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Análise Psicológica

versão impressa ISSN 0870-8231versão On-line ISSN 1646-6020

Aná. Psicológica vol.37 no.1 Lisboa mar. 2019

https://doi.org/10.14417/ap.1564 

Conhecimentos e perceções públicas acerca do acolhimento familiar: Contributos para o desenvolvimento da medida

Public knowledge and perceptions on family foster care: Contributes to it’s development

Mariana Negrão1, Marina Moreira1, Lurdes Veríssimo1, Elisa Veiga1

1Centro de Investigação para o Desenvolvimento Humano, Faculdade de Educação em Psicologia, Universidade Católica Portuguesa, Porto, Portugal

Correspondência

 

RESUMO

O acolhimento familiar é uma medida de promoção e proteção de crianças e jovens que tem ganho crescente expressividade na Europa nas últimas décadas. Paralelamente, a investigação tem evidenciado um maior ajustamento desta resposta face às necessidades desenvolvimentais das crianças em perigo. Não obstante, em Portugal, esta é ainda uma medida com muito pouca representação. A capacidade de promover o Acolhimento Familiar, para além de muitos e complexos fatores de ordem política, legislativa e financeira, estará também dependente dos conhecimentos e perceções que a população em geral possa ter sobre a problemática. Assim, este estudo analisa os conhecimentos e perceções de uma amostra da população portuguesa (n=270) acerca do acolhimento familiar. Os resultados demonstram poucos conhecimentos acerca da realidade do acolhimento, mas uma atitude favorável face ao acolhimento familiar e uma elevada disponibilidade dos inquiridos para se tornarem família de acolhimento. A discussão dos resultados é feita tendo em conta as suas implicações para a promoção de uma cultura de acolhimento familiar e para a criação de condições que viabilizem a adesão à medida em Portugal.

Palavras-chave: Acolhimento familiar, Crianças em perigo, Conhecimentos e perceções públicas.

 

ABSTRACT

Family foster care is a child protection measure that gained representation throughout Europe in the last decades. Parallel, research underlines the better fit of family foster care to the developmental needs of at risk children and youth. However, in Portugal, this is still an underrepresented measure in the Child Protection System. Beyond many complex political, legal and financial aspects, the ability to promote family foster care, may be also dependent on the knowledge and perceptions that general public might have on the subject. This study analyses public (n=270) knowledge and perceptions about family foster care. Results show little knowledge about the out of home care system, but a favourable attitude towards family foster care and a high availability to become foster carer. Results are discussed taking into account its implications towards the promotion of a culture of family foster care and towards the strengthening of conditions that foster the development of the measure.

Key words: Family foster care, At risk children, Public perceptions, Public knowledge.

 

Introdução

O direito da criança a crescer num contexto estável, seguro e promotor do seu desenvolvimento está consagrado na Convenção dos Direitos da Criança (UNICEF, 1989). No entanto, as famílias biológicas nem sempre conseguem garantir um ambiente apropriado ao desenvolvimento infantil, pelo que muitas crianças se encontram ao abrigo de medidas de promoção e proteção, que visam garantir a sua segurança e desenvolvimento integral. Uma destas medidas – o acolhimento familiar – tem como objetivo proporcionar à criança um ambiente familiar alternativo que, de forma temporária, garanta a prestação de cuidados adequados às necessidades, bem-estar e a educação necessária ao desenvolvimento integral da criança, enquanto se redefine o seu projeto de vida (Decreto-Lei 142/2015, artigo 46.º).

Tem sido reunido um substancial consenso em torno da primazia do acolhimento familiar sobre o residencial para a maioria das crianças cuja história de vida é marcada pela vulnerabilidade, disfuncionalidade familiar, negligência e maltrato, que ocasionam a retirada familiar. A justificação desta posição baseia-se em argumentos tais como a semelhança com o ambiente natural, ou a facilitação da criação de uma relação investida, particular e estável com os acolhedores (McCall, 2011; Zenah, Shauffer, & Dozier, 2011), tão mais difícil nas instituições de acolhimento, tantas vezes ainda caracterizadas por um elevado rácio criança/cuidador, parca formação dos cuidadores, e consequente baixa qualidade do cuidado prestado (Soares et al., 2014).

De facto, a investigação tem documentado o impacto positivo do acolhimento familiar nas crianças acolhidas. Estudos de referência como o Bucharest Early Intervention Project (Nelson, Fox, & Zeanah, 2014) evidenciam os efeitos positivos do acolhimento familiar na recuperação de dimensões cognitivas, de linguagem, de expressão emocional, de segurança e organização da vinculação das crianças abrangidas por esta resposta. Resultados de outros estudos demonstram também efeitos positivos no ajustamento psicológico, na melhor recuperação de problemas comportamentais e de sintomas de stress pós traumático, no maior aproveitamento escolar e taxa de empregabilidade, reforçando as mais-valias do acolhimento familiar comparativamente ao residencial (e.g., Ahmad et al., 2005; Barber & Delfabbro, 2005; Dregan & Guilliford, 2012; Nowacki & Schoelwerich, 2010).

Em linha com estas evidências, a Europa tem aderido de forma progressiva a uma política de desinstitucionalização das crianças e jovens em perigo, já consolidada em muitos países. Destaca-se a recomendação da Comissão Europeia no sentido da progressiva eliminação de instituições destinadas a crianças que se encontram privadas de cuidados parentais, privilegiando soluções de qualidade no âmbito de estruturas de proximidade e junto de famílias de acolhimento (Recomendação da Comissão Europeia 112/2013).

Espelhando a tendência europeia, em setembro de 2015, Portugal altera a Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo, passando a consignar o privilégio do acolhimento familiar em detrimento do residencial, especialmente para crianças até aos seis anos (Decreto-Lei 142/2015, artigo 46.º). Apesar de formalizado legalmente em 1979, o acolhimento familiar em Portugal é uma medida de promoção e proteção cuja implementação se caracteriza ainda por muitas debilidades. Desde logo, o acolhimento familiar em Portugal representa atualmente apenas 3,5% do acolhimento (Instituto de Segurança Social [ISS], 2016), o que se encontra em clara clivagem com a maioria dos países europeus, nomeadamente alguns com quem se partilham semelhanças culturais e/ou religiosas. A título de exemplo refere-se o caso de Espanha, em que 60.4% das crianças acolhidas estão em acolhimento familiar, e o caso da Irlanda em que esta percentagem ascende aos 90,5% (Del Valle & Bravo, 2013). Além da diminuta expressividade da percentagem de crianças em acolhimento familiar, no nosso país, esta medida caracteriza-se ainda pela ausência de campanhas regulares de divulgação, recrutamento e seleção de potenciais acolhedores, consequente baixo número de famílias constantes na bolsa de acolhedores, bem como por entraves ao acompanhamento dos processos motivados pelos limitados meios humanos e materiais disponibilizados pelos serviços (Delgado, Lopez, Carvalho, & Del Valle, 2015).

A mudança legislativa exige, por isso, profundas transformações na forma de promover esta medida. Contudo, a aparente insuficiência de uma cultura de acolhimento familiar em Portugal pode constituir-se como uma ameaça ao seu necessário desenvolvimento. Neste contexto, assume particular relevância explorar quais os conhecimentos e perceções que atualmente a população portuguesa tem acerca do acolhimento familiar, como ponto de partida de todo um processo que perspetive potenciar esta medida, e assim dar resposta mais ajustada às crianças e jovens em perigo.

A perceção do público sobre o acolhimento familiar, sendo, tanto quanto sabemos, um tema ausente da literatura no nosso país, é também escassamente tratado na literatura internacional. Enquanto alguns estudos abordam as perceções acerca do acolhimento na perspetiva dos acolhedores, e (menos comummente) na perspetiva das crianças acolhidas, muito poucos estudos exploram as perceções da população em geral. Uma exceção é o estudo de Leber e Lecroy (2012) que investiga os conhecimentos e perceções da população norte americana sobre o acolhimento familiar. Os seus resultados revelam que a população detém um conhecimento relativamente amplo sobre o assunto e uma visão positiva das motivações das famílias de acolhimento, essencialmente centradas no apoio às crianças. Simultaneamente, o estudo enfatiza o desconhecimento acerca dos motivos pelos quais as crianças entram no sistema de proteção, e a controvérsia de algumas questões, como por exemplo, a remuneração a atribuir às famílias de acolhimento.

O presente estudo visa assim contribuir para a exploração dos conhecimentos e perceções de uma amostra da população portuguesa sobre a medida de acolhimento familiar. Mais concretamente, este estudo pretende: (a) avaliar conhecimentos acerca das medidas de acolhimento; (b) identificar efeitos positivos e riscos percebidos como inerentes ao acolhimento familiar; (c) descrever motivações, condições e obstáculos ao acolhimento familiar; (d) explorar a disponibilidade/indisponibilidade dos participantes para se tornarem famílias de acolhimento.

 

Método

 

Amostra

A amostra é constituída por 270 indivíduos com idades compreendidas entre os 19 e os 65 anos de idade (M=37.81; DP=13.01), sendo que a maioria pertence ao sexo feminino (67%). A maior parte dos participantes são casados (51.9%). Mais de metade dos participantes têm filhos (53.3%) e uma expressiva maioria afirma ser católico (n=197). Em termos de habilitações literárias, a amostra é heterogénea: 49.6% das pessoas detêm uma licenciatura, 21.9% completaram o ensino secundário e 15.9% o ensino básico (cf. Tabela 1).

 

 

No que diz respeito à profissão, a amostra é também diversificada, havendo participantes da área da economia, saúde, educação, direito, indústria, entre outros.

 

Instrumentos

A escassez de estudos neste domínio, e a necessidade de um instrumento de recolha de dados ajustado à delimitação do acolhimento familiar no contexto da realidade portuguesa e do seu enquadramento legal, deram origem à construção de um instrumento que pudesse responder aos objetivos deste estudo. O Questionário sobre Perceções acerca do Acolhimento Familiar (Negrão, Veiga, Veríssimo, & Moreira, 2017) inspirou-se no trabalho de Leber e LeCroy (2012), bem como na investigação de Tyebjee (2003) sobre as atitudes, interesses e motivações para adoção e acolhimento familiar. Paralelamente foi também realizada uma revisão de literatura aos contributos de especialistas na área.

Uma vez construído o questionário, foi realizada uma reflexão falada junto de sete indivíduos de diferentes faixas etárias, profissões e habilitações literárias. Este processo permitiu fazer ajustes ligeiros na formulação de alguns itens, no sentido da sua simplificação e clara compreensão. A versão de investigação do instrumento é constituída por cinco grandes partes, a primeira parte diz respeito à informação sociodemográfica dos participantes. A segunda – Conhecimentos acerca do acolhimento – é constituída por cinco perguntas de escolha múltipla e procura avaliar os conhecimentos gerais sobre o sistema de acolhimento (e.g., Em 2015, quantas crianças e jovens estavam em acolhimento familiar?), de acordo com a legislação e dados disponíveis acerca da medida no nosso país. A terceira parte – Perceção acerca de efeitos positivos e riscos do acolhimento – Inclui 12 itens avaliados através de uma escala likert de cinco pontos e analisa as perceções de efeitos positivos e riscos que podem resultar da medida de acolhimento familiar. Uma análise fatorial exploratória verificou a existência de duas dimensões – perceção de efeitos positivos com um alfa de Cronbach de .74 (e.g., O Acolhimento Familiar dá oportunidade à criança de criar relações familiares saudáveis), e perceção de riscos com um alfa de Cronbach de .68 (e.g., O Acolhimento Familiar é emocionalmente desgastante para o casal acolhedor), explicando 42.43% da variância. Esta dimensão inclui também uma pergunta dicotómica sobre a melhor opção de acolhimento em situações de perigo (acolhimento residencial ou acolhimento familiar), seguindo-se de um conjunto de opções que permitem justificar a resposta anterior. A quarta parte – Perceção das condições, motivações e obstáculos face ao acolhimento – é constituída por 11 afirmações avaliadas em escala likert de cinco pontos para verificar o grau de concordância relativamente a condições necessárias ao acolhimento (e.g., Não é importante que as famílias de acolhimento recebam formação) e também questões acerca das motivações/obstáculos ao acolhimento, com diversas alternativas de resposta. Por fim, a última parte do questionário – Disponibilidade para o Acolhimento Familiar – aborda a disponibilidade/indisponibilidade para o acolhimento familiar através de uma questão dicotómica, seguida de uma pergunta aberta que explora a fundamentação desta opção.

 

Procedimentos de recolha de dados

A recolha de dados foi realizada na comunidade pelos investigadores da equipa, tendo sido cumpridos os princípios éticos e deontológicos de uma participação voluntária e informada dos objetivos e procedimentos do estudo, garantindo as questões inerentes ao anonimato e confidencialidade dos dados.

 

Resultados

 

Conhecimentos acerca das medidas de acolhimento

Os resultados demonstram que, de uma forma geral, os participantes têm poucos conhecimentos sobre o tema (cf. Tabela 2): todas as questões tiveram menos de 50% de acertos. Os dados demonstram que os participantes tendem a considerar que são crianças mais novas que estão em situação de acolhimento, hipervalorizam a exposição ao mau trato físico como causa do acolhimento, subestimam o número de crianças e jovens em acolhimento residencial e, pelo contrário, sobrestimam o número de crianças e jovens em acolhimento familiar. A questão que reuniu maior número de respostas corretas dizia respeito ao tempo médio de permanência em acolhimento.

 

 

 

Perceções acerca de efeitos positivos e de riscos do acolhimento familiar

Quando uma criança está em situação de perigo e tem de ser temporariamente retirada à família biológica, os participantes identificam o acolhimento familiar como a melhor opção (74.1%), justificando-o com o facto da dinâmica familiar ser mais ajustada às necessidades da criança (72.5%) – cf. Tabela 3.

 

 

Das 68 pessoas que identificaram o acolhimento residencial como a melhor opção, a maioria justifica-o com o argumento de este não sujeitar as crianças a novas perdas/descontinuidades das relações (70.6%) – cf. Tabela 4.

 

 

A análise descritiva demonstra que a população em geral parece percecionar mais efeitos positivos (M=3.90; DP=.47) do que riscos (M=3.30; DP=.52), no acolhimento familiar (cf. Tabela 5). Os efeitos positivos mais valorizados centram-se no bem estar da criança acolhida (e.g., Oportunidade da criança criar de relações familiares saudáveis, M=4.19; DP=.70), e o risco mais evidenciado diz respeito à preocupação de que as crianças mais velhas e adolescentes não consigam estabelecer relações significativas com as famílias de acolhimento (M=3.83; DP=.76).

 

 

 

Motivações, condições e obstáculos para o acolhimento familiar

Na Tabela 6 são apresentadas as motivações dos participantes para o acolhimento. No topo da tabela, como sendo as motivações mais prevalentes, destaca-se a experiência familiar positiva para a criança (assinalada por 82.6% dos participantes) e fazer a diferença na vida da mesma (79.6%).

 

 

Relativamente às condições necessárias para o acolhimento familiar (cf. Tabela 7), a maioria dos participantes mostrou concordância com os itens relacionados com a importância do acompanhamento dos serviços sociais e da maior atenção do governo a esta questão. As qualidades afetivas e relacionais da família de acolhimento são também valorizadas como condições importantes para o acolhimento, assim como a possibilidade em adotar a criança. Os dados permitem ainda verificar que o público está mais dividido quanto ao papel fundamental da manutenção do contacto entre a família de acolhimento e a família biológica, e à necessidade de uma retribuição monetária pelo acolhimento.

 

 

Já relativamente aos obstáculos para o acolhimento (Tabela 8) verifica-se que os participantes assinalam maioritariamente as limitações de tempo devido a motivos profissionais (76.7%) seguindo-se os recursos financeiros que consideram insuficientes (63%).

 

 

 

Disponibilidade/indisponibilidade para se tornar família de acolhimento e respetiva fundamentação

Quando questionados sobre a possibilidade de, em algum momento da sua vida, virem a acolher uma criança, a maioria dos participantes afirmam ter essa disponibilidade (63.3%). A fundamentação da resposta anterior, recolhida através de uma questão aberta, foi analisada por dois dos autores, que regularmente discutiam e analisavam as propriedades das categorias emergentes dos dados, resolvendo divergências e alcançando consensos, que orientavam a análise subsequente. Este processo de comparação constante (Strauss & Corbin, 1998) permitiu desenvolver um sistema de categorias e de subcategorias relacionadas (Dey, 1993; Saldanha, 2011) que descreve de forma exaustiva os argumentos apresentados pelos participantes na fundamentação da sua resposta (ter ou não ter disponibilidade para acolher uma criança).

Assim, a disponibilidade em acolher uma criança foi baseada em vários tipos de argumentos, assinalados por ordem decrescente considerando o número de indivíduos que os apontam: (1) Benefícios para a criança (e.g., contribuir para o desenvolvimento, ajudar a criança, fazer a diferença, ter impacto positivo); (2) Direitos da Criança (e.g., dar carinho e amor, valorizar a criança, educar a criança, dar uma família); (3) Benefícios para o próprio acolhedor (e.g., dar significado à própria vida, gostar de crianças, por não poder ter filhos); (4) Recursos (e.g., ter recursos habitacionais, financeiros, disponibilidade de tempo); (5) Solidariedade (e.g., ajudar o próximo, por que também gostava que o ajudassem); ou (6) Condições do próprio sujeito (e.g., ter perfil indicado, convivência com os filhos biológicos; possibilidade de adotar).

As 75 pessoas que responderam que não estavam disponíveis para acolher crianças e jovens, justificam-no, maioritariamente com: (1) Questões pessoais/emocionais (e.g., falta de vontade e disponibilidade, personalidade não ser adequada, idade avançada); (2) Falta de recursos (e.g., condições financeiras e habitacionais insuficientes); (3) Questões Familiares (e.g., já ter filhos, provocar instabilidade familiar); (4) Problemas relativos à criança (e.g., a criança retornar à família de origem, problemas comportamentais); ou (5) Questões Profissionais (e.g., fazer muitas viagens, ser muito ocupada profissionalmente).

 

Discussão

A capacidade de promover o acolhimento familiar, para além de muitos e complexos fatores de ordem política, legislativa e financeira, estará também dependente do conhecimento mais ou menos limitado ou da perceção mais ou menos realista ou positiva que a população possa ter sobre a problemática. Tal como outros autores (Leber & Lecroi, 2012), defende-se que a descrição dos conhecimentos e perceções em torno do acolhimento familiar poderá ser de extrema relevância, quer para efeitos de sensibilização social, quer para informar as estratégias de recrutamento de famílias qualificadas, para mapear as suas necessidades de formação e acompanhamento, ou ainda para responder a tantas outras questões relevantes implicadas nas políticas de acolhimento de crianças e jovens. É pois neste enquadramento da potencial pertinência e utilidade que este retrato possa ter para o (melhor e mais amplo) funcionamento do acolhimento familiar como medida de proteção à infância em Portugal, que estes resultados são discutidos.

Uma primeira conclusão relevante é que os participantes apresentam uma perceção bastante favorável do acolhimento familiar, como é possível constatar a partir dos resultados relacionados com a elevada disponibilidade para acolher, com o privilégio do acolhimento familiar face ao acolhimento residencial na resposta a situações de perigo, e com a valorização dos efeitos positivos do acolhimento familiar em comparação aos riscos. Este cenário, que parece ser favorável ao desenvolvimento da medida no nosso país, tem naturalmente que ser contrastado, quer com o efeito de alguma desejabilidade social que possa subjazer a esta elevada disponibilidade para o acolhimento, quer com os dados que demonstram um desconhecimento considerável da realidade do acolhimento por parte da população. Neste âmbito, sobressai a subvalorização do número de crianças em acolhimento residencial e a sobrevalorização do número de crianças em acolhimento familiar. Estes resultados parecem indicar que o acolhimento familiar é percecionado socialmente como mais desenvolvido e consolidado do que o é na realidade.

Diferentes indicadores recolhidos neste estudo apontam para o primado das relações enquanto fator de ponderação fulcral para tomadas de decisão em relação ao acolhimento familiar. De facto, os participantes são quase unânimes em reconhecer que as famílias de acolhimento devem ser selecionadas com base nas suas qualidades afetivas e relacionais, e destacam a possibilidade de criar relações familiares saudáveis como um dos fatores que valoriza o acolhimento familiar sobre o residencial. Estas visões são congruentes com o que tem sido defendido pelos especialistas como central para potenciar o efeito reparador do acolhimento (Dozier et al., 2014; Zenah et al., 2011). Não obstante, nesta mesma linha do primado das relações, vemos que é o receio do impacto de nova descontinuidade relacional na vida da criança que se afigura como o maior justificativo para quem valoriza o acolhimento residencial como melhor opção para as crianças e jovens retirados às famílias biológicas. A teoria da vinculação reivindica a capacidade do ser humano formar múltiplos vínculos ao longo do ciclo de vida e as propriedades reparadoras destes mesmos vínculos, quando seguros, face a anteriores relações perturbadas (Bowlby, 1979; Soares, 2007). Com isto, não se quer negligenciar a dificuldade da vivência de uma descontinuidade relacional aquando do fim do acolhimento familiar, mas antes focar o cariz reparador que esta relação, se de qualidade, terá para crianças e jovens acolhidos. Este facto assume ainda maior relevância quando lembramos que o acolhimento residencial – que frequentemente não consegue transpor questões como, por exemplo, a rotatividade nos horários dos cuidadores, ou organização em torno de cuidadores de referência – confina as crianças e jovens a vivências relacionais tantas vezes mais pobres e com menor sentido de pertença.

A análise das motivações para acolher evidencia que, de forma relativamente consensual, são invocadas motivações altruístas, centradas na criança (e.g., fazer a diferença na vida da criança; proporcionar uma experiência familiar positiva à criança), para o acolhimento familiar. Esta tendência parece seguir a literatura (e.g., Leber & LeCroy, 2012; López & Del Valle, 2016; Rhodes, Cox, Ohrme, Coakley, 2006; Tyebjee, 2003) constituindo-se um aspeto importante para a sensibilização do público para esta temática (López, Del Valle, & Bravo Arteaga, 2010). Contudo, relativamente às condições para o acolhimento familiar, os resultados revelam algumas questões controversas, que dividem de forma evidente a opinião dos participantes, designadamente, a centralidade do contacto entre a família de acolhimento e a família biológica, e a necessidade de uma retribuição monetária pelo acolhimento. Relativamente ao contacto com as famílias biológicas, os resultados deste estudo são consistentes com os resultados de outras investigações em que as famílias de acolhimento consideram a relação com a família biológica como o aspeto mais stressante do processo de acolhimento (Delgado et al., 2015; Lopéz & Del Valle, 2016; Megahead & Lee, 2012). No entanto, há que considerar que uma das condições para a implementação da medida de acolhimento familiar é a previsibilidade de regresso à família biológica, e que a investigação reporta que a qualidade das relações familiares entre a criança, a família biológica e a família de acolhimento são uma dimensão importante para o sucesso do acolhimento familiar (e.g., Berrick & Skivenes, 2012). Assim, é vital clarificar a importância da relação entre ambas as famílias e apoiar todos os intervenientes no processo, na gestão de uma relação cooperativa. Já no que diz respeito à retribuição monetária, os resultados parecem indiciar o receio de que esta se possa constituir como motivação principal, desvirtuando, por isso, a genuinidade do acolhimento. Estes resultados corroboram os resultados de outros estudos na mesma temática (e.g., Leber & Lecroi, 2012). Há no entanto, questões relacionadas com as condições socioeconómicas vividas pela maioria das famílias portuguesas, potenciais famílias acolhedoras, que não podem ser descuradas nesta discussão. De facto, a perceção de insuficiência de recursos financeiros é também apontada pelos participantes deste estudo como um dos principais obstáculos ao acolhimento. Um trabalho recente de Delgado et al. (2015), que compara a satisfação dos acolhedores em Portugal e Espanha, reporta que 56,9% de acolhedores portugueses está insatisfeito com o apoio económico recebido, ao inverso do que acontece em Espanha, em que a totalidade está muito satisfeita. Todos estes dados devem ser conjuntamente refletidos na consideração da importância da retribuição monetária para o suporte da função de acolhedor.

As principais limitações deste estudo dizem respeito à ausência de uma amostra representativa da população portuguesa, que impõe barreiras à leitura dos resultados, e à possível desejabilidade social presente aquando da resposta ao questionário, como já referido acima. Considera-se pertinente dar continuidade a esta linha de investigação, com uma amostra representativa. Também o recurso a outros informadores como famílias de acolhimento portuguesas e crianças e jovens portugueses acolhidos será um contributo importante para o aprofundamento da investigação nesta área.

Não obstante as suas limitações, este estudo traz como principal mais-valia a auscultação das perceções públicas sobre o acolhimento familiar, um tema escassamente representado na literatura mas revestido de relevância e atualidade no panorama sociopolítico Português. Esta caracterização da visão do público acerca do acolhimento familiar evidencia duas mensagens-chave: por um lado, o baixo conhecimento que a população detém sobre esta matéria, por outro, a sua elevada disponibilidade manifesta para o acolhimento familiar. Embora em certa medida opostos, ambos os argumentos compelem à necessidade de um investimento profundo na sensibilização da população sobre estes temas. E os resultados indicam-nos algumas linhas a considerar nas campanhas de sensibilização ou nas políticas de fortalecimento da medida. De acordo com os resultados deste estudo, urge apelar às implicações positivas que o acolhimento familiar acarreta para as trajetórias de vida das criança e jovens, bem como desmistificar questões relacionadas com as possibilidades e oportunidades de formação de vínculos. Por outro lado, os resultados indicam que a formação e acompanhamento dos serviços sociais são condições valorizadas pelo público, que devem ser, por isso, consideradas consistentemente nas políticas de fortalecimento da medida. Da mesma forma, também as questões económicas devem ser seriamente refletidas e contempladas na operacionalização da medida. Numa altura em a pressão política para a desinstitucionalização de crianças e jovens é grande, resultado já do progresso científico que coloca em evidência melhores formas de responder às necessidades das crianças e jovens em perigo, este estudo constitui um contributo para o repensar de políticas que visem a promoção de uma cultura de acolhimento familiar e a criação de condições que viabilizem o seu desenvolvimento em Portugal.

 

Referências

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CORRESPONDÊNCIA

A correspondência relativa a este artigo deverá ser enviada para: Mariana Negrão, Centro de Investigação para o Desenvolvimento Humano, Faculdade de Educação e Psicologia, Universidade Católica Portuguesa, R. de Diogo Botelho 1327, 4169-005 Porto, Portugal. E-mail: mnegrao@porto.ucp.pt

 

Submissão: 26/03/2018 Aceitação: 16/09/2018

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