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Revista Portuguesa de Saúde Pública

Print version ISSN 0870-9025

Rev. Port. Sau. Pub. vol.28 no.2 Lisboa Dec. 2010

 

A crise do modelo biomédico e a resposta da promoção da saúde

Crisis and response of the biomedical model of health promotion

 

Cipriano Justoa

aProfessor catedrático convidado, Universidade Lusófona, Lisboa, Portugal, cjusto@netcabo.pt

 

O modelo biomédico de prestação de cuidados, qualquer que seja a natureza da organização em que são prestados, não estando esgotado, encontra-se particularmente vulnerável às restrições orçamentais, desde os anos setenta do século passado, em consequência da variação dos seus custos serem sistematicamente superiores às variações do PIB. Essa é uma razão para a crise do modelo biomédico. Porém, o que melhor explica as limitações da sua eficácia são as alterações que se verificaram no padrão epidemiológico da doença a partir da segunda metade do século xx. Se é verdade que os gloriosos 30 anos a seguir à Segunda Guerra Mundial foram os principais responsáveis pela construção do modelo social europeu, é no ocaso deste período, em Abril de 1974, que é publicado pelo então ministro da saúde do Canadá, Marc Lalond, o estudo que ficará a servir de referência para todas as políticas de saúde, antecedendo em quatro anos a Conferência de Alma-Ata sobre os cuidados de saúde primários. De facto, A New Perspective on the Health of Canadians 1, representou para as futuras políticas de saúde o que De Humana Corpis Fabrica representou no século xvi para a medicina escolástica. Ambos, Vesálio e Lalond, procedem a um corte epistemológico nos saberes e nos modelos de prestação de cuidados. Vesálio inaugura a era do conhecimento médico baseado na evidência anatómica, a que se lhe seguem as contribuições do anatomopatologista Morgagni e dos histologistas Bichat e Laennec, e Lalond dirige a sua atenção para a relevância da promoção da saúde no aumento da esperança de vida sem incapacidade ou doença.

Cronologicamente situado a meio caminho entre Hipócrates e Lalond, deve-se a Pedro Julião, ou Pedro Hispano, ou João XXI, o médico e teólogo do século xiii referido por Dante Alighieri no canto XII da Divina Comédia, uma das primeiras obras sobre a promoção da saúde. De facto, o Liber de Conservanda Sanitate 2, divido em duas partes, coisas que fazem bem e mal, no qual trata das substâncias com propriedades benéficas para todos os órgãos, e preservação da saúde, na qual aborda os estilos de vida considerados saudáveis na época, é um trado exaustivo sobre o que está e não está indicado para manter a saúde. Por exemplo: " Deve comer-se uma só vez, em todas as estações, porquanto morrem muitíssimos de excesso de saturação, e poucos de inanição. Por isso diz Galeno: a gula é uma das causas da morte. Pois matou mais gente do que a espada ou o cutelo. Por isso os modernos são filhos da gula".

De alguma maneira os caminhos apontados por Lalond representam um regresso a Hipócrates, levando agora na bagagem todo o arsenal de conhecimentos técnicos, tecnológicos e organizativos proporcionados por cinco séculos de exercício biomédico da medicina. Mas esse regresso é, também, uma manifestação dos limites e das limitações do modelo. A expressão mais representativa desses limites reside na circunstância de intervir exclusivamente sobre a doença e sobre uma fracção menor do ciclo vital, e a manifestação que melhor caracteriza as suas limitações é a de não garantir a erradicação da doença, sobretudo quando se trata de doenças crónicas. A revolução francesa ao proceder à transformação dos hospitais do ancien regime em organizações medicalizadas onde além do diagnóstico e do tratamento também se passou a produzir conhecimento, proporcionou ao modelo biomédico uma infra-estrutura estável e identificável que não deixou se diferenciar constantemente tendo passado a representar o exemplo de organização profissional mais complexa e sofisticada. É a esse facto e à missão em que estão investidos de salvar vidas que se deve a sua associação à representação social que se continua a ter da saúde.

Contudo, foi a descoberta da vacina por Jenner em 1789 e da penicilina por Fleming em 1928 que vieram alterar radicalmente o panorama epidemiológico da doença humana. Num caso, prevenindo, e noutro curando, estes dois avanços científicos continuam a representar as respostas mais eficazes para as doenças agudas, e aquelas que contribuem, no plano das tecnologias médicas, para maiores ganhos em esperança de vida. No entanto, foi fora da esfera da intervenção médica que se verificaram as alterações que vieram a demonstrar-se decisivas para a melhoria do nível de saúde das comunidades: a diminuição da dimensão das famílias, o aumento da quantidade e da qualidade dos alimentos, a melhoria do ambiente físico, o acesso à instrução e a invenção do frigorífico. Em conjunto, estes são os determinantes sociais que explicam que actualmente a esperança de vida dos europeus seja de oitenta anos e que, em média, só um sexto seja passado com doença ou incapacidade. Sendo inegavelmente um indicador invejável quando comparado com o das populações de outros continente e regiões, o desafio ao qual não está a ser conseguida dar uma resposta satisfatória consiste na dificuldade em controlar e reverter a expansão das doenças crónicas, responsáveis por 80 % da morbilidade nos países de rendimento médio/elevado.

Sendo, por definição, doenças de lenta progressão e longa duração, as doenças crónicas são o resultado de um complexo multicausal em que estão presentes várias combinações de excesso de peso, sedentarismo, tabagismo, alcoolismo, hipertensão e dietas monótonas, traduzidas em doenças cardiovasculares, cancro, diabetes, e doenças pulmonares crónicas, por sua vez responsáveis em todo o mundo por 60 % dos óbitos. Dada a necessidade desta entidade ter uma abordagem multisectorial e pluridisciplinar sob a forma de tracers, as organizações de saúde têm vindo a desenvolver uma linha de resposta na qual são aplicados os diferentes saberes das ciências da gestão, dado os vários ambientes e os múltiplos actores que nela intervêm.

Na adopção de estilos de vida saudáveis estando em causa escolhas individuais, mas também colectivas, os trade-off, para se tornarem úteis, terão sempre de ser feitos em contextos promotores da tomada de decisões sustentadas por informação credível, acessível e ajustada às características sócio-demográficas de cada população, seja ela jovem, adulta ou idosa; rural ou urbana; estudante, exercendo uma profissão ou reformada. O que se tem em vista na promoção da saúde é a expectativa de se obterem padrões sempre mais elevados de saúde e bem-estar uma vez que é para aí que aponta a Organização Mundial de Saúde quando ousou incluir o "estado de completo bem-estar físico, moral e social" na definição que fez de saúde e que desde 1948 tem servido de guia a todas as políticas de saúde.

Ao contrário do tratamento da doença, a infra-estrutura da promoção da saúde não tem um número de telefone fixo, nem um endereço, nem uma placa a sinalizá-la. O seu capital é exclusivamente composto por conhecimento, essa matéria intangível cuja distribuição ainda é bastante assimétrica e irregular mas à qual é desejável que todos tenham acesso de maneira a que o agenciamento da saúde tenda para zero. Enquanto na doença a aversão ao risco em tomar decisões próprias está plenamente justificado, na protecção e promoção da saúde o risco está em não tomar as decisões que mais contribuam para a conservar. Daí que a infra-estrutura que melhor responde a essa necessidade seja representada pelas redes sociais, sejam elas familiares, profissionais ou de lazer, formais ou informais, interactivas ou relacionais. Promover, expandir e reforçar essas redes é, por essa razão, garantir à promoção da saúde a única infra-estrutura capaz de contribuir para uma esperança de vida mais saudável.

 

Bibliografía

1. Lalond M. A new perspective on the health of Canadians. Ottawa: Minister of Supply and Services Canada; 1981.

2. Hispano P. Liber de conservanda sanitate. Lisboa: Sociedade Portuguesa de Medicina Interna; 2010.