no entanto, apenas sobre as questões relativas: ao direito à saúde, à liberdade, igualdade e privacidade, conscientes de que a questão tenderá a projectar-se nos seguintes aspectos: a) despistagem ou identificação do síndroma por meio de testes ou exames para detectar a infecção; b) tratamento não discriminatório tanto no acesso à saúde, como à educação e admissão ao emprego, c) revelação de informação sobre a doença a terceiros, com quebra da confidencialidade.

IV -

Começando pela questão da despistagem por meio de testes ou exames para detectar a infecção3, cumpre antes de mais dizer que Comissão Europeia dos Direitos Humanos afirmou (no caso Nº 8278/78, Decision1979 DR 18. 154) que uma intervenção médica obrigatória, mesmo se de menor importância, tem de ser considerada como interferência no direito ao respeito pela vida privada, constituindo também uma privação da liberdade 4 5.

Os especialistas em saúde pública têm sido unânimes em afastar, por outro lado, o rastreio compulsivo de HIV, enquanto medida eficaz na redução da propagação da infecção, excepto no caso de doação voluntária de sangue,sémen, outras células, tecidos ou órgãos e mesmo aí mediante consentimento informado e tendo em conta as regras da confidencialidade médica, o que determina que tal rastreio se vem a tornar efectivamente voluntário6.

Esta é, de resto, a política seguida pelo Conselho da Europa e sua Comissão de Ministros desde a Recomendação Nº R (89) 14 (adoptada pelo Comité de Ministros de 24 de Outubro de 1989) sobre os Incidentes éticos da infecção do HIV no quadro sanitário e social7.

Sublinha-se, em alternativa e como via mais eficaz, a disponibilidade da feitura de testes voluntários, concomitantemente com uma campanha largamente baseada na informação e educação, que encoraje o abandono de comportamentos de alto risco8.

Aqui se recordam as palavras de Jonathan Mann, Director do Programa Global sobre a Sida da Organização Mundial de Saúde, que as proferiu em 1988 (IV Conferência Internacional da SIDA):

 

Na maior parte dos casos, a transmissão do HIV envolve o comportamento

de duas pessoas; uma mudança no comportamento

de qualquer uma delas, seja da pessoa já infectada por HIV ou

daquela que não se encontra infectada, será suficiente

para impedir a transmissão do HIV9.

 

Por outro lado, uma Resolução do Conselho e dos Ministros da Saúde dos Estados-Membros, de 22 de Dezembro de 1989 (in: Jornal Oficial nº C 010 de 16/01/1990, pp.0003 a 0006) afirma que as análises de diagnóstico devem ser efectuadas numa base voluntária e confidencial, no âmbito dos sistemas de saúde pública, podendo ser criados dispositivos suplementares que dêem às pessoas a possibilidade de fazerem essas análises no anonimato e, se possível, gratuitamente.

Convém recordar que recolher sangue no âmbito de um exame médico para detectar HIV constitui ofensa à integridade física da pessoa em causa e se for efectuada por um médico sem o consentimento do paciente é facto que consubstancia o crime de intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos arbitrários, previsto e punido no art 156º do C. Penal. Assim e tal como referiu o Procurador Geral António Bernardo Colaço (v. Revista do SMMP, 1º Trimestre, 2003, pp. 10 1 e seg):

A licitude dos testes de despistagem só ocorre com o consentimento

informado do candidato ao trabalho ou trabalhador, só assim havendo

compatibilidade com o artigo 8º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

 

Deve fazer-se uma referência à existência em Portugal de uma rede nacional de CADs10.

Os CAD são centros de Aconselhamento e Detecção Precoce de VIH, inicialmente da responsabilidade da Comissão Nacional de Luta contra a sida (CNLCS) que, em articulação com os Centros de Saúde, permitem que a população tenha acesso a informação e ao teste voluntário, confidencial e gratuito da sida, possibilitando a detecção precoce da infecção VIH. Associando a este conhecimento o aconselhamento pré e pós-teste bem como um correcto encaminhamento para as entidades de saúde competentes, os cidadãos infectados pelo VIH são acompanhados, quer psicológica, quer medicamente.

A implementação dos CAD foi considerada pela CNLCS uma medida prioritária no controle da evolução da epidemia da sida em Portugal, sendo reconhecido que se contribuiria para a diminuição da propagação da infecção VIH/sida, quer pela consciencialização da população, quer pelo controlo mais precoce da doença com medicamentos antiretrovíricos11.

V -

Relativamente ao tratamento não discriminatório no acesso à saúde há que fazer referência ao pacote de medidas já tomadas pelo governo português de molde a igualar o tratamento conferido aos nacionais e estrangeiros, à cabeça das quais se encontra o Despacho do Ministro da Saúde nº 25.360/2001 (de 16 de Novembro, publicado no DR nº 286, II Série, de 12 de Dezembro), que faculta aos cidadãos estrangeiros que residam legalmente em Portugal o acesso aos cuidados de saúde e assistência medicamentosa prestados pelos serviços que constituem o Serviço Nacional de Saúde (SNS). Este acesso é facultado mediante a exibição do “cartão de utente” do SNS, este último fornecido a quem apresente “autorização de permanência ou residência” ou “visto de trabalho”. De acordo com o Despacho de 2001 supra identificado também os cidadãos estrangeiros que não tenham esta autorização de permanência, residência ou visto de trabalho têm acesso aos serviços de saúde se apresentarem um documento da Junta de Freguesia indicando que residem em Portugal há mais de 90 dias. A todos os cidadãos estrangeiros referidos poderão ser cobradas as despesas efectuadas, mas exceptuam-se as situações que ponham em perigo a saúde pública, que uma circular do Director-Geral de Saúde e Alto Comissário da Saúde (de 2/4/02) esclarece serem “aquelas relacionadas com as doenças transmissíveis e a vigilância da saúde, nomeadamente a saúde materna, infantil e planeamento familiar”.

É de referir, mais recentemente, a aprovação pela Resolução do Conselho de Ministros nº 63-A/2007 (de 8 de Março), do Plano para a Integração dos Imigrantes. Aqui, há que sublinhar os pontos 22 a 24, onde consta a promoção do acesso dos imigrantes aos serviços da saúde, bem como o acesso à saúde de cidadãos estrangeiros em situação irregular, através da possibilidade da sua integração no SNS, pela emissão de credencial em alternativa ao atestado de residência emitido pelas Juntas de Freguesia. Na parte II deste último instrumento (respeitante à listagem de medidas, indicadores e metas) o Governo propõe-se mesmo elaborar e emitir credenciais que permitam o acesso à saúde de 500 cidadãos estrangeiros em situação irregular.

VI -

Quanto ao princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º da nossa CRP e à proibição de tratamento discriminatório a que se refere o artigo 14º da CEDH, passamos a analisar a recente medida legislativa - Portaria nº 258/2005, de 16 de Março - , que determinou a inclusão da infecção por HIV/sida na tabela de doenças de declaração obrigatória12. Duvidamos da justeza desta medida, mas olhá-la-emos não tendo em conta o eventual efeito perverso que possa vir a ter de aumentar o estigma e a discriminação que a posse da condição do síndrome de imunodeficiência humana já representava e continua a representar em Portugal13.

Na verdade, o único objectivo da equiparação do HIV às doenças contagiosas parece ter sido e sobretudo baseando-nos na “filosofia” da Portaria nº 258/2005, de 16 de Março14 a Definição de Casos de sida para Fins de Vigilância Epidemiológica (como se refere expressamente no verso da folha de notificação), mas esse desiderato era igualmente alcançável através da decretação da necessidadede declaração dos casos de HIV/sida a um organismo competente, como de resto já acontecia anteriormente com a comunicação de dados à Comissão Nacional de Luta Contra a sida (CNLCS)15,16.

Era defendido de longa data a necessidade de comunicação da infecção do VIH ao Centro de Vigilância Epidemiológica das Doenças Transmissíveis no Instituto Nacional de Saúde,apesar de a doença não se encontrar, ao tempo, incluída na lista de doenças de declaração obrigatória. Ora foi isto precisamente o que se quis estabelecer em 2005, e portanto, no fundo, estabelecer apenas o dever de declaração dos casos de HIV/sida17 ao Centro de Vigilância Epidemiológica das Doenças Transmissíveis, a coberto de confidencialidade,para um correcto entendimento do número de casos, com fins de vigilância epidemiológica18.

Deve haver assim uma preocupação nos diplomas legais e práticas quotidianas concretas dos hospitais, centros de saúde, consultórios médicos, clínicas privadas, em conjugar o dever de informação dos profissionais de saúde, no caso de declaração oficial de HIV, com o dever de segredo profissional constante tanto do Código Deontológico dos Médicos (publicado na Revista da OM Nº 3/85 Março - CDOM, arts 67º e 68) , como do artigo 195º Código Penal português. Para além da protecção natural eventualmente conferida pelo dispositivo constante de Lei de protecção de dados pessoais (Lei nº 67/98, de 26 de Outubro).

Deve ser sublinhado aliás que este dever de declaração de HIV para efeitos epidemiológicos é feito de modo, eu diria “procedimentalmente” controlado, como se viu, e que ele não se confunde com a comunicação de informação a terceiros, em caso de HIV/sida e risco de propagação de doença19.

Devem ser aqui enfatizados, por outra banda, os aspectos absolutamente singulares desta epidemia que permitem separá-la - e portanto tratá-la diferentemente - das restantes doenças ditas “infecto-contagiosas”. Vejamos.

O síndrome de imunodeficiência humana adquirida é de natureza substancialmente diferente do das restantes doenças constantesdaquela lista e isto por dois motivos: por um lado, devido ao modo detransmissão do vírus; por outro, dadas as circunstâncias e tempo demanifestação da própria doença, que se tornou essencialmente crónica.

Quanto ao primeiro aspecto cumpre dizer que é possível ao portador do vírus ter uma atitude responsável, tomando nomeadamente medidas impeditivas de transmissibilidade da doença, o que a aparta de outras doenças, como por exemplo a tuberculose, transmissíveis por via aérea e de modo independente da atitude comportamental do seu portador, ou, pelo menos, de maneira muito menos controlável por este.

Desta perspectiva, a medida preventiva por excelência de não transmissão da infecção do HIV/sida passa, a um tempo, pela responsabilização dos portadores do vírus, mas, a outro, igualmente pela sua informação, integração e acolhimento no sistema de saúde, o que pressupõe o cativar da confiança de eventuais portadores de HIV/sida.

Haverá pois que “apostar” numa “ética da responsabilidade” do doente e no reconhecimento dos seus direitos e deveres humanos, bem como nos valores da dignidade, integridade e igualdade dentro do sistema de saúde. Alguns autores têm posto em evidência e feito a distinção entre doença transmissível e contagiosa. É o caso, entre nós, de Jorge Torgal (1995)20 e em França de Daudel e Montagnier (1995)21. Estes últimos afirmam concretamente assim:

A sida é uma doença transmissível, mas não contagiosa.

Felizmente, não se transmite “pelo ar” ou através de um aperto de mão,

como as constipações vulgares. O vírus da sida transmite-se

pelo sangue e pelas secreções sexuais (esperma, secreções vaginais).

(...) pode transmitir-se pela mãe contaminada ao feto ou ao recém-nascido.

(...) Nestas circunstâncias, temos o dever de fazer apelo à responsabilização

dos indivíduos.(...) Esta política de responsabilização dos

indivíduos é essencial ( ... ) O seropositivo tem de ser responsável

pelo seu próprio comportamento.”(Daudel e Montagnier (1995: 46, 104 e 105)

Quanto ao segundo aspecto que enunciámos e o qual respeita às circunstâncias e tempo de manifestação da doença, podemos dizer que hoje em dia o portador do vírus HIV pode encontrar-se durante um largo períodode tempo sem sintomas de doença, apesar de já ser seropositivo, o que significa que já se encontra infectado, sendo os anticorpos susceptíveis de detecção no sangue mediante testes e podendo haver transmissão do vírus, mas sem que todavia o indivíduo infectado registe qualquer sintoma22.

Ora, encontramo-nos aqui perante um ser humano portador de um vírus, é certo,mas ainda sem qualquer manifestação de doença, pelo que não será justo tratá-lo e equipará-lo a pessoas em que a doença já se tenha claramente manifestado e sofrendo portanto de eventuais limitações resultantes dos sintomas de esta23.

Convém esclarecer que a inclusão do HIV na tabela de doenças de declaração obrigatória não desencadeia a aplicação à situação de HIV/sida de regimes associados às tradicionais doenças contagiosas, nomeadamente:

- a aplicação da Lei nº 2 036, de 9 de Agosto de 1949, Lei de luta contra as doenças contagiosas, por absolutamente inadequada à situação da infecção por HIV/sida;

- os diplomas que prevêem a evicção escolar por motivos de doenças transmissíveis, por deles não constar a Infecção por HIV/sida (Decreto Lei nº 88/77, de 8 de Março, Decreto Lei nº 229/94, de 13 de Setembro e Decreto Regulamentar nº 3/95, de 27 de Janeiro) .

Perguntar-se-á se é justificado o internamento compulsivo de doentes com HIV/sida?

Não se recomenda o seu internamento compulsivo e baseio-me especialmente na Recomendação da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa nº 1116 (1989), de 29 de Setembro, sobre sida e Direitos Humanos (que sugere a não aplicação do art. 5º da CEDH, relativo ao direito à liberdade e à segurança, no caso de infectados por HIV).

Isto porque é medida que se vem a traduzir em modo de afastamento dos doentes do sistema de saúde, não levando eventuais portadores do vírus a rastrear-se; porque não acautela o suficiente, dado que há sempre o perigo de transmissão após a alta e encontrando-se o portador fora do hospital; porque HIV/sida não tem cura.

Cumpre ainda recordar o Parecer nº 26/95, da Procuradoria Geral da República (in: Diário da República, nº 96, IIª Série, de 24 de Abril de1997), onde se defende que a lei portuguesa actual não exclui a emissão relativamente a indivíduos portadores do VIH do atestado de robustez física e de perfil psíquico previsto na alínea f) do art. 22º do Decreto Lei nº498/88, de 30 de Dezembro. De acordo com o Parecer cabe ao médico, através do atestado, apreciar e avaliar tão só se os indivíduos portadores doVIH dispõem ou não da robustez fisico-psíquica inerente ao exercício das funções a que se candidatam, o que significa a passagem do atestado médico respectivo nesse sentido, em caso afirmativo.

VII -

Referindo-nos, por último, à questão da privacidade, gostaríamos de sublinhar as medidas constantes do Anexo à Recomendação nº R (89) 14 da Comissão de Ministros do Conselho da Europa (24 de Outubro de 1989), que vão no sentido de que seja respeitada a confidencialidade na comunicação de informação sobre seropositividade a terceiros e de que se vele para que em princípio não seja efectuada qualquer comunicação sobre seropositividade aos parceiros(as) sexuais, sem o consentimento expresso do doente.

No direito interno contamos com a possibilidade ou faculdade, absolutamente excepcional e justificada por direito de necessidade ou conflito de deveres, nos termos dos arts. 34º/36 do Código Penal, de comunicação por parte do médico ao companheiro(a), se este correr riscos de ser contaminado e caso o portador(a) do vírus de HIV se recuse a fazê-lo, quando o médico prestar simultaneamente os seus serviços a ambos os membros do casal 24.

Caso os portadores do vírus se recusem a comunicar a situação a parceiros e a ter sexo seguro, não se encontrando o médico ao serviço de ambos os membros e (ou) não sendo sequer possível identificar eventuais parceiros, julgamos que o médico não tem um dever de comunicação indiscriminado e global face a qualquer pessoa que possa correr perigo, pois tais funções extravasam claramente o leque das suas competências como médico.

Nesta situação o médico pode, no entanto, em caso de perigo de transmissão de doença, havendo terceiros identificáveis e em função das circunstâncias concretas do caso, avisar as autoridades de saúde. Estas, em harmonia com as possibilidades facultadas pelo Decreto Lei nº 336/93, de 29 de Setembro, desencadearão as medidas que lhes parecerem adequadas25.

Ou seja, só perante perigo concreto de crimes graves e terceiros identificáveis se justifica a quebra de sigilo26.

Podemos dizer, em jeito de conclusão, que NÃO HÁ GRUPOS DE RISCO, MAS SIM COMPORTAMENTOS DE RISCO, constituindo a infecção pelo vírus de HIV uma condição necessária mas não suficiente de transmissão da doença, a qual só acontecerá em face de comportamentos não seguros com portador de vírus.

Pode dizer-se, assim, que apenas há grupos mais vulneráveis do que outros à contaminação pelo vírus e que esses serão constituídos por todos os que se julguem imunes e não se protegerem através de COMPORTAMENTOS SEGUROS. As estatísticas mostram que foi isso precisamente o que aconteceu, nos últimos anos, com os heterossexuais e as mulheres - algumas destas julgando-se supostamente protegidas pelas relações de fidelidade total no casamento - , como relatam estudos recentes, nomeadamente o de MacNaughton (2004) sobre os Direitos Humanos das mulheres relativamente aos cuidados de saúde no contexto do HIV/sida27 e ainda o estudo da UNAIDS denominado HIV and AIDS-related stigmatization, discrimination and denial: forms, contexts and determinants (2000).

 

Notas

1 Como se pode ler num passo da referida Declaração: “We emphasize the need in Aids prevention programmes to protect human rights and human dignity. Discrimination against, and stigamtization of, HIV-infected people and people with Aids undermine public health and must be avoided”

2 Com efeito, o Conselho das Comunidades Europeias e os representantes dos Governos dos Estados-Membros, reunidos em Maio de 1988 e aderindo aos princípios da OMS, chegaram às seguintes conclusões: - sendo a Sida um problema de saúde pública, a luta contra a doença deve basear-se em considerações dessa natureza;- na luta contra a Sida é atribuída prioridade absoluta à prevenção pela informação e educação para a saúde; - é ineficaz do ponto de vista da prevenção, o recurso a qualquer política de rastreio sistemático e obrigatório; -qualquer discriminação e estigmatização das pessoas afectadas pela Sida devem ser evitadas. Em Maio de 2000, a OMS, em conjunção com outras instituições, como a Unesco e a Unicef e sob o suporte institucional de UNAIDS (Joint United Nations Programme on HIV/AIDS) publicou um protocolo para identificação da discriminação contra os portadores do HIV, considerando que a identificação e a eliminação das discriminações arbitrárias é um imperativo no controlo desta epidemia (referir-nos-emos a ele como Protocolo Unaids). Posteriormente, a Decisão no 647/96/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de Março de 1996, estabeleceu um programa de acção comunitária relativo à prevenção da sida e de outras doenças transmissíveis no âmbito da saúde pública(1996 - 2000). Volta-se a dar ênfase à informação, educação e formação, apoio às pessoas contaminadas pelo VIH/sida e combate à discriminação.

3 Seguimos de perto Paul Sieghart (1989) e o seu escrito AIDS & Human Rights - A UK Perspective, British Medical Association Foundation for AIDS (Sponsored by Prudential Corporation).

4 Desde então, (no caso Acmanne and others v Belgium Nº10435/83, Decision 1984 DR 40. 25 1) a Comissão foi mais longe, dizendo que certos requisitos, tornados por vezes obrigatórios por via do Direito criminal, de sofrer testes de despistagem de certas doenças ( por ex. tuberculose ou diagnóstico do peito por raio-X), constituíam interferências ao direito à vida privada.

5 Sieghart (1989: 31) esclarece diferenças cruciais entre tuberculose e sida. Desta maneira: “In the case of TB, one is dealing with an infectious disease for which there is a known cure. Mandatory screening for it is aimed at identlfying patients in order that they may be treated, and so be cured themselves and at the same time cease to be a risk of infection to others. Such screening has no adverse consequences for the person being tested. (...) By contrast, in the case of AIDS there is so far no effective treatment o rcure. A positive result can give the person concerned precious little help. On the contrary, it has the direst consequences: it will be perceived as an effective death warrant to be executed ai some uncertain time in the future, with the likelihood of being shunned by family, friends, employers and others for the whole of the remaining time - that is for life” (Sieghart, 1989: 31)

6 Pode concluir-se, sobre a obrigatoriedade dos testes de HIV, relevantemente, que parece improvável, nas circunstâncias presentes, que algum esquema de rastreio obrigatório pudesse vir a satisfazer o teste de “ser necessário numa sociedade democrática”, para protecção da saúde pública, tal como exige o nº 2 do art. 8º da CEDH (Sieghart, 1989: 33), constituindo portanto uma medida desaconselhável. Invoca-se, além de tudo o mais, que a interferência com o direito à privacidade e as consequências adversas que acarretariam tal medida, tanto do ponto de vista individual como da sociedade de forma mais ampla pesariam por certo muito mais do que qualquer benefício para a saúde pública.

7 Estabelece-se nomeadamente assim a dado passo da Recomendação: “c. En ce qui concerne le dépistage systématique (de routine): 29. - en 1'état actuel des connaissances et en l’absence de traitement curatif, considérer le dépistage systématique comme non conforme à l'éthique et contraire aux droits des individus s’il est effectué automatiquement sur des groupes de population sans consentement éclairé et sans prestation de conseils, étant donné qu’en transgressant les principes d’autonomie et d’intégrité corporelle, il constitue une intrusion dans la vie privée et risque de provoquer d’ importantes conséquences sur les plans psychologique, social et financier des individus ; 30. - veiller à ce que de telles procédures ne soient pas appliquées et à cette fin attirer l’attention du personnel des services de santé sur leur caractère inacceptable du point de vue éthique d. En ce qui concerne le dépistage prescrit: 31. - mettre en ceuvre de façon rigoureuse le dépistage prescrit pour tout don de sang et pour les donneurs delait maternel, d’organes, de tissus, de cellules et de sperme, dans le strict respect des normes traditionnelles de libre consentement et de confidentialité des données ; 32. - examiner attentivement les modalités prévues pour communiquer les résultats à la personne testée et assurer le processus de consultation-conseil avant et après le test; e. En ce qui concerne le dépistage obligatoire: 33. - considérer, en l’absence de traitement curatif, et compte tenu de l’impossibilité d’imposer des modificationsde comportement et de mettre en oeuvre des mesures restrictives, le dépistage obligatoire comme non conforme à l'éthique, inefficace, irrespectueux de Ia vie privée, discriminatoire et éventuellement néfaste; 34. - veiller à ce que le dépistage obligatoire ne soit instauré pour aucun groupe de population, en particulier pour des groupes de population donnés tels que les populations «captives», par exemple Ia population carcérale, les immigrants et les nouvelles recrues; 35. - proposer à ces groupes information et consultation- -conseil.”

8 Recorde-se que um teste negativo de HIV não dá garantias de que a pessoa testada não seja portadora do vírus, podendo vir a adquirir o mesmo no dia seguinte, ou já ter sido infectado(a) mas não se ter tornado ainda ”seroconvertido(a).

9 Apud Siegart (1989: 32). São estas as palavras em inglês : “In most instances, HIV transmission involves the behaviour of two persons; a change in behaviour of either the HIV-infected or the uninfected persons will be sufficient to prevent HIV transmission.(AIDS:Discrimination and Public Health, address to the IV International Conference on Aids, Stockholm, 13 June 1988).

10 No direito interno, o nº 1 do art. 26º da Constituição da República Portuguesa (abreviadamente CRP) elenca outros direitos pessoais, como o direito ao desenvolvimento da personalidade, ao bom nome e reputação, à imagem e reconhece “protecção legal contra quaisquer formas de discriminação”. A concretização deste enunciado encontra-se seguramente no âmbito da tutela da personalidade, cara ao Direito Civil, cabendo- -nos, aqui, em todo o caso, sublinhar que a doença tem sido ao longo dos séculos factor claro de discriminação entre os seres humanos e que a seropositividade é hoje, porventura, um dos principais. Com a agravante de se lhe ter associado também o estigma dos chamados “grupos de risco”,considerados normalmente formados por toxicodependentes e homossexuais. No entanto, como referem Ian Kennedy e Andrew Grubb “pais” por assim dizer do Direito Médico no Reino Unido, no seu escrito de 1992 (denominado “HIV and AIDS: discrimination and challenge for human rights”, in: Challenges in Medical Care, ed by Andrew Grubb, Chichester, New York, etc, John Wiley & Sons, pp 13-14) os homossexuais já não constituem per se um grupo de alto risco. A um nível mais elevado, é a conduta que cria riscos e não o facto de se ser membro de qualquer grupo particular. Eis a questão, segundo aqueles autores, da perspectiva dos Direitos Humanos. Relativamente à questão do rastreio do HIV, poderá fundamentar- -se na parte final do no 1 do art. 26º da CRP um direito ao anonimato de todos os que a ele se julguem dever submeter.

11 Acerca da perspectiva histórica e cronológica da implementação dos centros pode dizer-se que a criação de uma rede nacional de CAD iniciou- -se pelo Centro de Rastreio Anónimo da Lapa (CRA da Lapa), em 1998, precursor e pioneiro do conceito da realização do teste da infecção VIH de forma voluntária, confidencial e gratuita. Em 2000, foi criado o centro de rastreio de Faro, na continuação do conceito adoptado em Lisboa. A partir de 2001, uma nova fase foi programada e iniciada. Assim, após mudança de designação destes centros, a implementação a nível nacional inicia-se. Existem hoje CADs espalhados por todo o país, devendo ligar-se para a Linha SIDA (nº 800 26 66 66) a fim de se saber onde se situam.

12 A tabela de doenças de declaração obrigatória encontra-se ordenada de acordo com o código da 10ª Revisão da Classificação Internacional de Doenças, conforme a deliberação nº 131/1997, de 27 de Julho e constante da Portaria nº 1071/1998, de 31 de Dezembro.

13 No Protocolo Unaids é dada uma definição de discriminação arbitrária eestabelece-se o critério de avaliação da existência de discriminaçãoarbitrária. Assim estatui-se, primeiro, o princípio da não discriminação, quere quer que todas as pessoas em situações similares devam ser tratadas de igual maneira, esclarecendo-se, depois, entre outras coisas, que a discriminação pode ser intencional ou não, por acção ou omissão e chegando-se à necessidade de restrição justificada do direito à não discriminação. Aqui é absolutamente relevante o estatuído no ponto 2. 3. (pp8 e 9 do Protocolo Unaids) que se transcreve na íntegra:

“2.3. Rights to non -discrimination can be justifiably restricted in certain narrowly defined circumstances in the interests of a limited number of overriding goals (e,g, restricting donation of blood by those who have been confirrned HIV-positive or who have recently returned from a high -prevalence area). But simply justifying a discriminatory measure as necessary for public health - as is often done in the context of HIV/AIDS - is not sufficient. For a measure restricting the rights to non- discrimination of people living with or suspected of having HIV/AIDS to be justifiable, two important criteria have to be met: a) The measure must be in the interest of a legitimate objective. International human rights law provides that public health, the rights of others, morality, public order, and national security are all examples of legitimate objectives. b) ln assessing the measure, its objective or purposes hould be taken into consideration - which, in this instance, is usually to safeguard public health - bearing in mind the limited range of modes of transmission of the virus (sexual, through blood, and from mother to child), Thus, for example, it may be legitimate to impose an HIV test on blood donations or to exclude people exhibiting ‘risk behaviour’ from blood donation in view of the risks inherent in blood transfusions. On the other hand, and for the same reasons, it is not legitimate to impose generalized screening at recruitment for work or in the workplace. Similarly,while communication by doctors to the authorities of the number of people with HIV/AIDS, in a strictly anonymous manner and on the basis of voluntary tests, for the purpose of establishing statistics may be legitimate, communication of this information to the Ministry of Health without regard for anonymity and informed consent is not. Even when a measure is for a legitimate objective, the means employed to achieve it must be proportionate to the aim pursued. They should constitute the least restrictive means available. Appreciation of whether the means are in proportion to the aim pursued also requires consideration of the effectiveness of the measure in attaining the objective sought. Thus, to take an extreme example, tattooing of people with HIV/AIDS to try to prevent the spread of the epidemic is a measure out of proportion to the aim pursued. Similarly, police round-ups and mandatory testing of sex workers is a disproportionate measure. In general, a measure that stigmatizes people with HIV/AIDS will not be effective in relation to pursuit of the objective of safeguarding public health. The effectiveness of a measure will most often depend on the characteristics of the epidemic of the virus (including, in particular, its limited modes of transmission). Thus, measures that totally or largely fail to take account of the medical facts about HIV/AIDS will generally be impuned as discriminatory.”

14 A 1ª Portaria a incluir o HIV na tabela foi a Nº 103/2005, de 25 de Janeiro, mas como não acautelou suficientemente a questão da privacidade, acabou por ser substituída pela Portaria Nº 258/2005, de 16 de Março.

15 Tal como determinava o Despacho nº 14/91, do Ministro da Saúde publicado no DR nº 164, II Série, de 19 de Julho de 1991).

16 Concordamos inteiramente com Margaret Brazier (2003:in Medicine, Patients and the Law, London: Penguin Books, pp. 73 e 74) quando esta afirma o seguinte: “Interestingly, AIDS is not a notifiable disease in theUnited Kingdom.( ... )The government has resisted pressure to make HIV/AIDS a notifiable disease. Again the question is one of balancing the competing public interests, the interest in patients seeking advice and treatment for disease, and the interest in protecting the health of those at risk from infection. HIV is not in the same league as diseases such as cholera. The cholera carrier immediately places his casual contact sat risk. If he is untreated he can do little to minimize that risk. Cholera spreads like wildfire. HIV is much,much less infectious and by acting responsibly the patient can reduce the risk to others. To act responslbly he needs professional help and should not be deterred from seeking help by fear that his doctor will be forced to ‘squeal’ to the authorities.”

17 Nos termos do no 2º da Portaria nº 258/2005, de 16 de Março : “A declaração é obrigatória aquando do diagnóstico em qualquer estádio da infecção por VIH de portadoras sintomático (PA), complexo relacionado com a sida (CRS-LGP) e sida, e sempre que se verifique mudança de estadiamento ou óbito.”

18 Em suma, não nos manifestamos contra a declaração de casos, a coberto de anonimato e com todas as garantias de confidencialidade, para fins epidemiológicos, mas sim contra o meio que foi utilizado e o qual se traduziu na equiparação do HIV/Sida às tradicionais doenças contagiosas, entre as quais se contam a cólera, a tuberculose, a peste, a lepra ou a sífilis.

19 Recordo o 1º diploma de integração do HIV na tabela de doenças de declaração obrigatória - Portaria Nº 103/2005, de 25 de Janeiro - , que devido ao facto de não acautelar o segredo e anonimato precisou de ser substituído por outro - a Portaria vigente nº 258/2005, de 16 de Março, que aprova o modelo de folha de notificação relativamente à vigilância epidemiológica por HIV.

20 Em texto denominado “O Direito ao Trabalho e a Não Discriminação dos Infectados pelo vírus da Imunodeficiência Humana, VIH/sida - O Atestado de Robustez”, in: Acta Médica Portuguesa, 1995, 8: pp 401-404. Torgal expressa-se assim: “Lembrando a diferença entre doença transmissível e doença contagiosa, sendo esta a que se transmite independentemente da vontade e do comportamento,que se transmite no contacto social, não há lugar a qualquer referência a uma infecção pelo VIH no atestado de robustez, que deverá declarar, com propriedade, que o indivíduo não sofre de doença contagiosa.” (pp 404).

21 Obra intitulada A SIDA, Lisboa, Instituto Piaget.

22 Torgal (1995: 401) descreve o seguinte quadro: “Os elementos epidemiológicos decorrentes de estudos prospectivos metodologicamente correctos permitem afirmar que medeiam, em média, 11 anos entre a infecção pelo VIH 1 e a situação de doença passível do diagnóstico de sida. Estima-se que este período se vem alongando, fruto de um melhor conhecimento da história natural da doença e em consequência das atitudes e terapêuticas preventivas actualmente disponíveis. Um número não negligenciável de indivíduos mantém uma condição de saúde que os permite serem socialmente activos com 15, 20 e mesmo mais anos de infecção.”

23 Tratar os Portadores Assintomáticos de HIV ao lado de pessoas cuja doença já haja tido manifestações, como acontece em muitos dos casos das doenças constantes da tabela de declaração obrigatória (ex. tosse convulsa, peste, raiva, sarampo, febre amarela, rubéola) é desconhecer justamente a especificidade da situação do HIV/sida, e tratar afinal como igual o que é diferente. No Protocolo UNAIDS para identificação da discriminação contra pessoas vivendo com HIV, afirma-se, na parte final do ponto 2.3.(cfr supra nota 13) que a efectividade das medidas dependerá muitas vezes das características epidémicas do vírus (incluindo em particular os seus modos de transmissão limitados). Pelo que, medidas que totalmente ou largamente deixem de ter em conta os factos médicos acerca do HIV/sida virão geralmente a ser impugnados como discriminatórios. É o que julgamos poder acontecer com a inclusão da infecção de HIV na tabela de doenças de declaração obrigatória, ao lado de outras doenças cujo modo de transmissão do vírus, a um tempo e circunstâncias específicas da sua manifestação concreta, a outro, são completamente distintos.

24 Cfr. Parecer do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV) de 23 de Outubro de 2000.

25 O Anexo à Recomendação R (89) 14 expressa-se assim: “promouvoir la notification aux partenaires dans le cadre d’une stratégie préventive globale proposant des services accessibles ainsi que la notification confidentielle par des tiers, le cas échéant sans identification du patient.”

26 Como aconteceu recentemente em situação julgada pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Évora (Secção Criminal, Processo nº 583/01). Neste caso foi suscitado o incidente previsto no art. 135º do C. Proc. Penal, que permite a averiguação sobre legitimidade de escusa de depoimento e decretação judicial do mesmo, tendo em consequência sido decretada a revelação de segredo por parte de um médico. O tribunal concluiu que a revelação de segredo médico se mostrava necessária para salvaguardar a vida de terceiros, posta em causa com a propagação de doença e que a manutenção do segredo ajudaria, procedendo o direito de necessidade, nos termos do art. 34º do C. Penal.

27 Denominado concretamente Women’s Human Rights related to Health-Care Services in the Context of HIV/AIDS, London, The International Centre for the Legal Protection of Human Rights.

 

Correspondência:

Drª. Maria do Céu Rueff

Universidade Lusíada

Departamento de Direito

Rua da Junqueira, 188-198

1349-001 Lisboa

e-mail: ceurueff@yahoo.com

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