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Revista Portuguesa de Saúde Pública

Print version ISSN 0870-9025

Rev. Port. Sau. Pub. vol.28 no.1 Lisboa  2010

 

Satisfação profissional dos profissionais de saúde: um imperativo também para a gestão

 

O tema da satisfação profissional, enquanto objecto de investigação, de formação e de prática no domínio da gestão em recursos humanos, chegou tarde, entre nós, ao campo da gestão em saúde, talvez ainda há menos de três décadas. Aqui, de algum modo, o legislador antecipou-se à realidade ou, melhor, mostrou estar atento aos sinais do(s) tempo(s). De facto, é com a lei de bases da saúde (Lei n.o 48/90, de 24 de Agosto), que se consagra, em termos jurídico-normativos, o conceito de avaliação da satisfação profissional no âmbito do sistema de gestão do Serviço Nacional de Saúde (SNS): a satisfação profissional passa a ser (ou deverá ser) um dos critérios de avaliação periódica do SNS, a par da satisfação dos utentes, da qualidade dos cuidados e da eficiente utilização dos recursos numa óptica de custo-benefício.

Apesar do sempre tão desejado (e conveniente) enquadramento legal, quando se fala da coisa pública, a integração do conceito levará mais tempo a passar do campo meramente académico (enquanto objecto de dissertações de mestrado e até teses de doutoramento), para a cultura e a prática gestionárias da saúde (ou para a governança da Saúde, como sói dizer-se hoje).

No entanto, foi preciso esperar quase uma década para que, com o MoniQuor — Monitorização da Qualidade Organizacional dos Centros de Saúde, em 1999, se viesse finalmente integrar na nova cultura gestionária da saúde o conceito de satisfação do cliente (interno e externo). Já na primeira década do século xxi, a satisfação do utilizador (sic) passa a ser um indicador importante na contratualização em saúde, e nomeadamente com as Unidades de Saúde Familiar, criadas no âmbito da Reforma dos Cuidados de Saúde Primários.

Os indicadores de satisfação (quer do utilizador quer do profissional) estão longe de fazer parte do painel de bordo do Chief Executive Officer (CEO) das nossas organizações de saúde, sejam no sector público, sejam nos sectores privado e social. Eram estranhos, até há relativamente pouco tempo, à cultura dos nossos gestores, tanto públicos como privados. Pertencentes ao domínio do subjectal (isto é, do software sócio-organizacional, incluindo a idiossincrasia, individual e grupal), continuam a ser vistos com alguma displicência, como indicadores de processo e não de resultado, sem o mesmo peso, em termos de validade e fiabilidade, e de capacidade discursiva, argumentativa e avaliativa, dos indicadores econométricos, de produção, etc. (considerados do domínio do objectal, isto é, do hardware, do dispositivo técnico-organizacional).

Um dos problemas sérios que se põem não só à investigação psicossocial neste domínio bem como à sua integração na prática dos gestores, é sobretudo de ordem teórico-metodológica. Tem justamente a ver com a dificuldade de construir instrumentos válidos e fiáveis, para além de «prontos a servir», para medir a satisfação enquanto atitude.

De um modo geral as atitudes (xenofobia, racismo, tolerância, satisfação, etc.) são medidas através de questionários, testes ou escalas. Parte-se do princípio que uma atitude forma um continuum podendo ir de um pólo positivo (satisfeito, tolerante, não racista, etc.) a um pólo negativo (não satisfeito, intolerante, racista, etc.) e, além disso, com vários graus de intensidade (por exemplo, muito satisfeito, bastante satisfeito, satisfeito, assim-assim, não satisfeito, bastante não satisfeito, muito não satisfeito). 

A satisfação é basicamente uma atitude que só pode ser verbalizada e medida através de opiniões e percepções; não pode ser observada e medida directamente, só pode ser inferida. Como tal, é distinta de um comportamento (v.g., doença, acidente, conflito, absentismo, turnover, desempenho, produtividade, ou até liderança). É, além disso, a satisfação profissional, uma atitude individual, distinta do clima organizacional ou do moral do grupo.

Enquanto atitude, a satisfação tem três componentes: (i) Afectiva («Gosto do que faço neste centro de saúde»); (ii) Cognitiva («Não há verdadeiro trabalho de equipa multiprofissional na minha USF»); (iii) Comportamental (ou, melhor, de intenção comportamental ou de tendência para a acção) («Tenho pensado ultimamente em concorrer ou pedir transferência para outra Unidade Local de Saúde»).

De acordo com as várias teorias psicossociológicas (privação, justiça, discrepância...), e em termos simplistas, poderíamos definir a satisfação no trabalho como o resultado da avaliação (periódica) que cada um de nós faz, em jeito de balanço, relativamente ao grau de realização dos seus valores, necessidades, preferências e expectativas profissionais.

Essa avaliação que cada um de nós faz do conteúdo, organização e demais condições do seu trabalho (operação que é sempre mental e emocionalmente complexa, embora feita instantânea e empiricamente), é no fundo uma pessoa perceber ou sentir que aquilo que recebe (por exemplo, dinheiro, segurança no emprego, protecção contra os riscos, conforto, bem-estar, amizade dos colegas, apreço dos utentes, autonomia no trabalho, oportunidades de formação contínua, desenvolvimento e reconhecimento de um projecto profissional) é justo ou está de acordo com aquilo que esperava obter.

Há um certo consenso sobre a importância da avaliação regular, e participada, da satisfação profissional, já que é um importante indicador do clima organizacional e, mais do que isso, um elemento determinante da avaliação da qualidade das empresas e demais organizações, a par da satisfação dos clientes. Em todo o caso, a relação entre a satisfação e os resultados do desempenho individual e organizacional não é linear, embora muitos estudos apontem para uma associação ou correlação entre a satisfação, certas variáveis sociodemográficas (por exemplo, profissão, antiguidade, cargo ou função) e certos comportamentos ou intenções comportamentais (por exemplo, desempenho, rotação ou turnover do pessoal, absentismo, stress).

As estratégias de investigação que temos vindo a usar continuam a privilegiar o modelo atomístico do inquérito por questionário (incluindo a aplicação de escalas de atitudes ou psicométricas, muitas vezes de origem estrangeira, depois da validadas em termos linguísticos, semânticos e conceptuais, que à partida têm a vantagem de permitirem comparações entre países, sistemas, profissões e organizações, e produzirem informação estatística, sem a qual os nossos sistemas de gestão — e o seu paradigma actual, o managerialismo — têm dificuldade em viver e até sobreviver)... Pouca importância tem sido dada às abordagens mais finas, qualitativas, que valorizam o vivido do indivíduo e a sua expressão: histórias de vida, entrevistas em profundidade, grupos focais, narrativas, comentários e sugestões, proposta de melhoramento, etc.

Por exemplo, o que e sabemos nós da estrutura motivacional dos profissionais de saúde em Portugal? Ora, a motivação é distinta da satisfação. Nos modelos de análise usados para entender o comportamento do indivíduo nas organizações, a satisfação surge como resultado de um processo complexo de avaliação cognitiva, que vai da motivação à percepção dos resultados ou recompensas.

Em termos muito simples, a motivação é a força interior que leva o indivíduo a agir de uma determinada maneira. «Motivar» deriva do latim motivu, relativo a movimento, móvel (e, mais tarde, causa, razão, móbil). É essa motivação (por exemplo, a necessidade de realização, de poder ou de afiliação) que faz com que eu tenha a expectativa de atingir um certo de desempenho (medido em quantidade e qualidade de trabalho), mediante o dispêndio de um certo esforço (físico e mental).

Todavia, o meu desempenho não depende apenas da motivação que leva a um determinado esforço, depende também da conjugação de outros factores, endógenos e exógenos, que em grande parte estão fora do meu controlo. É o caso, por exemplo, das capacidades, aptidões, competências, experiência, qualificação ou treino do indivíduo (factores endógenos ou características individuais mas também sociodemográficas: o género não é apenas uma marca biológica, mas também sócio-cultural).

Por outro lado, há outros factores (exógenos) que podem ser vistos como constrangimentos extrínsecos, ligados ao ambiente, quer interno, quer externo, sócio-ecológico, que se reflectem no meu trabalho, de uma maneira directa ou indirecta, e que estão fora do meu controlo (mas que estão em grande parte sob o controlo dos gestores e dos decisores políticos). Grosso modo, são as minhas condições de trabalho: por exemplo, o sistema e a política de saúde do país, a missão, os valores e a estratégia da organização, a disponibilidade de recursos (humanos, técnicos e financeiros), a política de remuneração da função pública, o conteúdo, a organização e as demais condições do trabalho nos hospitais e nos centros de saúde, incluindo os factores de risco de natureza física, química, biológica e psicossocial.

De qualquer modo, é em função do meu desempenho que obtenho ou espero vir a obter certos resultados, sob a forma de recompensas (extrínsecas ou intrínsecas, conforme a minha hierarquia de valores), que levam a um resultado final que é a satisfação e que vai ter um efeito retroactivo na minha motivação futura.

Trata-se, em todo o caso, de uma atitude multidimensional: a satisfação manifesta-se não em relação a algo de abstracto e global mas sim a algo de concreto e particular (a profissão médica, a especialidade de medicina geral e familiar, a carreira de clínica geral, o SNS, a organização e o funcionamento das USF, o vencimento, as condições de trabalho, os riscos profissionais, a relação terapêutica, a garantia de qualidade, as oportunidades de formação contínua, as relações com os colegas, etc.).

Teremos, além disso, de saber quais são os resultados (ou recompensas) que cada indivíduo mais valoriza ou às quais dá mais importância (por exemplo, sucesso, performance, prestígio, relacionamento, dinheiro, auto-estima, poder, realização). É importante também, para a gestão de recursos humanos, fazer a distinção entre recompensas extrínsecas (ou exógenas, exteriores ao indivíduo, fora do poder de controlo do indivíduo) e intrínsecas (ou endógenas, aquelas que o indivíduo dá a si próprio como, por exemplo, o sentimento de auto-realização).

Em suma, para além do indispensável radiografia psicossocial que importa fazer dos nossos profissionais de saúde, a avaliação da satisfação profissional pode e deve ser também um indicador do desempenho dos nossos gestores, públicos e privados.