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Revista Portuguesa de Saúde Pública

versão impressa ISSN 0870-9025

Rev. Port. Sau. Pub. v.27 n.2 Lisboa jul. 2009

 

A Saúde Pública e as respostas sociais (e inteligentes) às crises

 

Sobre a vacina pandémica, pode ler-se no Blogue Agir contra a Gripe, em poste de 27 de Outubro de 2009, o seguinte:

«A afirmação de que os benefícios da vacina são muito superiores aos riscos não é uma opinião pessoal. A vacina pandémica é recomendada pela OMS, CDC, ECDC e por todas as direcções gerais [de saúde] dos países conhecidos. A vacina da Gripe só é utilizada porque foi autorizada por entidades independentes das outras já referidas, como a Agência Europeia do Medicamento e a Food and Drug Administration. O facto das primeiras entidades recomendarem a vacina e as segundas referidas aprovarem o seu licenciamento é que fundamenta a utilização da vacina e, portanto, não se baseia em opiniões pessoais.

Mas este fundamento tem sido posto em causa pelos novos meios de comunicação (Youtube, Twitter, Blogues, etc.) por pontos de vista que, pela sua natureza, chamam a atenção das pessoas e são disseminadas com rapidez, e que vão desde opiniões pessoais não fundamentadas até a interpretações fantásticas sobre a pandemia e a vacina da Gripe.

Um aspecto importante a referir é que a difusão do conhecimento técnico e científico ainda obedece a regras clássicas (aprovação, publicação, disseminação) sendo portanto morosa, enquanto a difusão do rumor/boato é muito mais rápido mesmo que as fontes não sejam credíveis e o seu conteúdo faça pouco sentido». (Itálicos nossos).

Este blogue está associado ao Centro de Análise da Resposta Social à Gripe Pandémica (grupo de Investigação & Desenvolvimento da ENSP/UNL). E a sua criação, em 30 de Junho de 2009, era justificada nestes termos:

«A preparação para fazer face a uma pandemia de gripe requer a adopção de novos procedimentos e abordagens — melhorar processos de comunicação, introduzir novas modalidades de teletrabalho, encontrar novas formas de servir os clientes habituais, investir na aprendizagem à distância. Esta é também uma oportunidade para a inovação [para as empresas e demais organizações]».

A resposta social (e inteligente) à pandemia da Gripe H1N1 deverá, pois, assentar em três ideias-chave ou princípios de abordagem: (i) alinhamento nas «regras do jogo» de um desafio global; (ii) activação de respostas inteligentes nas redes sociais de proximidade (família, comunidade, escola, local de trabalho, associações de doentes crónicos, rede cuidados de saúde primários); (iii) capacidade de inovação em tempo de crise... Estes também são alguns dos novos desafios com se defronta a nova Saúde Pública no século XXI... Como dizem dois conhecidos jornalistas portugueses, o Twitter, por exemplo, é «uma agência noticiosa, mas ainda mais rápida» (Paulo Querido), ou «é a notícia em tempo real» (Alberta Marques Fernandes)... A sua capacidade de mudar conhecimentos, atitudes e comportamentos não pode ser negligenciada, pelos homens e mulheres da Saúde Pública.

Os utilizadores das novas redes sociais não podem ser nem sobrevalorizados nem ignorados ou escamoteados, mesmo sabendo que o índice de retenção de audiência do Twitter (percentagem de utilizadores do primeiro mês que continuam a usar o site no mês seguinte) tende a baixar na ordem dos 50%. Mas também não se espere que se opere, de modo fácil, passivo e acrítico, o alinhamento (e a compliance) de algumas dezenas de milhões de utilizadores, com as autoridades de saúde (a nível mundial, nacional, regional e local). Na aldeia global, message is massage... e a Saúde Pública, enquanto poder societal, terá de aprender a lidar com os efeitos, contra-intuitivos e até perversos, da democratização da informação e do conhecimento nas sociedades da nova Galáxia, a da Internet.

Mensagens que podem ser classificadas na categoria de rumor/boato — por exemplo, «A Pandemrix®, a vacina que contra a gripe A que está a ser dada em Portugal e na maioria dos países Europeus, não está autorizada nos Estados Unidos por conter componentes prejudiciais à saúde» — circulam muito mais rapidamente na Internet do que uma circular normativa da Direcção Geral de Saúde...

O mesmo se passa, de resto, com o alinhamento (e a compliance) dos profissionais de saúde, incluindo alguns médicos que têm manifestado reservas à eficácia e segurança da vacina e até mesmo a recusa, a título individual, da aplicação da vacina.

A Saúde Pública não é a Medicina tout court, mas não pode nem deve ignorar o papel das profissões de saúde e da sua influência societal quando os médicos e os demais profissionais se manifestam em público, a título pessoal ou em nome das respectivas ordens.

Pandem(ón)ia foi o título, irónico, se não mesmo sarcástico, de um editorial, recente, da Revista da Ordem dos Médicos (Abril de 2009, em que se parte da constatação da «histeria colectiva centrada [na OMS]», criada pela ameaça pandémica.

Céptico em relação à utilidade e eficácia dos emergentes planos de contingência para fazer face a «um desafio que se espera nunca venha [a classe médica] a ter que enfrentar», o bastonário da OM é claramente defensor da clássica intervenção de tipo comando e controlo e do poder dos especialistas (versus poder dos políticos), mas fazendo questão de reiterar publicamente «a sua confiança na Direcção-Geral da Saúde e seus técnicos, bem como na gestão política e de comunicação da Ministra».

Como médico, o Bastonário da OM, habituado como está «ao inesperado, à incerteza e às vitórias e derrotas», diz que sabe quão «importante é na altura crítica manter o sangue frio, agir de acordo com o bom senso e responder efectivamente aos desafios».

Em suma, numa situação-limite como é (ou pode ser) uma pandemia, «o bem a preservar é a confiança, a disponibilidade para obedecer a uma voz de comando mesmo que mais tarde se contestem as suas decisões». E «preservar a confiança» implica duas coisas: (i) tranquilidade e sabedoria de quem dirige; e (ii) estar por dentro («deter o conhecimento necessário à tomada de decisão»).

E o editorial termina, pondo a ênfase na dicotomia informação/conhecimento e leigo/ especialista, dicotomia sempre actual, e para mais num cenário de pandemia (como esta da Gripe A H1N1), com os seus (im)previsíveis riscos, não só de natureza epidemiológica e demográfica como sobretudo sociais, económicos e até políticos: «Como médicos todos percebemos como é fácil a quem conhece, a quem compreende, explicar; e como é difícil fazê-lo para quem do assunto só sabe a espuma dos dias veiculada pela comunicação social.» (Itálicos nossos).

Parece-nos que a esta visão da gestão da pandemia, haverá necessariamente que acrescentar uma outra, e que tem vindo a ser defendida pelo supracitado Centro de Análise da Resposta Social à Gripe Pandémica: o principal ensinamento que se pode tirar da forma como a população e as autoridades de saúde do nosso país estão a lidar com a actual pandemia é a importância do primado da política (politics) e das políticas (policies) de saúde, em estreita articulação com o dispositivo técnico-organizacional da administração da saúde (que felizmente tem vindo a ser reforçado, em oposição a uma visão minimalista do Estado e do seu papel supletivo, como teve no passado)... De facto, não bastam o empirismo e o voluntarismo nem o saber agir localmente, é preciso saber pensar globalmente. Talvez nunca como agora, é válido a máxima de Kurt Lewin: «Nada mais prático do que uma boa teoria.»

Sabemos, da história da Saúde Pública, que a via da repressão, com as suas diversas variantes (v.g., segregação sócio-espacial, internamento forçado ou abandono puro e simples dos doentes), é o traço comum do sanitarismo até ao final do Antigo Regime (ou seja, até à emergência do Estado Moderno, em finais do século XVIII). Saúde e terror sempre estiveram de mãos dadas, a par da caridade e da forca (parafraseando o título de um livro de Bronislaw Geremek). A pouco e pouco foi-se criando uma verdadeira administração de saúde (físico-mor do reino, provedor-mor de saúde e seus ajudantes, regimentos de saúde, criação de estabelecimentos distintos dos hospitais, para acolher e tratar as vítimas de «peste», como as «casas da saúde», os «lazaretos», o ensino e a divulgação da Higiene, etc.), fazendo parte integrante do incipiente aparelho sanitário de Estado.

Não tem mais do que três séculos — foi promulgado em 1695 — o famoso Regimento do Que se Ha-de Observar Succedendo Haver Peste (de que Deus no Livre) em Algum Reino ou Provincia Confiante com Portugal.

Trata-se de um típico documento de sanidade internacional que será completado, dez meses depois, com o Regimento para o Porto de Belém. Entre outras medidas, estes dois diplomas vinham instituir o cordão sanitário à volta das fronteiras e as quarentenas (isolamento forçado) para tripulações e navios que demandassem os portos portugueses, oriundos de país suspeito, numa época em que o meio de transporte mais rápido ainda eram os veleiros, e os países podiam fisicamente isolar-se do resto do mundo.

Por outro lado, e depois da reforma da Universidade de Coimbra de 1772, há um crescente interesse dos nossos médicos pela higiene individual e social (incluindo a organização dos serviços sanitários). Higiene era então sinónimo de Saúde Pública, fazendo parte do plano de estudos do curso de medicina.

Tornam-se igualmente populares nesta época os Avisos ao Povo e os Avisos Interessantes. O seu sucesso não deixa de ser sintomático da crescente avidez de um público burguês e urbano em relação a novas formas de saber, incluindo o saber médico. Muito ao gosto iluminista e enciclopedista da época, estas obras tinham como objectivo divulgar o conhecimento médico pelas camadas leigas, semi-letradas, da população, e em particular de uma burguesia, ainda restrita, mas em ascensão, numa época em que a população portuguesa não ultrapassaria os três milhões. Em geral, eram opúsculos, com títulos enormes e sensacionalistas, constituindo uma variante médica da literatura de cordel, escrita no melhor estilo oral dos nossos feirantes que ainda num passado recente vendiam «a banha da cobra» nas feiras e mercados das vilas e aldeias do interior.

Em resumo, as preocupações com a defesa da (e a literacia em) Saúde Pública já vêm de longe. Em todo o caso, as medidas propostas tanto pelas autoridades sanitárias (a nível do poder central e local) como pelos próprios médicos que se interessaram pela Higiene, sempre foram avulsas, inconsequentes e, em grande parte, ditadas pelo terror que inspiravam as cíclicas epidemias (incluindo a da gripe) que até 1918/1919 dizimaram populações inteiras.

A única diferença em relação à pré-história e proto-história da nossa Saúde Pública, está hoje não só no nosso saber (e na sua fundamentação científica) bem como na vasta rede de produção, validação, comunicação e disseminação do conhecimento (que tem por detrás a cité savante) a par da legitimidade democrática do poder político, nas nossas sociedades abertas, da racionalidade técnico-burocrática do aparelho sanitário e da importância de organizações internacionais, como a OMS, que criámos, sob a égide das Nações Unidas, no pós-guerra.

Naturalmente também pagamos um preço pelas redes de comunicação, multicêntrica, multilateral, aberta, instantânea, plural e livre, que, a par do ruído, do rumor e do boato, vem aumentar (de maneira exponencial, em relação ao passado) a nossa capacidade de não apenas resolver problemas e conflitos como de identificar e prevenir novos problemas e conflitos mais graves e, em última análise, potenciar a nossa capacidade de aprender, inovar e mudar em conjunto. É esse desafio que queremos disputar e, mesmo que saibamos que existe às vezes pouca probabilidade de vencer, queremos jogar convencidos que podemos vencer. Esse jogo é, sem dúvida, já em si, uma grande vitória da Saúde Pública.