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Análise Psicológica

versão impressa ISSN 0870-8231versão On-line ISSN 1646-6020

Aná. Psicológica vol.35 no.4 Lisboa dez. 2017

https://doi.org/10.14417/ap.1325 

“Ser ou não ouvida”: Perceções de crianças expostas à violência doméstica

Vera Azevedo1, Ana Isabel Sani1

1Universidade Fernando Pessoa, Porto

Correspondência

 

RESUMO

Este estudo qualitativo, de caráter exploratório e descritivo, foi realizado junto de crianças vítimas de violência doméstica e teve como objetivo geral compreender como aquelas percecionam o facto de serem ou não ouvidas no âmbito dos processos em que estão envolvidas. A amostra intencional foi composta por dez crianças portuguesas, com idades entre os sete e os 17 anos, de ambos os sexos, que se encontravam acolhidas com as suas mães em casa de abrigo para vítimas de violência doméstica há pelo menos um mês. Os dados foram recolhidos através de entrevista semiestruturada, previamente testada. Da análise do conteúdo das respostas salienta-se a emergência de duas categorias, ‘auscultação da criança pelos adultos’ e ‘participação em tribunal’, com base nas quais se discute a importância da escuta da opinião da criança, ajudando na compreensão de como esta pensa e sente determinadas questões e como pode contribuir para a resolução de certos problemas. A maioria das crianças deseja poder expressar perante o magistrado algumas das suas necessidades, sendo uma delas a garantia de segurança, através do afastamento do agressor. Discute-se com base nestes resultados qualitativos a relevância da participação da criança em decisões da justiça.

Palavras-chave: Crianças, Violência, Justiça, Direitos, Participação.

 

ABSTRACT

This qualitative study, with exploratory and descriptive character, was conducted among children who were victims of domestic violence and aimed to understand how they see the fact of being or not being heard in the proceedings in which they were involved. The sample was composed of ten Portuguese children, aged between seven and seventeen years, of both sexes, who were accommodated with their mothers in a shelter for victims of domestic violence for at least a month. Data were collected through a semi-structured interview, previously tested. Analyzing the content of the answers, the emergence of two categories is highlighted: “auscultation of children by adults” and “court participation” based on which the importance of listening to the child’s opinion, helping to understand how the child thinks and feels regarding certain issues and how they can contribute to solving certain problems are discussed. Most children want to express some of their needs to the magistrate, one of them being the warranty of security, namely through the removal of the aggressor. The importance of the participation of children in court decisions are discussed based on these qualitative results.

Key words: Children, Violence, Justice, Rights, Participation.

 

Introdução

O reconhecimento social da criança como sujeito de direitos está contemplado em diversos diplomas legais internacionais (Anderson, 2000), que alguns Estados foram ratificando. Em Portugal, as alterações legislativas ocorridas nos últimos anos (cf. Gonçalves & Sani, 2013) foram permitindo o debate público e académico a respeito da participação da criança em vários domínios, sendo particularmente acesa a discussão sobre a posição da criança perante o sistema de justiça. A este nível, o acesso da criança à justiça e, em particular, o direito de ser ouvida em assuntos de particular importância na sua vida, decorre, em muito, do modo com cada sociedade perceciona a infância (Sani, 2013), podendo em algumas situações complexas (e.g., adoção, divórcio, separação, violência) ser ou não ouvida. Todavia, alterações na legislação portuguesa no regime geral do processo tutelar cível (Lei n.º 141/2015, de 08 de Setembro) veio estabelecer que as autoridades judiciárias têm de realizar a audição da criança, devendo a sua opinião ser tida em consideração na determinação do seu interesse. Vários outros documentos (e.g., Convenção dos Direitos da Crianças; Diretrizes do Comité de Ministros do Conselho da Europa sobre a justiça) têm firmado que a criança tem o direito de exprimir a sua opinião, devendo ser assegurada a oportunidade de ser ouvida em processos judiciais e administrativos que lhe dizem respeito (Conselho da Europa, 2013; UNICEF, 2004).

Numa análise à opinião de crianças sobre o sistema de justiça, realizada pelo Conselho de Europa, chegou-se à conclusão de que existem várias fragilidades (e.g., ambientes intimidatórios; falta de informação e de explicações ajustadas às idades; parca abordagem da família; duração inadequada dos processos) que originam representações negativas sobre este sistema (Conselho da Europa, 2013). Nesse sentido, o próprio Conselho da Europa (2013) adotou diretrizes para a definição de uma justiça adaptada às crianças, com o propósito de garantir que todas elas tenham acesso à justiça e sejam tratadas com respeito e de forma adequada. A adaptação da justiça às crianças deve acontecer antes do início do processo judicial e deve prolongar-se e ser assegurada em todas as fases do mesmo (Sacau, Jólluskin, Toldy, Oliveira, & Morais, 2013). As crianças devem ter a oportunidade de serem ouvidas com recurso a uma abordagem adequada ao seu nível de desenvolvimento e de acordo com o tipo de situações de que foram vítimas (Bernardi, 2010).

A participação da criança em assuntos que a envolvam de forma especial e impliquem a determinação da sua segurança, proteção, bem-estar e desenvolvimento integral, como são por exemplo, as situações de risco (e.g., conflitos familiares; violência) ou os casos de separação/divórcio dos pais (e.g., regulação do exercício das responsabilidades parentais, processos de guarda, definição das visitas), deveriam, por norma, implicar a oportunidade de audição da mesma, pois poderá esta querer contribuir para a decisão final (Santos & Costa, 2015).

Cashmore e Parkinson (2009) realizaram um estudo que pretendeu explorar questões relacionadas com o envolvimento das crianças no tribunal, nomeadamente em casos de divórcio. Para tal foram realizadas entrevistas com pais, crianças e profissionais, tendo havido a participação de 47 crianças com idades compreendidas entre os seis e os 18 anos. No que se refere em específico aos resultados relativamente às crianças verificou-se que 60% destas teria algo para referir, nomeadamente sobre onde iria viver ou quando poderia ver os seus pais, mencionando ainda que devem estar envolvidas nos processos, mas não necessariamente na tomada de decisão. Algumas das razões avançadas pelas crianças prendiam-se com a necessidade de serem reconhecidas, a crença de que desta forma poderiam existir decisões mais informadas e com melhores resultados e a noção de que têm direito a ter uma palavra relativamente ao regime que mais as afetaria (Cashmore, 2010; Cashmore & Parkinson, 2008, 2009; Parkinson, Cashmore, & Single, 2007). Escutar as crianças com sensibilidade e consciência relativamente ao âmbito da sua participação, é a chave para resolver a tensão entre a participação e a proteção (Cashmore & Parkinson, 2009).

Num estudo de Santos e Costa (2015) que analisou a perceção da criança quanto à sua participação em processos de disputa de guarda e regulamentação das visitas, concluiu-se que as crianças possuem capacidade para prestar informações importantes e expressarem o seu ponto de vista, não obstante dependerem dos adultos para se sentirem protegidas e seguras. Todavia, segundo Brito, Ayres e Amendola (2006) a validade da palavra da criança não é aplicável a todos os casos, servindo por vezes, para investigar alguns aspetos (e.g., com quem a criança deseja residir, como se relacionam os seus pais e a existência ou não maus tratos), mas se a criança está à guarda do Estado, como é o caso das que estão acolhidas em instituições, esta pode não ver considerada a sua opinião. Por isso, é fundamental que a justiça atenda aos pontos de vista da criança, de modo a compreender os seus medos, expectativas e desejos, favorecendo a aceitação de mudanças que contribuam para um desenvolvimento saudável da mesma, salvaguardando-se o direito da criança de ser considerada e respeitada durante todo o processo (Santos & Costa, 2015).

Outros estudos centrados na audição judicial de crianças, em particular vítimas de maus tratos (e.g., Block, Oran, Oran, Baumrind, & Goodman, 2010; Quas, Wallin, Horwitz, Davis, & Lyon, 2009) sublinham a importância da criança ser ouvida e de dar, assim, voz aos seus desejos e necessidades. No estudo de Block e colaboradores (2010) com uma amostra de crianças vítimas de maus tratos, com idades dos 7 aos 10 anos e que frequentavam com regularidade audiências em tribunal, concluiu-se que a falta de compreensão sobre os procedimentos judiciais e as atitudes negativas face aos tribunais eram comuns. Os resultados mostraram também que uma minoria substancial das crianças não se sentia acreditada e escutada, havendo uma maioria de crianças que desejava voltar para casa (Block et al., 2010). Estas conclusões acendem o debate sobre até que ponto devem as crianças estar ou não envolvidas nas decisões legais ou, pelo menos, as suas vozes serem escutadas para uma tomada de decisão mais justa.

‘Ser ou não ouvida’ pressuporá também que se discuta a preparação da criança para ir a tribunal e sobre como funciona o sistema jurídico, devendo essa informação ser dada de forma ajustada à sua idade (Quas et al., 2009). De acordo com Quas e colaboradores (2009), num estudo com crianças vítimas de maus tratos, as mais velhas possuem conhecimentos gerais mais sólidos sobre o tribunal comparativamente com as crianças mais novas. Porém as crianças mais velhas nem sempre conseguem captar completamente os termos jurídicos, e por vezes não compreendem o processo em que estão envolvidas, apesar de serem informadas sobre a sua situação. Portanto, independentemente das idades, as crianças necessitam de ajuda para entender o sistema jurídico, bem como auxílio para interpretar o que está a acontecer nas suas vidas, nomeadamente sobre as decisões tomadas em que as mesmas estão envolvidas (Quas et al., 2009). Segundo Bessell (2011) a criança deve usufruir de informação apropriada e necessária para ser capaz de fazer parte do processo de tomada de decisão, deve ter a oportunidade de expressar, sem prejuízo para si, os seus pontos de vista e estes devem afetar a decisão.

Alguns estudos com profissionais (e.g., Gonçalves & Sani, 2015; Melo & Sani, 2015; Parkinson & Cashmore, 2007) reafirmam a importância e o direito da criança ser ouvida, participando na realização da justiça, nomeadamente em casos que a envolvam a ela e aos seus familiares em processos judiciais. Embora a justiça atualmente atue de forma positiva, orientada para a criança e promovendo a sua participação através da sua escuta, dentro ou fora do registo processual, existe ainda alguma reticência na generalização deste procedimento por se temer a vitimação secundária, ao considerar que o depoimento desta pode não contribuir de facto para a fundamentação da decisão ou mesmo, pela inadequação logística para a realização desta mesma audição (Gonçalves & Sani, 2015). Tais argumentos devem evidentemente ser ponderados e em nenhum momento se deve deixar de acautelar possíveis riscos (e.g., dano na criança; auscultações repetidas por diversos profissionais; práticas insensíveis no contacto com a criança). Não ouvir simplesmente, não pode ser também a regra de uma prática, que ponha em causa direitos e necessidades da criança, que obrigatoriamente devem ser tidos em consideração, não apenas porque a legislação assim o exige, mas porque a criança enquanto sujeito de direitos pode querer manifestar essa pretensão.

Mesmo em casos da audição de crianças visar o seu depoimento formal, poderá a mesma decorrer sem qualquer prejuízo para estas. Weisz, Wingrove, Beal e Faith-Slaker (2011) realizaram um estudo comparativo de carácter qualitativo com um grupo de crianças ouvidas (n= 43) e outro de crianças não ouvidas (n=50) em processo judicial, reportando-se as conclusões às observações feitas em audiência e ao autorrelato e perceções das crianças posteriormente, durante uma semana de acompanhamento. Os autores concluíram que a participação da criança não é prejudicial, podendo inclusive essa audição contribuir para tornar a experiência de cada uma menos stressante e mais confortável, tomando um sentido quase terapêutico (cf. Herber, 2016). Ainda nesse estudo foram reconhecidos níveis de satisfação e conforto resultante dessa audição, razão pela qual as crianças desejavam e sentiam ser capazes de participar. Observou-se neste estudo que as crianças que participavam no processo relatavam sentimentos positivos (e.g., confiança no juiz, mais avaliações positivas de imparcialidade da decisão do juiz e mais conhecimento e compreensão do caso). Considerando importância da formação técnica dos magistrados, que deveria incluir o conhecimento e treino específicos sobre psicologia, concordamos com a asserção de Jenkins (2008) de que a participação da criança na justiça ajudará os magistrados a observar diretamente os seus comportamentos e atitudes, bem como o seu estado emocional e físico.

Parkinson e Cashmore (2007) analisaram as opiniões de magistrados relativamente à participação das crianças no sistema de justiça, procurando explorar as razões que levam os juízes a serem a favor ou contra a conversar com os menores antes e depois da tomada da decisão. Os resultados reúnem os pontos de vistas dos diferentes intervenientes no processo (crianças, pais e juízes), os quais salientam que ouvir primeiro a opinião da criança, por vezes, é útil para as próprias crianças e suas famílias. De facto, os estudos com magistrados (e.g., Melo & Sani, 2015; Parkinson & Cashmore, 2007) têm revelado que em processos judiciais, a audição da criança é uma forma destes compreenderem os pontos de vista e encontrarem soluções que vão ao encontro dos desejos e necessidades da criança, apoiando a sua tomada de decisão e, quem sabe, encontrar outras soluções que não estão a ser pensadas pelos adultos (Vis, Strandbu, Holtan, & Thomas, 2011). De acordo com Pichal (2008), se as crianças tiverem oportunidade de serem ouvidas pelos magistrados, seja fora da audiência ou para efeito de recolha do seu depoimento, estes terão mais informações e serão capazes de tomar melhores decisões, com consequentes vantagens para as crianças e suas famílias.

Dada a multiplicidade, complexidade e dificuldade que caracteriza o contacto da criança com as autoridades judiciárias em Portugal e a importância de lhe ser dada voz em assuntos de particular importância para as suas vidas, procuraremos neste artigo compreender, a partir de um estudo empírico, as perceções das crianças expostas à violência doméstica dos pais (artigo 152º do código penal português) sobre a possibilidade de serem ou não ouvidas na sequência dessa experiência. Assim, após uma revisão breve de investigação neste âmbito, avançaremos para a apresentação do estudo empírico e, posteriormente, para uma discussão dos dados obtidos.

 

Método

O estudo qualitativo realizado foi de carácter descritivo e exploratório e teve como objetivo principal compreender como é que as crianças que experienciam violência doméstica percecionam o facto de serem ou não ouvidas no âmbito dos processos relativos à situação que motivou o acolhimento do agregado familiar. Assim, consideramos que a pesquisa qualitativa de carácter descritivo seria o método mais adequado para compreender a natureza do fenómeno social que pretendíamos investigar (Richardson, Peres, Wanderley, Correia, & Peres, 2008) e dar resposta à questão de partida de como é que as crianças percecionam o facto de poderem ser, ou não, ouvidas sobre a experiência de vitimação por violência doméstica?

 

Participantes

Para este estudo constituiu-se uma amostra não probabilística por conveniência com 10 crianças portuguesas (identificadas de E1 a E10), que se encontravam, pelo menos há um mês, acolhidas numa casa de abrigo para vítimas de violência doméstica. Assim, participaram no estudo seis crianças do sexo feminino e quatro do sexo masculino, com idades compreendidas entre os sete e os 17 anos. Todas as crianças foram expostas à violência entre os seus progenitores, na maioria dos casos (à exceção de uma) toda a sua vida, havendo registo no processo da instituição de serem também elas vítimas de violência física e/ou psicológica (cf. Quadro 1). O acolhimento em casa de abrigo deveu-se à escalada da violência, existindo em 70% dos casos referência nos processos a problemas de consumos de substâncias (álcool e estupefacientes).

 

 

 

Instrumento

A partir da revisão de materiais, artigos científicos e relatórios de investigação avançamos para a construção de um guião de entrevista semiestruturado, o qual foi depois comentado e revisto por um especialista no tema. Após revisão do guião, o mesmo foi pré-testado junto de três crianças com idades entre os sete e os 13 anos, de modo a aferir-se a adequação do mesmo para ser aplicado a crianças de idades distintas.

O guião apresentava três seções, que agregam um total de nove questões, sendo a maioria de resposta aberta. A primeira seção visava a apresentação do entrevistador /entrevistado e o estabelecimento da relação de confiança e empatia com a criança, sem abordagem ao tema da violência e que, de resto, motivou o seu acolhimento e da mãe em casa de abrigo. A segunda seção inclui questões relacionadas com a situação de violência e a sua vivência (e.g., Achas importante que os adultos ouçam a tua opinião? Porquê?), a possibilidade de ser ouvida por um magistrado sobre as circunstâncias para esse acolhimento (e.g., Se o magistrado do tribunal quisesse ouvir a tua opinião o que lhe dirias?) e a partilha da sua opinião sobre a situação em que se encontra (e.g., Podes deixar algum conselho para os magistrados que vão decidir sobre o teu caso?). A última seção refere-se à conclusão da entrevista, na qual podemos clarificar algum conteúdo da entrevista, regressar a temas neutros e dar a possibilidade à criança de nos colocar alguma questão.

 

Procedimentos

Para a realização deste estudo foi elaborado um protocolo de investigação, no qual se expôs os objetivos e procedimentos metodológicos a serem adotados, bem como as questões éticas e deontológicas salvaguardadas pelo estudo. Este protocolo foi enviado juntamente com um pedido de autorização e de colaboração à presidente da delegação da Cruz Vermelha Portuguesa que geria a referida casa de abrigo. Obtida essa autorização, o referido protocolo foi posteriormente enviado à Comissão de Ética da Universidade dos investigadores, com vista a obtenção de parecer e eventuais recomendações para a realização do estudo.

Uma vez reunidas as autorizações e pareceres institucionais, procedeu-se à marcação e realização de uma reunião com as mães das crianças, com o propósito de dar informações sobre os objetivos e o método, bem como sobre as questões relacionadas com a confidencialidade e anonimato dos dados pessoais. Após a explicação, cada progenitora deu o seu consentimento, não tendo havido recusas quanto à participação do seu/sua filho/a, podendo assim solicitar-se o pedido de participação à criança.

Todas as crianças e jovens abordados aceitaram participar, tendo as entrevistais sido realizadas na casa de abrigo onde as mesmas estavam acolhidas, numa sala reservada que garantisse privacidade, sem a presença da mãe. As entrevistas foram realizadas à medida que iam entrando novos utentes, tendo decorrido entre Fevereiro e Novembro de 2014 e tido uma duração aproximada de 20 minutos. Todas as entrevistas foram gravadas em formato de áudio, com a devida autorização das únicas responsáveis legais à data pelas crianças (as mães). Posteriormente, as entrevistas foram transcritas na íntegra para a posterior análise de conteúdo.

As transcrições foram analisadas duas vezes para que se pudesse corrigir eventuais falhas, de modo a ter uma reprodução completa e correta do discurso dos participantes. De referir que não se recorreu a nenhum programa informático para analisar os dados recolhidos. Adotou-se um processo de criação de categorias considerando as questões de partida (Bardin, 2009) e as subcategorias emergiram da análise de conteúdo às respostas dos participantes (Strauss & Corbin, 1997).

Foi realizada a triangulação da análise com a colaboração de outro codificador até à apresentação de grelha final de categorias. O sistema de categorias foi apenas definido no final da operação (Bardin, 2009).

 

Resultados

A primeira categoria refere-se à “auscultação da criança pelos adultos”, tendo como subcategoria a “audição e voz à criança”. Esta subcategoria refere-se à indicação sobre se os adultos (e.g., técnicos e pais) escutam as opiniões das crianças. A segunda categoria é referente à “participação em tribunal” e inclui duas subcategorias. A primeira designada de “opinião sobre a situação vivida” revela a expetativa da criança sobre a possibilidade ou não de audição por um magistrado e a informação que possivelmente partilharia sobre a experiência de violência doméstica que experienciou. A segunda subcategoria, nomeada por “conselhos ao magistrado”, refere-se a recomendações que a criança entrevistada daria ao magistrado responsável pelo caso.

A apresentação dos dados seguirá a ordem de apresentação das categorias e subcategorias, acompanhadas de breve descrição, clarificada com alguns excertos das respostas dadas pelos entrevistados, identificados pela letra E. A numeração pretende indicar a ordem de realização das entrevistas.

 

Auscultação da criança pelos adultos

Esta categoria refere-se à perceção que as crianças têm sobre a auscultação que os adultos fazem ou não da sua opinião. Tendo sobretudo como referência de adultos, os pais e os técnicos da instituição de acolhimento, pretendeu-se compreender se a criança tinha alguma experiência de audição da sua opinião ou se lhes era dada, por norma, a oportunidade de terem uma voz em assuntos do seu interesse.

Todos os participantes referem que é importante que os adultos ouçam as suas opiniões, uma vez que lhes permitiria perceberem o que eles pensam e sentem relativamente a determinadas questões, podendo ajudá-los na resolução de eventuais problemas.

 

Ah sim, sim [que os adultos ouçam a opinião], gosto quando partilho as coisas com as pessoas, gosto de dar as minhas opiniões. (…) Porque tipo, quando alguém dá uma opinião, também pode ajudar em algumas coisas, pode ajudar a ultrapassar problemas e pode dar soluções às vezes. (E1)

Acho. (…) Porque assim eles [os adultos] também não estão a ver só o lado da mãe, também têm que ouvir o lado dos menores. (…) É para saber se, é óbvio que eles vão decidir mais para o lado da mãe, mas também é para pensarem também na opinião dos menores. (E9)

 

 

Participação em tribunal

Esta categoria pretende centrar-se nas perceções que as crianças têm sobre a situação de contacto com o tribunal, emergindo duas subcategorias: uma que designamos de “Opinião sobre a situação vivida” e outra que nomeamos de “conselhos ao magistrado”.

A primeira subcategoria resultou da reunião de narrativas dos participantes quanto à audição ou não da criança em tribunal sobre a experiência de violência doméstica. Todos os participantes revelaram desejar ter a oportunidade de exteriorizar perante o magistrado o que se passava na sua família. No geral, as crianças mencionam que falariam da violência doméstica a que assistiam e pediriam o afastamento do agressor.

 

Que não queria mais o meu pai à minha beira, por causa da situação que aconteceu, porque ele era alcoólico e estava sempre a bater-nos, a chamar-nos nomes. (E3)

Diria que não queria ficar com o meu pai, que ele ameaçou-me de morte, que ele não tem condições.

Acho que ele não cuidava bem de mim. De mim é uma coisa, do meu irmão não. Eu já sei o que é a vida, o meu irmão não. (E5)

 

Embora estes participantes pudessem ter sido ouvidos antes da sua inserção na casa de abrigo por outros profissionais, que devem eventualmente ter determinado a urgência desta inserção institucional, uma das jovens diz que exporia ao magistrado (independentemente do tipo de processo), não apenas a sua situação, mas uma opinião sobre o fenómeno da violência doméstica.

 

Dizia-lhe que há homens que têm uma grande cobardia em bater nas mulheres, que não só são mulheres deles, mas como também são mães dos filhos deles próprios e que também têm carácter para bater nos filhos. Acho que isso é uma grave falta de respeito para com ele e para com a própria família. E acho que pessoas assim não deviam existir no mundo, que deviam de ser julgadas e deviam ter o que mereciam. (…) Não, acho que em alguns casos os homens saem numa boa e depois as mulheres andam preocupadas com se podem sair ou se não podem. (…). (E2)

 

Outro dos participantes, desejando igualmente essa audição pelo magistrado daquilo que foi a sua experiência de vitimação, acrescenta o desejo de, após ter sido ouvido sobre o seu passado, obter uma resposta para o seu futuro.

 

Contava-lhe tudo o que se passou na minha vida antes e a ver se havia alguma solução agora, e se podia ter uma vida boa no futuro. (E1)

 

Quanto à subcategoria “conselhos ao magistrado”, esta reúne um conjunto de recomendações que os participantes deixariam em concreto ao magistrado responsável pela decisão sobre o processo de violência doméstica dos seus pais. Todos os participantes responderam que não queriam viver ou estabelecer qualquer contacto com o progenitor, fazendo pedidos específicos que remetem para opções de segurança e proteção. Os amigos e familiares surgem entre as figuras de suporte percebido.

 

[O que diria] Para darem uma carta minha mãe para ser proibido o meu pai aparecer. Sim. E para não me fazerem visitas lá, e se ele quisesse visitar-me que viesse a V.R., mas com segurança, com uma pessoa ao lado. (E1)

Ah, que separasse o nosso pai de nós, que não queria que estivéssemos juntos, porque assim não havia mais problemas por ele estar a bater. (E3)

Para não viver mais com o meu pai. E não, e não gosto do meu pai porque ele estava sempre a bater na minha mãe. (E7)

Pedia que… que me deixasse com a minha mãe e não com o meu pai. (E10)

Para ir para a beira dos meus primos. (E4)

Se podia, se podia passar assim uns dias com a minha irmã que ela também vive lá na minha terra, se podia passar assim no fim-de-semana ou no Verão, se podia estar com ela. (…) E se quando quisesse ir brincar com os colegas ou ir dar voltas com os colegas no Verão, também ia. (E6)

 

 

Discussão

O presente estudo partiu da seguinte questão de investigação: como percecionam as crianças vítimas de violência doméstica o facto de poderem ser, ou não, ouvidas sobre a experiência de vitimação por violência doméstica?

Neste sentido foi possível verificar que a maioria das crianças manifesta o desejo de que as suas opiniões sejam ouvidas pelos adultos com os quais contacta (Cashmore & Parkinson, 2009; Santos & Costa, 2015), havendo um particular desejo de expor a sua experiência de violência doméstica perante o magistrado, até como forma de poderem ajudá-la a perspetivar o futuro sem violência. Deste modo, os adultos, ao escutarem as suas opiniões poderiam conhecer o que crianças e jovens sentem e pensam relativamente a determinados assuntos, auxiliando na resolução de problemas. Os estudos com magistrados confirmam também essa necessidade de se escutarem as crianças, para que seja possível compreender o seu ponto de vista, de modo a atender aos seus anseios e auxiliá-las a aceitar as mudanças no seio familiar resultantes na tomada de decisão (Melo & Sani, 2015; Parkinson & Cashmore, 2007).

No que respeita em concreto à experiência de violência doméstica entre os seus pais, a menção à necessidade de poderem exprimir-se foi unânime e contraria a prática comum neste tipo de casos (Bernardi, 2010), pelo receio de vitimação secundária, porém se forem adotados todos os cuidados necessários e a audição for adaptada ao seu nível desenvolvimental, esta experiência poderá contribuir para o processo de ajustamento da criança (Gonçalves & Sani, 2015). Weisz e colaboradores (2011) referem que a interação e audição pelo juiz pode ser uma experiência capaz de fazer diminuir o stress sentido pela criança e traduzir-se numa situação confortável e positiva que o magistrado pode diretamente observar (Jenkins, 2008). A avaliação feita pelos magistrados pode ser determinante para a decisão final. Para além disso, o facto de a criança poder participar, pode ajudar os juízes a recordar detalhes do processo, sendo portanto uma fonte suplementar e de apoio no processo de tomada de decisão. Contudo, é importante salientar que as crianças necessitam de ajuda para entender o sistema jurídico, bem como auxílio para interpretar o que esta acontecer nas suas vidas, nomeadamente sobre as decisões tomadas em que a mesma esta envolvida (Quas et al., 2009).

A totalidade das crianças e jovens desta amostra refere que, caso tivesse que ser presente a um magistrado, optaria por contar toda a situação que vivera e pediria o afastamento do agressor. Ao exprimirem a sua vivência sobre os acontecimentos de violência doméstica, os adultos podem conhecer as perceções e sentimentos que estas detêm sobre o fenómeno e sobre as decisões que são tomadas a respeito das situações de violência doméstica em que estão envolvidas e que nem sempre têm oportunidade de expor aos magistrados (Gonçalves & Sani, 2015). Existe uma necessidade por parte das crianças em expor a sua história, porém estas algumas delas que também são vítimas e que testemunham a violência entre os seus progenitores podem ser ou não ouvidas pelos magistrados (fora do âmbito processual) ou ser ou não chamadas para prestar o seu depoimento (no âmbito processual). O direito da criança a ser ouvida, tal como proclamam os documentos legislativos internacionais como a Convenção dos Direitos da Criança, passa também por aceitarmos a ideia de satisfazermos as necessidades desta (Anderson, 2000). É certo que as mudanças mais recentes ao nível legislativo (e.g., Lei n.º 141/2015, de 08 de Setembro) tendem a incorporar alguns dos princípios que visam claramente a garantia do direito da criança ser ouvida, constituindo tal um passo fundamental para a comunicação da criança com o justiça, mas essencialmente para uma justiça mais amiga da criança (Conselho da Europa, 2013). As alterações que visam a maior participação da criança em assuntos fundamentais para a sua vida, favorecem outras mudanças no modo como deverá processar-se essa escuta, no contexto onde deve ser realizada ou nos cuidados necessários para que a sua participação possa ser o mais espontânea e agradável, se possível acompanhada por técnicos especializados.

 

Conclusão

O estudo permitiu aceder às perceções que as crianças têm sobre ser ou não ouvida relativa mente à situação de violência doméstica que motivou o acolhimento em casa de abrigo. A análise aos discursos de 10 crianças vítimas de violência doméstica reconhece e sublinha, o que alguns estudos concluem, sobre a pertinência dos adultos ouvirem as suas opiniões, entre estes os magistrados, que tomarão decisões sobre a situação vivida por elas e por familiares. Nesta amostra em particular, foi igualmente possível conhecer que conselhos dariam estas crianças, caso tivessem a oportunidade de estar com o magistrado responsável pelo caso de violência doméstica da sua família. Depreende-se do discurso de todas elas que a preocupação está na segurança, pois o conselho mais sugerido passaria pelo afastamento do agressor. Embora tendo por base um estudo de carácter transversal, com uma amostra específica e com um número ainda que reduzido de crianças, em faixas etárias muito alargadas, sublinhamos a partir deste debate empírico, o interesse em contribuir para reforçar o entendimento quanto à importância da criança ser ouvida em assuntos e sobre circunstâncias que afetam as suas vidas. Reconhecemos, ainda, dado o carácter não generalizável deste estudo, a necessidade de haver outras investigações, com particular destaque para as de natureza qualitativa, que permitam aceder às perceções das crianças sobre as principais dificuldades na audição para depoimento em tribunal. Neste sentido, como este, mais estudos que considerem outras situações de vida das crianças poderão contribuir, também para a construção de uma justiça mais amiga da criança.

 

Referências

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CORRESPONDÊNCIA

A correspondência relativa a este artigo deverá ser enviada para: Vera Azevedo, Universidade Fernando Pessoa, Praça 9 de Abril, 349, 4249-004 Porto, Portugal. E-mail 21518@ufp.edu.pt

 

Submissão: 02/09/2016 Aceitação: 01/01/2017

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