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Revista de Ciências Agrárias

Print version ISSN 0871-018X

Rev. de Ciências Agrárias vol.42 no.1 Lisboa Mar. 2019

https://doi.org/10.19084/RCA18223 

ARTIGO

Produção agroecológica e Segurança Alimentar e Nutricional (Brasil)

Agroecological production and Food and Nutrition Security (Brazil)

Shirley G. S. Nascimento1,*, Cláudio Becker2, Fernanda Novo da Silva1, Nádia Velleda Caldas3 e Mariana R. de Ávila1.

1Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA), Dom Pedrito, Brasil

2Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (UERGS), Santana do Livramento, Brasil

3Programa de Pós-Graduação em Sistemas de Produção Agrícola Familiar da Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, Brasil

(*E-mail: shirley.altemburg@gmail.com)


RESUMO

O objetivo deste artigo é analisar as representações sociais em torno aos alimentos produzidos por agricultores familiares em três municípios do Rio Grande do Sul (Brasil), destinados à alimentação escolar. Realizamos uma pesquisa qualitativa, com entrevistas em profundidade com 23 agricultores familiares agroecologistas. Os resultados foram processados através de análise de conteúdo. As representações sociais dos agricultores em relação a um alimento saudável remetem ao não uso de agrotóxicos e que não faça mal a saúde, tanto de quem consome quanto de quem produz. Nesses termos, tais ações podem contribuir com a segurança alimentar e nutricional dos cidadãos.

Palavras-chave: agricultura familiar, políticas públicas, representações sociais.


ABSTRACT

The objective of this work was to analyze the social representations about food produced by family farmers in the three municipalities of Rio Grande do Sul (Brazil), intended for school meals. We conducted qualitative research with in-depth interviews and twenty-three family farmers. Results were processed through content analysis. Social representations of farmers regarding a healthy food refer to the non-use of pesticides for do not harm the health of both the consumer and the producer. In these terms, such actions can contribute to the food and nutritional security of population.

Keywords: family farming, public policies, social representations.


INTRODUÇÃO

Assunto amplamente debatido na atualidade, a insegurança alimentar tem afetado populações em todo mundo. Além de se discutir sobre a falta de alimentos, o temor recai também sobre a qualidade do que se produz, gerando incertezas sobre a eficiência e a qualidade dos grandes sistemas agroalimentares. Essa questão ganha mais força quando assistimos a todo o momento notícias sobre crises alimentares que afetam diversos setores da produção agrícola e que se tornaram amplamente conhecidos como a doença da vaca louca, as intoxicações por dioxinas, as gripes aviária e suína e a chamada crise dos pepinos espanhóis, apenas para citar alguns (Caldas et al., 2012).

Diante desse cenário, percebe-se a crescente preocupação das pessoas pela segurança alimentar e qualidade dos produtos que consomem (Beck, 1998; Díaz Méndez e Gómez Benito, 2001; Callejo, 2005; Aguilar Criado, 2007). Este fato culmina com um movimento de busca por formas alternativas de produção que (re)aproximam unidade de produção e consumo, agricultor e consumidor, e que remetem à (re)construção de elos de confiança entre ambos, que melhor assegura ao consumidor a qualidade dos alimentos.

Como consequência dessa situação emerge um estímulo para a (re)conexão entre alimentação e segurança alimentar e nutricional, ou seja, emerge uma preocupação com a origem e qualidade dos processos produtivos e dos alimentos consumidos, bem como sobre os efeitos da alimentação sobre os consumidores. E, por essa razão, no cenário brasileiro, diversas iniciativas (Grisa, 2012) são acionadas com o propósito de resgatar ações que conduzam à segurança alimentar e nutricional para além dos espaços cotidianos – que envolvem pequenas ações realizadas isoladamente por consumidores e produtores para assegurar a compra e venda de alimentos saudáveis – ganhando peso inclusive na esfera pública, através de mobilizações sociais que se iniciaram na década de 1980. Este processo gerou um acúmulo conceitual e uma base social que culminou com a criação de uma Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional no ano de 2006 (Maluf, 2009), que visava atender às necessidades alimentares da população e atingir a autossuficiência nacional na produção de alimentos (Hirai e Sacco dos Anjos, 2007).

Esta temática passou a fazer parte da pauta de prioridades em nosso país e diversos componentes começaram a ser-lhe incorporados. Como alude Valente (2006, p. 2), “o conceito de Segurança Alimentar ampliava-se incorporando às esferas de produção agrícola e do abastecimento as dimensões do acesso aos alimentos, das carências nutricionais e da qualidade dos alimentos. Começava-se então a falar de Segurança Alimentar e Nutricional”.

Na década seguinte, verifica-se que em diversos países o consumo de alimentos ofertados através de políticas públicas, como é o caso da alimentação escolar, passa a ser visto como prioridade (Kennedy, 1996). Nesse contexto, também inicia-se o incentivo à educação alimentar para que a população reflita e incorpore formas saudáveis de alimentação.

A segurança alimentar corresponde a um tema que conquistou, no Brasil, grande relevância desde o final dos anos 1990 e vem suscitando um amplo debate tanto na perspectiva da atuação estatal (Feliciello e Garcia, 1996; Maluf et al., 1996; Belik et al., 2001), quanto no plano estritamente acadêmico.

Mesmo havendo um movimento progressivo em relação a este conceito, no governo do presidente Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) esse tema perde força, sendo resgatado com a chegada do governo Lula ao poder, em 2003.

Em estudos acadêmicos, a temática é abordada como consequência do surgimento de um conjunto de questões que vão desde a preocupação em torno da avaliação do impacto de políticas públicas de combate à fome e à insegurança alimentar, até discussões mais recentes que tratam da ampliação da produção de biocombustíveis e de supostas implicações sobre a oferta mundial de alimentos (Graziano da Silva e Tavares, 2008; FAO, 2009). Nesses estudos citados, a ênfase está posta em uma perspectiva multidimensional, especialmente a partir do surgimento de programas e políticas públicas que colocam o acesso aos alimentos, em quantidade e qualidade, culturalmente referenciados, como instrumento para a conquista da cidadania e enfrentamento das desigualdades.

Nesse sentido, segurança alimentar e nutricional começam a ser entendidos como uma ferramenta para fomentar a soberania alimentar do país, com o incentivo aos mercados institucionais – Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) – que favorecem, em grande medida, os agricultores familiares.

Além do Brasil, destacam-se no cenário internacional iniciativas ocorridas na Itália e no Japão, que preconizam a incorporação de ações de segurança alimentar via políticas públicas de caráter inovador. No Japão, o Plano Nacional de Educação Alimentar implementado em 2004, promoveu o Chisan-chisho que pode ser traduzido como o incentivo à produção local de alimentos, visando incorporar a alimentação tradicional das crianças nas escolas (Otsuki, 2011). Já na Itália, o governo fixou, por meio do Programa Nacional de Alimentação Escolar, orientações claras à aquisição de produtos locais como parte do processo de criação de uma identidade local (Morgan e Sonnino, 2008).

É na perspectiva da construção de um novo padrão alimentar, voltado ao consumo de alimentos saudáveis, produzidos localmente e com procedência conhecida, que o poder público tem concentrado esforços em atuar no segmento de alimentação escolar em nosso país. Prova disto são as transformações recentes ocorridas, no PNAE, na retórica e na legislação (Otsuki, 2011), que preconizam a reeducação alimentar nas escolas públicas brasileiras com foco no consumo de alimentos saudáveis produzidos agroecologicamente.

O PNAE surgiu, no Brasil, na década de 1950 (Belik e Chaim, 2009), com a finalidade de suprir apenas 15% das necessidades alimentares básicas das crianças durante o período escolar, perpassou pelos anos, e em 2009 sofreu significativas mudanças, como, por exemplo, a incorporação da percepção sobre o caráter pedagógico da alimentação diante do processo ensino/aprendizagem (Stefanini, 1997; Bezerra, 2009). Na atualidade, possui como meta o direito à alimentação apropriada, que atenda aos princípios nutricionais de convívio social e de respeito às culturas alimentares. Deste modo, constitui uma das estratégias da vigente política de segurança alimentar e nutricional do país para combater a fome, a desnutrição e os problemas relacionados com as mudanças no padrão de consumo alimentar da população nas últimas décadas.

No Brasil, a legislação traz uma grande novidade que faz alusão ao fato de que no mínimo 30% do orçamento gasto com a alimentação escolar deve ser referente à aquisição de produtos oriundos da agricultura familiar, preferencialmente, da produção orgânica e/ou agroecológica (Brasil, 2009a). Deste modo, a legislação além de repercutir no destino da produção agrícola familiar, interferiu também na forma como se deve proceder na alimentação dos estudantes. Algumas destas modificações estão contidas especialmente no Inciso I do Art. 2° da Lei 11.947 de 16 de junho de 2009, que estabelece:

I - o emprego da alimentação saudável e adequada, compreendendo o uso de alimentos variados, seguros, que respeitem a cultura, as tradições e os hábitos alimentares saudáveis, contribuindo para o crescimento e o desenvolvimento dos alunos e para a melhoria do rendimento escolar, em conformidade com a sua faixa etária e seu estado de saúde, inclusive dos que necessitam de atenção específica. (Brasil, 2009a, p. 1).

Nesta perspectiva, é fundamental ressaltar outros aspectos cruciais como o fato de que pela primeira vez a agricultura familiar é mencionada como forma social a ser privilegiada. Com efeito, no Inciso V, Art. 2º da mesma lei, consta:

V - o apoio ao desenvolvimento sustentável, com incentivos para a aquisição de gêneros alimentícios diversificados, produzidos em âmbito local e preferencialmente pela agricultura familiar e pelos empreendedores familiares rurais, priorizando as comunidades tradicionais indígenas e de remanescentes de quilombos (Brasil, 2009a, p.1).

No marco da conquista de garantir a compra dos alimentos para alimentação escolar da agricultura familiar, a região sul do Brasil movimenta-se de forma positiva possuindo fortes laços com a produção agrícola familiar e trilhando um caminho progressivo (Casalinho, 2003) em direção a sistemas saudáveis de produção.

É mister reafirmar que as organizações da agricultura familiar – como associações e cooperativas com gênese e vinculação ao Centro Apoio e Promoção à Agroecologia (CAPA), Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e/ou Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) – que atuam na região de Pelotas, e que são atualmente fornecedoras de produtos para alimentação escolar, têm uma história de lutas marcada justamente pelo compromisso de contrapor-se ao padrão convencional de agricultura, altamente tributário do uso de agrotóxicos e de adubos químicos, assumindo, no limite, certos pressupostos filosóficos e ideológicos inerentes à agroecologia (Becker, 2010). Mesmo antes da aparição da Resolução nº 38, de 16 de julho de 2009 (Brasil, 2009b), algumas organizações sociais – como por exemplo, na região de estudo encontram-se as ações da Cooperativa Sul Ecológica, da Associação de Agricultores Ecológicos ARPA-SUL, da Cooperativa de Produtores Rurais COOPAR, da União de Associações UNAIC, dentre outras – que já haviam assumido como princípio a entrega às escolas públicas diversos produtos cujos processos de elaboração seguem rigorosamente um padrão de produção identificado com os imperativos da sustentabilidade.

Compreender as representações sociais dos agricultores familiares envolvidos na dinâmica desta nova cadeia agroalimentar preconizada pelo PNAE, bem como, os pressupostos que regem os seus sistemas produtivos e, por conseguinte, o seu trabalho, é um imperativo fundamental do nosso estudo.

Este artigo contempla, além da introdução, três seções. A primeira faz a apresentação do universo de estudo, dos procedimentos metodológicos e o marco teórico que fundamenta o trabalho. A segunda propõe um diálogo entre produção agroecológica e segurança alimentar e nutricional. A terceira (conclusões) traz as considerações a partir dos resultados do estudo.

MATERIAL E MÉTODOS

Universo de estudo, procedimentos metodológicos e marco teórico da pesquisa

Este estudo tem como universo empírico três municípios da região sul do estado do Rio Grande do Sul, no Brasil, quais sejam, Canguçu, Cerrito e São Lourenço do Sul, tal como ilustra a Figura 1. Foram entrevistados vinte e três agricultores familiares agroecologistas que residem e fornecem alimentos ao PNAE.

 

 

Cabe destacar que estes municípios possuem trajetórias diferentes no que tange ao acesso ao programa. Este fato, conforme identificamos, se deve principalmente a fatores como: a organização social para atender ao PNAE; parcerias com entidades locais; clareza sobre o funcionamento do programa e, interesse em fomentar a agricultura familiar local.

O município de São Lourenço do Sul, desde o ano de 2001, está imbuído do propósito de acesso a políticas que contemplam as perspectivas do PNAE e, adquire parte significativa dos alimentos que compõem a alimentação escolar da rede municipal de ensino de produtores da agricultura familiar agroecológica. Opera com uma metodologia diferencial, a qual prima pelo diálogo entre os agricultores e o poder público, a fim de contemplar o rol de produtos locais, considerando e respeitando a sazonalidade. Assim, estabelece-se certa flexibilização no fornecimento, contemplando a substituição de certos alimentos e a readaptação de cardápios quando necessário.

O município de Cerrito, conforme informaram os nossos interlocutores, tem adquirido em média 93% dos alimentos destinados a merenda escolar da agricultura familiar, em que pese não haver priorização de que esses sejam produtos agroecológicos, se observa uma movimentação por parte dos gestores municipais para que isto venha a acontecer. Outro ponto interessante neste município é que o mesmo iniciou a compra de alimentos da agricultura familiar antes mesmo da obrigatoriedade imposta pela legislação, e este feito se deu através de iniciativas do órgão público municipal em ação conjunta com a Empresa Assistência Técnica e Extensão Rural do Rio Grande do Sul (EMATER) e com os agricultores.

Canguçu, por sua vez, diferentemente de Cerrito e São Lourenço do Sul, tem enfrentado dificuldade para cumprir a compra de 30% de produtos oriundos da agricultura familiar, como exigido por lei. Dentre os fatores limitantes está o fato de haver pouca interação entre o órgão público municipal e a EMATER, assim como, por haver falta de clareza em relação aos trâmites legais para efetivação da compra de alimentos. Inicialmente este município recorreu às cooperativas de outras regiões do RS para cumprir com o mínimo (30%) exigido pela legislação. Entretanto, no momento de realização dessa pesquisa, não havia a aquisição de alimentos das cooperativas locais, inobservando esse aspecto do PNAE. De todo o modo, fica explicito que não há articulação entre as organizações da agricultura familiar local e os gestores para operacionalização dos contratos, e tampouco se tem priorizado a compra de gêneros alimentícios produzidos agroecologicamente.

O Quadro 1 apresenta dados sociodemográficas dos três municípios, que em maior ou menor medida, podem contribuir para as dinâmicas de acesso às políticas públicas, como é o caso do PNAE. Pareceu-nos fundamental investigar três municípios representativos[1] da agricultura familiar, mas com parâmetros distintos na compra de alimentos para compor a merenda escolar, uma vez que a referida compra se configura como a mais recente estratégia a nível federal para fomentar os sistemas de produção e consumo locais.

Procedimentos Metodológicos

Nossa imersão no campos de pesquisa se deu entre os meses de fevereiro e dezembro de 2012, através de visitas para realização das entrevistas em propriedades dos agricultores. Neste momento foi possível aproximação e observação da realidade destes atores e suas famílias, ouvir sobre suas perspectivas, compreender as dinâmicas que regem seu trabalho, sobre quais as representações que constroem em torno do PNAE e da alimentação saudável e verificar suas estratégias de produção.

O campo que deu origem a este artigo respalda-se na pesquisa qualitativa, a qual permite levantar informações relevantes através da percepção e observação das pessoas e dos espaços. Quando se adota a abordagem qualitativa, assume-se um entendimento que se opõe à ideia de que um modelo único de pesquisa pode dar conta de todas as especificidades que existem nas ciências sociais e, leva-se em consideração a importância de distanciar pesquisador e objeto, pois o pesquisador não pode fazer julgamentos nem permitir que seus preconceitos e crenças contaminem a observação e a análise na pesquisa (Goldenberg, 1997).

Utilizamos como técnica de investigação entrevistas em profundidade, que tiveram como base um roteiro com questões abertas e fechadas que, ao mesmo tempo em que possibilitaram a coleta de dados objetivos em relação ao público alvo da pesquisa, também serviram para apreender aspectos subjetivos expressos na fala dos entrevistados.

Através do roteiro foi possivel verificar quais as representações sociais que os agricultores possuem acerca de alimento saudável? Como estes percebem a importância de sua produção na promoção da segurança alimentar nas localidades em que operam? Qual o efetivo papel do PNAE na conformação das questões atinentes a produção de alimentos saudáveis e segurança alimentar?

Com relação a esse aspecto, Cruz Neto (1996) afirma que através da entrevista, seja de natureza individual e/ou coletiva, o pesquisador busca obter informes contidos na fala dos atores sociais. Para esse autor, ela não significa uma conversa despretensiosa e neutra, uma vez que se insere como meio de coleta dos fatos relatados pelos atores, enquanto sujeitos-objeto da pesquisa, que vivenciaram uma determinada realidade que está sendo focalizada.

Os dados foram processados através da análise de conteúdo, foram criadas categorias de análise que permitiram agrupar as respostas dentro do contexto estudado. Essa análise, que conduz descrições sistemáticas, ajuda a reinterpretar as mensagens e a atingir uma compreensão de seus significados em um nível que ultrapassa uma leitura simples (Bardin, 2011).

Frente ao aparato metodológico utilizado foi possível mergulhar no mundo das representações sociais de nossos entrevistados e entender questões aparentemente ocultas, porém carregadas de símbolos, como é o caso, da produção “limpa”, ou seja, sem agrotóxico. Da associação desta à segurança alimentar e quem ela atinge e qual a real importância das políticas públicas que estão para além da questão comercial e associada à valorização destes atores.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Representações sociais e seu papel no cotidiano dos agricultores familiares

Neste apartado tratamos de demonstrar como os agricultores familiares participantes da pesquisa expressam as suas representações em relação à noção de alimento saudável. Da mesma forma, apresentam-se questões atinentes aos hábitos alimentares ‘modernos’, à produção destinada ao PNAE e aos elementos que interferem na segurança alimentar de suas famílias e da sociedade. Além disto, exploram-se temas relativos à intervenção do programa nas representações que os próprios agricultores possuem acerca de si mesmos e enquanto membros de uma categoria singular na sociedade.

A partir do contato com a realidade constatamos o quanto os agricultores familiares têm clareza da importância de se produzir agroecologicamente, seja para fornecer ao PNAE ou a outro canal de comercialização. Isto demonstra como a produção saudável de alimentos está construída nas representações destes agricultores e se configura com uma opção de vida. O Quadro 2 faz um recorte dos depoimentos dos agricultores entrevistados que expressam esta questão.

As representações sociais são produzidas pelas interações e comunicações no interior dos grupos sociais, refletindo a situação dos indivíduos no que diz respeito aos assuntos que são objeto do seu cotidiano, como a questão dos alimentos consumidos não somente em seus domicílios, como no âmbito das cantinas escolares que seus filhos frequentam (Jodelet,1984).

O Quadro 3 apresenta as principais referências associadas à ideia de alimento saudável, segundo nossos entrevistados. Vale destacar que as representações sociais dos agricultores em relação a um alimento saudável remetem ao não uso de agrotóxicos, sem qualquer produto que faça mal à saúde dos consumidores e agricultores e, que, igualmente, também não agridam a natureza. Nestes termos, segundo a opinião dos entrevistados, estariam garantidas ações que conduzem à segurança alimentar tanto de quem consome, quanto de quem os produz.

 

 

As representações expressas nos depoimentos de todos os atores entrevistados, remetem à ideia de que ‘se é bom para “eu” consumir’, ‘é bom para os outros também’. Este sentimento é resultado da rede de confiança que os agricultores agroecologistas procuram estabelecer com os consumidores de seus produtos (ver mais em Radomsky, 2006).

Ademais, os depoimentos deflagraram a inquietação dos entrevistados com o atual quadro de despreocupação com a condição das dietas alimentares, principalmente das crianças. Os entrevistados asseveram que as crianças não são completamente conscientes dos alimentos que ingerem e dos possíveis efeitos que podem acarretar ao seu organismo. O excerto que segue retrata de forma incisiva essa preocupação.

[...] Não é raro a gente ouvir dizer. Ah, tem que comer esses troços aqui com herbicida, com veneno porque mata os vermes. É, eles sabem que mata os vermes, mas ele pode ser um verme também, logo ali vai ser ele. Ninguém vai sobrar na vida [...] (Agricultor D, São Lourenço, 58 anos).

Esta questão reforça as representações sociais dos agricultores sobre a emergência do incentivo a sistemas de produção que garantam a segurança alimentar da população, como é o caso do PNAE, que conecta a esfera da produção à do consumo e ainda serve como instrumento para disseminar o tema da alimentação saudável.

Para os entrevistados, os consumidores pouco sabem sobre a procedência dos alimentos e o teor nutricional dos mesmos, sendo eles muitas vezes enganados na hora de adquirir tais produtos:

É, infelizmente, hoje em dia, 90% do que nós estamos consumindo não é mais saudável, a maioria vem tudo com defensivos. Dizem defensivos, mas a maioria é veneno direto. [...] Vai veneno... não dizem que é veneno, é defensivo (Agricultor H, Cerrito, 68 anos).

No rol destas discussões aflora outra questão correspondente a uma falta de despreocupação em relação à qualidade da alimentação. Conforme pode ser observado na percepção de nossos entrevistados, representações que culminam na despreocupação com a alimentação se constroem no ambiente doméstico, com as noções passadas pelos pais, as quais são reforçadas posteriormente pela escola, ao não abordar adequadamente a educação alimentar. As crianças acabam se acostumando a fazer refeições apenas com comidas processadas, desconhecem o tempo dos alimentos – à sazonalidade inerente à produção agrícola – e o verdadeiro sabor que tem um alimento in natura: o relato de um entrevistado explicita esta visão,

Imagino eu que a maior parte seja assim, na correria do dia a dia e é ali que muitas vezes entra o problema dos sabores artificiais, que num primeiro momento ele é bom é prático, é ligeiro de se fazer uma comida, não é tão ruim assim, mas pra saúde ele é danoso e muito dessa cultura se leva de casa pra escola (Agricultor E, São Lourenço do Sul, 28 anos).

Nesta esfera, fica evidente o quanto se precisa avançar sobre os temas que envolvem segurança alimentar. As expressões dos entrevistados em torno da produção de alimentos saudáveis demonstram que o PNAE está para além de uma oportunidade de mercado, mas sim como uma ponte para interligar a valorização dos produtos locais com a construção da soberania alimentar.

Quando perguntados sobre o fato das crianças receberem durante o período escolar uma alimentação diferenciada, elaborada com produtos da agricultura familiar, os agricultores demonstraram estar satisfeitos com esta situação, pois de alguma forma está se rompendo com o imperialismo do consumo de alimentos supérfluos pelas crianças. O Quadro 4 revela parcela importante das representações dos agricultores entrevistados em relação a este fato.

Outra importante questão que observamos com este trabalho é que a maneira de produzir dos agricultores não se modifica em razão de sua produção passar a ser destinada às crianças nas escolas, pois continua sendo realizada como se fosse para o próprio consumo. Esta é uma característica comum entre agricultores agroecológicos em razão da maneira com que trabalham, como enfatizam outros estudos (Lovatto, 2007; Altemburg et al., 2015).

Detectamos também que o fato de ter acesso a um mercado seguro os incentiva e estimula a produzir mais e assim constrói a perspectiva de aumentar suas rendas, garantindo a própria manutenção familiar e da propriedade, ampliando sua autoestima, além de valorizar e contribuir para a sua reprodução social.

O Quadro 5 demonstra como a lógica familiar de organização do trabalho não muda com o acesso destes agricultores ao programa de alimentação escolar, ao contrário, só reforça seus sistemas de produção ao passo que significa uma garantia de acesso seguro aos mercados locais.

Diante do exposto percebe-se que nossos interlocutores, os agricultores familiares, têm claro os princípios que regem seu trabalho, bem como, do relevante desempenho que possuem junto da sociedade no que concerne a garantir a produção de alimentos de forma segura. Mais expressivo torna-se este papel para eles ao saberem que seus produtos, por força do PNAE, são entregues nas escolas locais. Neste grupo, as representações sociais sobre a noção de alimento seguro e qualidade alimentar não sofrem influência da agricultura moderna, o que estes compreendem é a importância do resgate do conhecimento dos sistemas produtivos e a utilização de práticas tecnológicas que não agridam a natureza e o homem, expressando os valores de cada agricultor no que faz.

Este fato reflete-se diretamente nas iniciativas em imprimir uma nova dinâmica alimentar na atualidade, principalmente entre as crianças e jovens em idade escolar. Deste modo, a efetivação de uma política pública específica que atua simultaneamente no âmbito da produção e do consumo de alimentos saudáveis, tem-se mostrado capaz de gerar novas expectativas entre os agricultores familiares, fato constatado com nossos entrevistados. Assim sendo, o novo padrão alimentar almejado parece-nos em condições de ser efetivamente alcançado à medida que se estreitem os elos entre os principais atores sociais envolvidos, atuando, sobretudo, na forma como estes se enxergam perante a sociedade.

CONCLUSÕES

Identificamos neste estudo que, para o grupo de agricultores em questão, as representações sociais sobre alimento saudável estão associadas aos alimentos produzidos sem o uso de agrotóxicos, que mantêm respeito aos ciclos da natureza. Deste modo, não há prejuízos ao ambiente e à saúde, tanto na esfera da produção, quanto do consumo.

Por meio das reflexões propostas neste artigo torna-se evidente que a agricultura familiar agroecológica possui papel fundamental na concretização de formas sustentáveis de produção. Este fato é resultado das representações sociais que possuem os agricultores familiares agroecologistas sobre a importância da qualidade de seu trabalho, do valor dos alimentos produzidos, do respeito ao ambiente e também do respeito aos consumidores de seus produtos. Como mostraram os resultados, o que impulsiona este tipo de produção não é o acesso aos mercados em si, embora sejam essenciais para a manutenção das famílias agricultoras, mas, sobretudo, o compromisso social que estes atores assumiram para si.

Evidencia-se que as reformulações ocorridas no PNAE compactuaram para desencadear a promoção da segurança alimentar nos municípios estudados, pois estimularam a valorização da agricultura familiar agroecológica em esfera municipal, dando inclusive maior visibilidade a este tipo de produção em um coletivo que anteriormente não ‘acessavam’, não consumiam essa natureza de produtos (agroecológicos), como é precisamente o caso dos alunos de escolas públicas.

Ainda é preciso avançar na consolidação deste programa dentro das próprias escolas, pois segundo o que averiguamos, estas representam um dos pontos frágeis desta nova cadeia agroalimentar. Outrossim, há que se constituir estruturas de governança e de constituição de autonomia e autogestão que permitam que iniciativas desta natureza não fiquem à revelia da força pública, ou da vontade política dos governos de todas as esferas, mas, por outro lado, que passem a compor as estratégias locais de desenvolvimento.

 

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Agradecimentos

Os autores agradecem ao CNPq e a CAPES pela concessão da bolsa de doutorado e de Auxílio à Pesquisa, que possibilitaram a realização do estudo que fundamentou a elaboração desse artigo.

 

Recebido/received: 2018.07.23

Recebido em versão revista/received in revised form: 2018.10.25

Aceite/accepted: 2018.10.27

[1] Quando enfatizamos que estes municípios são representativos estamos nos referindo ao fato de possuírem forte laço com a agricultura familiar. Canguçu concentra o maior número de estabelecimentos familiares da região. São Lourenço possui grande percentual dos seus agricultores envolvidos com a produção agroecológica e Cerrito tem buscado através de iniciativas dos órgãos públicos locais fomentar o capital social existente entre os agricultores familiares.

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