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Análise Psicológica

Print version ISSN 0870-8231On-line version ISSN 1646-6020

Aná. Psicológica vol.35 no.3 Lisboa Sept. 2017

https://doi.org/10.14417/ap.1304 

Discursos políticos e retórica em torno da Lei da Unicidade Sindical na revolução portuguesa de 1974

Virgílio Amaral1

1Centro de Estudos Sociais, Universidade de Coimbra

Correspondência

 

RESUMO

O presente trabalho tem como objectivo principal entender, através da análise dos discursos políticos em torno da Lei da Unicidade Sindical que ocorreu no contexto revolucionário do pós 25 de Abril de 1974 em Portugal, de que forma as partes em contenda construíram diferentes concepções sobre as modalidades de organização laboral. Baseados, por um lado, nas propostas de análise de discursos dialógicos de Marková (2006), assim como nos modelos de análise de discurso retórico de Billig (1991) e Castro (2002), e, por outro lado, nas noções de dicotomias argumentativas ou polaridades ideológicas de Van Dijk (2006), procedeu-se à reconstrução dos discursos veiculados nos argumentários, tendo-se verificado que determinados termos – como Sindicatos ou Liberdade – assumem diferentes sentidos para cada das partes em contenda. Verificou-se também que determinados mecanismos retóricos elencados por Castro (2002) e Amaral e Pereira (2014) são tendencialmente usados por cada um dos lados. Adicionalmente, a análise do corpus de discursos políticos permitiu relevar um mecanismo próprio das comunicações unidireccionais persuasivas (como a propaganda), que não sendo característico dos discursos dialógicos, permite aceder às dicotomias argumentativas/polaridades ideológicas que sustentam as diferentes concepções sobre as modalidades de organização laboral propostas à época.

Palavras-chave: Discursos políticos, Retórica, Propaganda, Revolução portuguesa de 25 de Abril de 1974, Lei da Unicidade Sindical.

 

ABSTRACT

The main objective of the present work is to understand how the different opposing parties have formed different conceptions of the models of labour organisation through the analysis of political discourses around the Law on Union Uniqueness in the revolutionary context post-25th April 1974 in Portugal. On the one hand, the analysis is based on the proposed analysis of dialogical discourses by Marková (2006), as well as the analysis models on the rhetorical discourse by Billig (1991) and Castro (2002). On the other hand, it is based on the notions of argumentative dichotomy or ideological polarities by Van Dijk (2006). The discourses conveyed were reconstructed and it was verified that certain terms – like Union or Freedom – assume different meanings depending on the contending party. It was also found that certain rhetoric mechanisms listed by Castro (2002) and Amaral and Pereira (2014) tend to be used by each of the sides. Additionally, the analysis of the corpus of political discourses enables the identification of the persuasive unidirectional communications’ own mechanism (such as propaganda). Although this is not typical in dialogical discourses, it enables the access to the argumentative dichotomies/ideological polarities that sustain the different conceptions on the modalities of labour organisation proposed at the time.

Key words: Political discourses, Rhetoric, Propaganda, Portuguese revolution, 25th April 1974, Single Union Law.

 

Introdução

Neste trabalho apresentam-se alguns aspectos dos géneros discursivos e comunicativos em torno da controvérsia política sobre a proposta de inscrição na Lei do Princípio da Unicidade Sindical, ocorrida no período revolucionário do pós 25 de Abril.

Uma revisão histórica desta polémica na Imprensa, que opôs por um lado o Partido Socialista (PS) e o Partido Popular Democrático (PPD), e por outro lado o Partido Comunista Português (PCP) e a Intersindical, encontra-se já reportada em Amaral (2015a).

Os conflitos políticos na esfera pública são acompanhados por processos de legitimação de cada uma das partes e deslegitimização das posições contrárias (Bar-Tal, 2000).

A este propósito as abordagens discursivas, na esteira das propostas de Perelman (1997) e Perelman e Olbrechts-Tyteca (2006) sobre retórica e argumentação, permitem compreender a natureza da argumentação e do pensamento político.

Assim, de acordo com Billig (1991), o pensamento político é essencialmente argumentativo, visando a persuasão. Todo o discurso político tem uma intenção persuasiva, pelo que os conteúdos e as suas funções persuasivas se articulam. Por outro lado, segundo o mesmo autor, a apresentação de uma versão de um acontecimento existe sempre em oposição a outra versão ou tema contrário. Ou seja, os discursos políticos são dilemáticos, corporizam-se em dicotomias argumentativas ou, para usar expressão de Van Dijk (2006), em polaridades ideológicas apresentadas por cada uma das partes em contenda à audiência das mensagens políticas.

Este tipo de abordagem à retórica política pode articular-se com o modelo dialógico proposto por Marková (2006), relativo à análise conversacional. Mas este modelo pode adaptar-se à análise das trocas argumentativas em geral, e aqui, em particular, no domínio dos debates políticos

Segundo este modelo os discursos (políticos ou não) ocorrem numa tríade formada pelo emissor – “Ego” –, o receptor com quem aquele dialoga – “Alter” – com vista à persuasão e à produção de conhecimento social sobre o assunto da audiência (“Objecto” do diálogo argumentativo).

Na Figura 1 apresenta-se um esquema adaptado a partir do modelo dialógico de Marková (2006) sobre os discursos dialógicos.

 

 

De acordo com este modelo, as práticas discursivas correspondem portanto a um diálogo de trocas comunicativas reciprocas, em que Ego convoca Alter para o diálogo e vice-versa.

 

Objectivos do estudo

Com base nas propostas de Potter (1996) sobre a construção de mecanismos argumentativos, já enunciados em Castro (2002), num estudo sobre a construção da ideia de Ambiente, e estudados também por Amaral e Pereira (2014) e Amaral (2015b) no que respeita a controvérsias políticas, o primeiro objectivo deste trabalho é o de sistematizar as polaridades ideológicas produzidas pelas partes em contenda. Alguns resultados encontram-se já expostos por nós em estudo precedente (Amaral, 2015b), não se tendo contudo procedido à sistematização daquelas polaridades ideológicas, objectivo que agora nos propomos

A análise exploratória do corpus noticioso evidenciou um mecanismo que não é próprio do modelo dialógico atrás referido, ou seja que não corresponde a um mecanismo retórico que sustente a comunicação em forma de diálogo. Trata-se de um mecanismo característico das comunicações unidireccionais que visam apenas a persuasão da audiência, não convocando a parte oposta ao diálogo; é um mecanismo utilizado na propaganda política e na publicidade, tradicionalmente denominado de “Inoculação” (McGuire & Papageorgis, 1961).

Este mecanismo consiste numa mensagem unidireccional dirigida à audiência, em que se evoca explicitamente e previamente o argumento que se procura rebater, seguida de um contra-argumento que expressa a posição que o emissor da mensagem pretende defender. Trata-se de uma mensagem unidireccional biunívoca que visa produzir na audiência uma resistência à persuasão dos argumentos contrários à posição que se procura defender. É um dispositivo de condicionamento das atitudes da audiência sob a forma de comunicações unidireccionais, que funciona um pouco como a lógica das vacinas: a exposição prévia a uma pequena quantidade de vírus (leia-se, o argumento contrário) “imuniza” a audiência a um ataque em larga escala desse mesmo vírus. Dito de outra forma, através da exposição prévia a um argumento que ataca as posições ou atitudes que o emissor defende, produz no receptor (a audiência) uma resistência a essa mensagem contra-atitudinal, quando seguida de um argumento consonante com a atitude que o emissor defende.

Denominaremos neste trabalho tal mecanismo, não dialógico nem próprio da retórica argumentativa, de “Inoculação Propagandística”, para o distinguir do mecanismo de Inoculação de construção argumentativa apresentado no modelo de Potter (1996), que denominaremos de Inoculação Retórica.

Um segundo objectivo do trabalho será o de sistematizar os mecanismos comunicativos utilizados pelas partes a propósito da questão da Unicidade Sindical.

Decorrente desta consideração, procuraremos analisar o uso dos mecanismos retóricos, ligando a função dos mesmo à construção de argumentos, à luz do modelo dialógico de Marková (2006). Considerando o modelo triangular proposto por Marková (2006), procuraremos analisar como se articula a Inoculação Propagandística quer com a Audiência quer na sua relação com os mecanismos retóricos enunciados nos referidos trabalhos (Amaral, 2015b; Amaral & Pereira, 2014; Castro, 2002; Potter, 1996).

Finalmente, tal como nos trabalhos anteriores referidos sobre os discursos políticos (Amaral, 2015b; Amaral & Pereira, 2014) teremos em conta, ao longo do trabalho assim como na discussão, a relação entre funções e conteúdos argumentativos dos mecanismos retóricos.

 

Método

Tendo em conta os objectivos propostos e baseados em pesquisa de cariz histórico, relativamente aos principais discursos políticos em torno da questão da inscrição na Lei do Princípio da Unicidade Sindical (Amaral, 2015a), retivemos os discursos noticiosos produzidos pela Intersindical (no seu órgão oficial Alavanca), assim como pelos órgãos oficiais do PS, do PPD e do PCP, ou de discursos de protagonistas nesta polémica ligadas àquelas formações políticas, reproduzidos em jornais de referência da altura.

Não foi retido para análise o artigo de Gomes Canotilho, devido às especificidades jurídicas do mesmo.

O corpus é constituído por 14 notícias, sendo: cinco discursos noticiosos do PS, três discursos noticiosos do PPD, três discursos noticiosos (incluindo um comunicado do respectivo Comité Central) do PCP e dois da Intersindical.

 

Resultados

Seguidamente apresentam-se os discursos elencados, analisando-se os argumentos, os mecanismos retóricos dialógicos e o mecanismo de Inoculação Propagandística.

 

Entrevista a Marcelo Curto – República, 02/10/1974

O discurso deste dirigente do Partido Socialista começa por denotar um certo distanciamento em relação à questão da organização sindical, mas é também um discurso de confissão no que respeita à representatividade dos órgãos sindicais:

A representatividade é indispensável na medida em que uma confederação que não viva em permanente contacto e consulta às bases a curto prazo cometerá erros monumentais de direcção de massas e será mais tarde ou mais cedo apeada e contestada por essas mesmas massas.

A mensagem do dirigente do PS é construída sob a forma de confissão de uma tomada de posição: associa a questão da lei enunciada à questão da liberdade sindical.

A questão dilemática – que será recorrente nos discursos do PS e PPD – da liberdade sindical versus à imposição, por Lei, de uma confederação sindical única, expressa-se no extracto discursivo seguinte, também ele de confissão:

“Sem prejuízo de mais amplas considerações e pelas informações que eu tenho é inaceitável que seja uma lei a impor uma confederação única.”

 

Povo livre, 08/10/1974 – “O PPD contra os sindicatos únicos”

Sob o título “Os Sindicatos únicos são o caminho mais certo para o regresso da Opressão”, o PPD exprime neste comunicado, acerca da Lei da Unicidade Sindical, as suas preocupações relativamente ao tema da “Liberdade Sindical”:

A propósito de tomadas de posição recentes acerca da unidade sindical, o PPD não pode deixar de insistir na necessidade de ela nunca sacrificar a liberdade sindical.

Evocando aquela Liberdade, o extracto acima parece ter a finalidade de prevenir, por inoculação retórica, a audiência relativamente às consequências da Lei da Unicidade Sindical (mecanismo de inoculação retórica).

De facto, é o que patenteia o seguinte trecho redigido sob a forma de confissão de uma tomada de posição política:

“A unidade sindical [...] não é o resultado do império da lei ou de quaisquer limitações ao direito de liberdade sindical.”

Nessa mesma posição política, pretende-se destrinçar a questão da unidade da questão da unicidade, identificando esta noção com regimes de ditadura, numa mensagem que procura transmitir descrições factuais:

Quando é a lei [...] (que) impõe sindicatos únicos [...], o regime que se instala não é de unidade sindical mas sim de unicidade sindical de que tivemos exemplo entre nós, antes do 25 de Abril, e de que ainda existem nas ditaduras de esquerda e direita.

O problema da organização sindical é ligado de novo à questão da “liberdade sindical” na frase seguinte, em que são apresentadas as Credenciais da Organização Internacional do Trabalho:

“Um sindicalismo unitário só é correcto em regime de liberdade sindical, de acordo com a Convenção nº 87 da OIT.”

 

“O Movimento Sindical Português”, Fernanda Lopes Cardoso e Marcelo Curto – República, 04/01/1975

Este artigo é um artigo de opinião dos autores (ambos militantes do PS), em que se elaboram considerandos sobre a história do sindicalismo e se realça de novo uma posição a favor de um Sindicalismo de Base (mecanismo da confissão).

O Sindicalismo de Base versus o de “Cúpula” corresponde ao núcleo dilemático que se enuncia posteriormente no discurso de Fernanda Lopes Cardoso e Marcelo Curto, relativo ao contexto histórico de então:

Daqui decorrem desde logo duas formas de organização, duas linhas de acção sindical: os sindicatos fortemente estruturados “cujas direcções enquadrem os trabalhadores”, fornecendo-lhes directrizes ou palavras de ordem, ou os sindicatos em que o poder dos delegados é grande e “cujas direcções executam as decisões dos trabalhadores respondendo perante eles”. Em suma, como já entrou na linguagem corrente depois do 25 de Abril, como “Sindicatos de cúpula” e “Sindicatos de base”.

A este parágrafo, que se pretende como “descrição de factos”, seguir-se-ão unidades discursivas que relevam a importância do sindicalismo de base e das Comissões de Trabalhadores no panorama laboral do pós 25 de Abril.

Na seguinte frase, com um argumento construído sob a forma de confissão (sublinhando a “importância incontestável” daquelas Comissões), e nas posteriores unidades de discurso deste artigo, pronuncia-se um verdadeiro projecto basista para as formas desejáveis da organização laboral no país:

“As Comissões de Trabalhadores adquiriram uma importância incontestável no movimento operário português, constituindo a expressão da democracia sonhada e um meio de acção directo e eficaz.”

A tónica dilemática “bases” versus “Órgãos de Cúpula” é de novo repetida, numa argumentação construída de novo sob a forma de confissão (as Comissões de Trabalhadores “deveriam constituir os pontos de partida” para as formas de organização laboral) ligada ao mecanismo retórico de descrição de factos:

Incontestáveis mas contestadas pelas organizações sindicais que vêem fugir-lhes os meios de controlo sobre a classe operária, as Comissões de Trabalhadores que, logicamente, deveriam constituir os pontos de partida para as novas formas de organização são, onde os sindicatos têm força para tal, destruídas por todos os meios e preteridas em favor de “Comissões de Delegados”, contestadas em muitos casos pelos próprios trabalhadores.

Ao longo do artigo serão apresentadas algumas considerações opinativas sobre o projecto de lei da Unicidade Sindical. Trata-se de um texto programático que salienta, como dissemos, uma perspectiva basista, em que o argumentário, que releva o dilema “bases” (leia-se “Comissões de Trabalhadores”) versus Órgãos de Cúpula, se socorre dos mecanismos da Inoculação Retórica e da Descrição Factual para obstar à possibilidade de a Lei da Unicidade Sindical vir a ser aprovada.

Assim, pretende-se prevenir – inoculação retórica – os leitores para as consequências da imposição por Lei das formas de organização sindical que não tenham sido “aceites” pelos trabalhadores, com uma argumentação que apresenta algum distanciamento (“parece-nos certo que não será possível”):

Qualquer que seja a decisão final sobre o projecto de lei das associações sindicais, parece-nos certo que não será possível impor aos trabalhadores formas que eles próprios não tenham aceite e que não resultando da análise das condições actuais do movimento operário em Portugal, mas sim duma construção esquemática a partir de experiências que lhe são exteriores, parecem destinadas, necessariamente, ao abandono.

O papel das bases (Comissões de Trabalhadores) é sucessivamente realçado, recorrendo-se a uma argumentação descritiva, mas também prevenindo – Inoculação retórica – a audiência relativamente aos Sindicatos que patenteiam, na luta laboral, “orientações oportunistas”:

Depois do 25 de Abril, as massas trabalhadoras portuguesas criaram em cada fábrica, em cada empresa, as suas “Comissões de Trabalhadores” constituídas por delegados eleitos segundo diversos critérios (por secções, por locais de trabalho, por profissões, proporcionalmente a um certo número de trabalhadores).

Essas Comissões desempenharam e continuam a desempenhar um papel fundamental na luta dos trabalhadores e não só por melhores condições económicas [...] mas também como afirmação política independente dos trabalhadores para a sua participação directa na construção democrática do Estado em todos os seus aspectos [...]. Mas [...] nenhuma organização sindical ou política [...] obteve êxito nas tentativas de travar as lutas das Comissões [...] nas orientações oportunistas que ensaiaram e levaram à prática, a substituição de Comissões de Trabalhadores por Comissões Sindicais, escolhidas pelos sindicatos e não pelos trabalhadores.

Denota-se também uma argumentação que recorre à maximização/extremização quer, pela positiva, das conquistas das Comissões de Trabalhadores, quer, pela negativa, das “orientações oportunistas” por parte de uma denominada “burocracia sindical”:

“As Comissões de trabalhadores resistiram sempre, avançaram na sua luta, ganharam força em todas as empresas, e nenhuma burocracia sindical as pode hoje desconhecer.”

 

Artigo de Salgado Zenha “Unidade Sindical ou Medo à Liberdade?” – Diário de Notícias, 07/01/1975

Referenciando as questões das liberdades “sindical” e de “associação”, constantes do Programa do MFA, ataca, como “inconstitucional”, a Lei da Unicidade Sindical. A argumentação denota aspectos de descrição de factos (Programa do Movimento das Forças Armadas, que prevê a liberdade de associação sindical), mas é também construída sob a forma de confissão de uma tomada de posição relativamente a essa Lei:

No projecto de lei sindical impõe-se uma confederação sindical única. Ora, e salvo respeito pela opinião contrária, considero essa disposição inconstitucional.

Como se sabe, o Programa do Movimento das Forças Armadas é hoje uma verdadeira carta constitucional. E a liberdade de associação e a liberdade sindical (aspecto particular da liberdade de associação) são violadas se se impõe a unicidade da confederação sindical. Liberdade implica liberdade de escolha e de caminhos. Sem ela, não há liberdade.

Previne-se a audiência relativamente à promulgação da Lei (mecanismo de “inoculação retórica”) relativamente à imposição pelo Governo de uma Confederação Sindical, evocando o sindicalismo e a génese da Confederação Sindical existente no período da Primeira República:

Em Portugal, durante a República, houve apenas uma confederação sindical – a C.G.T. – de inspiração fundamentalmente anarco-sindicalista. Ora essa unidade sindical confederativa não foi imposta por [...] decreto. Resultou da vontade dos trabalhadores.

A questão da “liberdade sindical” é repetida recorrendo às credenciais de uma Convenção da Organização Internacional do Trabalho sobre a mesma:

Por iniciativa do Conselho Económico e Social da O.N.U., a O.I.T. elaborou uma Convenção [...] relativa à liberdade sindical. [...] Essa convenção assegura a liberdade sindical a todos os níveis, inclusive o confederal. Não podemos aceitar que em Portugal se negue a liberdade sindical.

Recorre-se também ao mecanismo retórico de maximização/extremização (“atestado de menoridade passado aos trabalhadores portugueses”) para contestar a Lei da Unicidade Sindical, e posteriormente Zenha finda o seu artigo enfatizando de novo o problema da “liberdade sindical”, com construção argumentativa sob a forma de confissão:

A imposição por via administrativa de uma confederação sindical única [...] é [...] um atestado de menoridade passado aos trabalhadores portugueses [...].

Por isso eu voto na liberdade sindical. Não tenhamos medo da liberdade.

 

Povo Livre – 16 de Janeiro de 1975

Esta edição especial do órgão oficial do PPD é dedicada à Lei da Unicidade Sindical.

Para efeitos de explanação dos conteúdos argumentativos “liberdade sindical” versus “unicidade sindical”, consideraremos o comunicado do PPD relativamente ao Projecto-Lei da Unicidade Sindical.

Considerada no comunicado do partido sobre a sua posição relativamente ao assunto, está considerada logo no próprio título como uma Lei Opressiva – “Unicidade Sindical é opressão quando imposta por Lei” –. O PPD, evoca de novo o problema das liberdades de Associação e Sindical para contestar essa mesma Lei, sendo os argumentos expostos quer de forma descritiva quer por confissão da posição do PPD ou, de novo, recorrendo a Credenciais (a Declaração Universal dos Direitos do Homem), tal como se constata na seguinte citação do tal comunicado:

O Programa do MFA não admite duas interpretações quanto ao exacto alcance da expressão LIBERDADE SINDICAL que nele contém.

Na verdade, o nº 5-b) da Divisão B dispõe textualmente: “Liberdade de reunião e associação [...]. Em aplicação deste princípio [...] será garantida a liberdade sindical [...] é portanto em aplicação do princípio de liberdade de reunião e asso ciação que se afirma garantida a liberdade sindical, como resulta aliás da Declaração Universal dos Direitos do Homem [...] sendo a liberdade sindical a expressão da liberdade de associação, e sendo esta [...] constante da declaração universal dos Direitos do homem (artigos 20º e 23º, nº 4), é forçoso concluir que defender esta liberdade não é ser ‘liberalista’”.

 

Portugal Socialista – “O Partido Socialista não se deixará satelizar” – 17 de Janeiro de 1975

Este número especial do Portugal Socialista relata os discursos proferidos numa manifestação do PS no Pavilhão dos Desportos contra a Lei da Unicidade Sindical no dia 16 de Janeiro de 1975.

Incidiremos a nossa análise sobre os discursos de António Lopes Cardoso e de Salgado Zenha, o primeiro por de novo relevar a linha sindical “basista” do PS, o segundo pela importância do personagem na contra-argumentação às posições defendidas pelo PCP e pela Intersindical.

Lopes Cardoso inicia o seu discurso levantando o problema da “liberdade”, com um argumento construído sob a forma de inoculação retórica relativamente ao que “está em causa”:

“O que está em causa neste momento não é apenas a liberdade e só isso bastaria para mobilizarmos todos os nossos esforços.”

Realçando também a causa socialista, o discurso constrói-se de novo sob a forma de Inoculação Propagandística explicitando uma dicotomia argumentativa – trabalhadores como “instrumento ao serviço do aparelho do Estado” versus “trabalhadores participantes” (deduz-se, autónomos) – “na construção do seu futuro”:

O que está em causa é a construção da sociedade socialista em Portugal, é a edificação de uma sociedade sem classes em que os trabalhadores não sejam meros instrumentos ao serviço do aparelho do Estado, mas autênticos participantes na construção da sua vida e do seu futuro.

A Liberdade aqui explicitada diz respeito ao “controlo da classe trabalhadora por uma minoria burocratizada” ou por uma “vanguarda” dessa mesma classe:

Por isso seremos intransigentes na defesa da liberdade. Não da “liberdade” que perpetua a exploração do homem pelo homem, nem da “liberdade” que permite o controlo da classe trabalhadora por uma minoria burocratizada que, arvorada em vanguarda dessa classe a manipula, controla e dirige como entende.

Todo o argumento relativo à questão da Liberdade é pois construído sob a forma da confissão de uma tomada de posição. Como se verifica no parágrafo seguinte, deseja-se (argumento construído sob a forma de confissão) uma “liberdade” em que todos os trabalhadores participem “na organização, direcção e funcionamento” dos seus órgãos, e não controlada (subentende-se) pelas referidas “minoria burocratizada” ou “vanguarda”:

Somos e seremos pela liberdade autêntica, a liberdade que é a expressão de uma sociedade sem classes, a liberdade de todos os trabalhadores, de todos os cidadãos participarem, real, efectivamente, na organização, direcção e funcionamento da colectividade a que pertencem.

Denunciando “uma campanha de intoxicação”, invocam-se as posições que se refutam (unicidade sindical, pluralismo sindical) e aquelas que se defendem (unidade e liberdades sindicais), numa argumentação que denota uma estratégia de inoculação propagandística: “[...] temos assistido, camaradas, nos últimos tempos, a uma verdadeira campanha de intoxicação em que se confunde unicidade sindical com unidade sindical e pluralismo sindical com liberdade sindical.”

Lopes Cardoso expõe a sua posição sobre o socialismo e a unidade – que não “se impõem por decreto” –, e maximiza/extrema o discurso (“aqueles que pretendem impor por decreto” a unidade às classes trabalhadoras “manifestam por elas um soberano desprezo”, questionando “quem tem medo do povo”, “quem tem medo da classe trabalhadora”):

[...] nem o socialismo nem a unidade se impõem por decreto e aqueles que pretendem por decreto impor às classes trabalhadoras a “unidade” manifestam por elas um soberano desprezo, uma profunda desconfiança [...].

Quem tem medo do povo?

Quem tem medo da classe trabalhadora?

Nós que exigimos que lhe seja reconhecido o direito de livremente decidirem do seu destino? Ou aqueles que tutelarmente pretendem legislar sobre o futuro?

Responde à pergunta que enuncia e, através do mecanismo de confissão, expressa a posição do seu Partido:

“A classe trabalhadora não necessita de tutelas, nem do Estado, nem de qualquer partido.”

Justifica a sua afirmação, recorrendo de novo a uma versão e a uma visão basistas que enaltece as comissões de trabalhadores, contra as cúpulas sindicais (mecanismo da confissão):

A classe trabalhadora demonstrou-o já claramente e a comprová-lo estão as comissões de trabalhadores livremente eleitas nas fábricas, a comprová-lo estão as lutas conduzidas pela classe trabalhadora, tantas elas sem o apoio ou contra a vontade das organizações sindicais existentes, sempre que se têm divorciado das bases ou não têm pretendido interpretar a vontade dessas bases.

A unidade dos trabalhadores é realçada em função de várias exigências, incluindo a construção do socialismo, mas de novo refuta-se a posição contrária que identifica a unidade com a Lei da Unicidade Sindical (de novo mecanismo de confissão):

A luta contra os grandes monopólios, a luta contra a carestia da vida, a luta contra a sabotagem económica, são tarefas inadiáveis impostas pela própria consolidação da democracia e pela construção do socialismo e essa luta exige a unidade das classes trabalhadoras, mas é incompatível com o sindicato único imposto pelo Estado. A menos que se queira fazer dos sindicatos simples correias de transmissão entre um partido político e as massas trabalhadoras, e das lutas nas fábricas, nos campos, nas empresas, meros instrumentos tácticos ao serviço da estratégia de um partido político.

 

Discurso de Salgado Zenha

O discurso de Zenha, construído sob a forma de confissão – “fiquei [...] estupefacto” – levanta o problema da liberdade sindical e de uma unidade dos trabalhadores que, como se verá mais à frente, se pretende de uma “unidade em liberdade”:

Eu fiquei, digo-vos, completamente estupefacto com a audácia daquele projecto, tornava-se evidente que era uma traição à liberdade sindical, uma traição à unidade dos trabalhadores, tal como ela é entendida pelos verdadeiros democratas e pelos verdadeiros socialistas.

O seguinte trecho do discurso de Zenha, embora se apresente sob a forma de confissão, com a expressão “manietamento da classe operária”, articula-se com os argumentos do “dirigismo” das “cúpulas” sindicais e da liberdade dos trabalhadores: “Esse projecto espantou-me, não só porque nele se impõe uma Confederação Sindical única, como também é imposto um Sindicato único e todo um complexo de disposições que são um verdadeiro manietamento da classe operária.”

No parágrafo em baixo, os argumentos apresentam-se sob a forma de inoculação propagandística, com a apresentação explícita prévia do ponto de vista oposto – o Sindicalismo de Estado – prevenindo-se para eventuais consequências relativamente à “dignidade da classe trabalhadora”:

Por outro lado, a vingar o ponto de vista do sindicalismo de Estado, eu não sei quais as consequências que daí podem advir para a dignidade da classe trabalhadora.

No trecho discursivo seguinte é patente, de novo, o mecanismo de inoculação propagandística, com apresentação explícita prévia do poder da Intersindical versus as consequências para os trabalhadores:

Neste momento a Secretaria de Estado está nas mãos da Intersindical. Por outro lado, o Fundo de Desemprego [...] passou para o Ministério do trabalho [...] Eu pergunto se amanhã será exigido a um trabalhador que, para beneficiar do Fundo de Desemprego, se filie na Intersindical!

Patenteando a necessidade de serenidade – mecanismo de distanciamento –, Zenha “confessa” que contudo “a paciência esgotou-se”, procede seguidamente por inoculação retórica invocando o “futuro do Povo Português” e das esquerdas que não estarão dispostas a serem “tuteladas pelos salvadores da classe operária” (numa referência ao PCP e à Intersindical, e respectivos aliados), prevenindo implicitamente para os efeitos da promulgação da Lei da Unicidade Sindical:

Faço aqui uma paragem. Eu peço aos camaradas para me ouvirem com serenidade. Nós não estamos aqui para atacar ninguém [...] mas a paciência esgotou-se e nós resolvemos sair do silêncio porque entendemos que neste momento não é o futuro do Partido Socialista que está em jogo, é o futuro do Povo Português. É o futuro de todas as correntes políticas de esquerda ou de todas as correntes sindicais de esquerda que não estão na disposição de serem tuteladas pelos salvadores da classe operária e do Povo Português.

O discurso de Zenha repete o argumento que os trabalhadores não serão propriedade de uma “corrente salvadora”, de um partido, do Estado, enfim de “cúpulas” dirigistas:

A classe operária não é propriedade de nenhum partido, não é propriedade de nenhum Estado, não é propriedade de qualquer corrente salvadora, ela sabe governar-se e dirigir-se a si própria e não precisa de ser manipulada nem por elite nem por cúpulas neodirigistas.

Recorre-se a credenciais – “os fascistas não nos partiram os dentes” – para prevenir implicitamente para uma Liberdade que começa a estar em causa (mecanismo de inoculação retórica):

Os fascistas não nos partiram os dentes e em democracia muito menos será fácil chegar-se a esse objectivo. Mas isso mostra que o problema da liberdade em Portugal começa a ser um problema. A liberdade não é para alguns é para todos os portugueses.

 

Entrevista a Sá-Carneiro – “Social-democracia não mantém sistema capitalista” – A Capital, 21 de Janeiro de 1975

Referindo-se especificamente à Lei da Unicidade Sindical, recorre ao mecanismo confessional quanto à questão da representatividade dos trabalhadores pelos partidos políticos, seguido do mecanismo de Inoculação Propagandística relativamente a posições vanguardistas relativamente à “classe trabalhadora”:

“[...] rejeito totalmente a ideia do partido de ‘elite’, condutor de massas pouco esclarecidas ou manipuladas [...] O PPD aliás nunca se arvorou em vanguarda de quem quer.”

A “liberdade” e a “democracia” versus a Lei da Unicidade Sindical, é relevada sob a forma retórica da confissão:

A imposição por via legal da unicidade sindical já mereceu inúmeros comunicados nossos [...] a unicidade imposta não foi escolhida por todos os trabalhadores [...] as manifestações de massa [...] põem sempre em causa a realidade dos processos democráticos. O PPD continua e continuará a defender a unidade na liberdade; a democracia e os direitos do homem.

 

Alavanca, 9 de Dezembro de 1974 – “Unidade, a vontade dos trabalhadores”

Reproduzindo um texto da Intersindical, de 30 de Novembro de 1974, toma-se partido de um sindicalismo de classe:

A unidade do movimento sindical português não é apenas uma tradição. É uma necessidade histórica. Para a defesa e fortalecimento da unidade sindical a consagração legal da unicidade será um contributo apreciável. Para a defesa e fortalecimento da liberdade democrática – a única que pode servir os interesses dos trabalhadores – a consagração da unicidade, juntamente com os princípios da independência, autonomia e democraticidade da organização e com a consagração do direito de acção sindical na empresa e a protecção legal de dirigentes e delegados sindicais, permitirá construir um movimento sindical possante ao serviço da Classe Trabalhadora, do Povo Português e do País.

Recorrendo ao mecanismo de inoculação propagandística, com apresentação prévia do argumento que se pretende refutar – o “pluralismo sindical” aqui identificado com possíveis “divisões” entre os trabalhadores –, conclui-se pela desejável “unidade de classe”, associando-a à “unicidade” sindical: “[...] os trabalhadores portugueses, independentemente da sua actividade profissional, não querem divisões e desejam defender uma das maiores aquisições da luta sob o fascismo – a sua unidade de classe, a unicidade do seu movimento sindical.”

Com a apresentação explícita de dois argumentos opostos, sendo o primeiro o que se pretende refutar (Inoculação Propagandística) – “brechas na unidade”, “sindicatos paralelos” que se “combateram e combatem” – e com extremização de argumentos (“tentativas oportunistas de fazer dos sindicatos um meio de influência ao serviço de valores alheios”), apela-se ao sindicalismo unitário:

Impedindo a abertura de brechas na unidade, os trabalhadores portugueses não constituíram um único sindicato paralelo, antes combateram e combatem quaisquer tentativas oportunistas de fazer dos Sindicatos um meio de influência ao serviço de valores alheios, senão contrários aos interesses dos trabalhadores.

Inocula-se a audiência (inoculação propagandística), relativamente ao pluralismo sindical ser consagrado na Lei “a coberto de um conceito abstracto de liberdade” – o argumento próprio é que se não deseja uma liberdade “em abstracto”, mas como se verá uma “liberdade real” da classe trabalhadora: “O Secretariado da Intersindical, no documento aprovado no Plenário de sábado passado aponta também para os perigos reais, para o movimento dos trabalhadores portugueses, da hipótese do direito ao pluralismo vir a ser reconhecido na Lei, a coberto de um conceito abstracto de liberdade.”

O pluralismo sindical é identificado com “divisão”, num argumento construído sob a forma de confissão da posição da Intersindical:

O decurso do tempo veio a provar que os trabalhadores não podiam confiar apenas na sua vontade de unidade. Pelos interesses de uns e a incompreensão de outros, começaram a surgir posições públicas de forças externas aos trabalhadores procurando dividir o movimento sindical difundindo o pluralismo da organização.

É face àquela divisão, que é identificada com o pluralismo sindical, que se justifica (argumento sob a forma de confissão) a proposta da Lei da unicidade Sindical, tendo em conta um sindicalismo de classe e no seio da luta de classes, contra o “pluralismo sindical”, denunciado como “contrafacção de Sindicatos”:

Ora foi em face dessas tentativas de divisão do seu movimento sindical por forças que lhe são estranhas que os trabalhadores, através dos seus Sindicatos, federações e da Intersindical, puseram claramente o problema da consagração legal do princípio da unicidade. Porque compreenderam que os trabalhadores não se encontram sós, antes enfrentam os seus próprios inimigos de classe – aqueles que os têm explorado e continuam a explorar [...]. Compreendendo isto, os trabalhadores tinham o direito, e os dirigentes sindicais o dever, de reclamar que a Lei negasse o pluralismo sindical – pluralismo esse que é hoje a única forma de esses adversários da classe trabalhadora fazerem surgir a sua contrafacção de Sindicatos.

A liberdade entendida como “liberdade de classe” (contra uma “liberdade em abstracto” e o “liberalismo”) e o sindicalismo de classe são explicitados na seguinte tomada de posição da Intersindical (mecanismo da confissão):

A liberdade não é um conceito abstracto. A liberdade tem um conteúdo de classe [...]. Temos de distinguir a liberdade do liberalismo [...]. Temos de escolher [...] contra a opressão e pela liberdade: Entre as liberdades fundamentais dos trabalhadores conta-se a liberdade sindical [...]. O direito ao sindicato é um direito de raiz colectiva, um direito de classe. Um direito que a classe deve dispor no seu conjunto.

Construindo o argumentário, de novo, sob a forma de inoculação propagandística, refuta-se, com base na visão classicista do sindicalismo e dos partidos políticos, o pluralismo sindical: “Alguns defendem o pluralismo sindical por semelhança ao pluralismo político [...] o pluripartidarismo tem como justificação, exactamente a existência de classes sociais [...] ao movimento sindical não corresponde [...] o pluralismo organizacional.”

 

Nota da Comissão Política do Comité Central do PCP (14/01/75)

Recorrendo à descrição de factos, previne-se implicitamente (inoculação retórica) a audiência contra posições contrárias à Lei da unicidade sindical: “A unicidade sindical foi amplamente discutida pelas massas trabalhadoras. Ninguém de boa fé pode contestar a esmagadora aprovação que lhe foi dada.”

 

Carlos Carvalhas – “Deve respeitar-se a vontade dos trabalhadores” – Diário de Notícias, 13 de Janeiro de 1975

Ainda recorrendo à descrição do articulado da Lei, previne-se a audiência, posteriormente, contra o pluralismo sindical, denunciado como divisão dos trabalhadores em prole do grande capital, ou sindicalismo partidário (inoculação Retórica):

Pretende-se também sindicatos independentes das organizações patronais e dos partidos políticos e talvez seja aqui que se ponha o dedo na ferida. O grande capital está interessado na divisão dos trabalhadores e certos partidos políticos com pouca inserção na classe trabalhadora estão também interessados no pluralismo sindical para formarem os seus próprios sindicatos partidários.

Procedendo por inoculação retórica – “os trabalhadores portugueses sabem” –, justifica a lei (com argumentação por confissão) da unicidade sindical face ao perigo do divisionismo. Previne a audiência para uma certa “liberdade abstracta”, liberdade essa pressupostamente evocada pelo discurso da parte opositora:

Os trabalhadores portugueses sabem que, para além da cor, da religião e do partido político de cada um, há um elo fundamental que os une – o viverem principalmente da sua força de trabalho [...]. Sabem também que [...] sem uma lei que consubstancie a unicidade [...] seriam presa fácil das organizações patronais ou dos partidarismos políticos que [...] arranjariam pretextos para a divisão ou os enfraqueceriam na sua luta principal [...] lutam pela liberdade real e não pela liberdade abstracta [...] não esqueceram dos prejuízos causados à luta operária pelas divisões de que foram vítimas.

 

Avante, 16 de Janeiro de 1975 – “A Lição de 14 de Janeiro” (Editorial)

Uma manifestação da Intersindical a 14 de Janeiro é retoricamente maximizada e apresentada como o “argumento mais poderoso e significativo” do referido “movimento popular”:

A grandiosa manifestação popular organizada pela Intersindical, apoiada pelo PCP, o MDP e o MES e ainda pelo MDM, o MJT e a UEC e sectores de outros quadrantes políticos é o argumento mais poderoso e significativo contra aqueles que não estão verdadeiramente interessados no reforço e dinamização da componente popular do nosso processo democrático.

Os argumentos da posição opositora – que referenciavam os sindicatos como cúpulas, ou apelavam para liberdade em causa – são rebatidos com os resultados da consulta aos trabalhadores (Inoculação propagandística), apresentando-se a Intersindical como um órgão de classe, defendendo-se um sindicalismo de classe:

Procura-se instilar aos olhos de observadores externos a ideia de que o princípio da unicidade sindicalé uma iniciativa de cúpula, alheia [...] à decisão das massas.

A resposta dos trabalhadores é elucidativa [...] A unicidade sindical não é contrária [...] às liberdadesdemocráticas fundamentais nem ao princípio básico da unidade sindical. Quer dizer: uma sóConfederação Sindical, que exprima a unidade e liberdade da organização de classe.

Há forças e pessoas que continuam arreigadas a conceitos e legalidades cuja raiz de classe não é dos trabalhadores.

 

Alavanca, 17 de Janeiro 1975 – “A grande Manifestação da Intersindical: Quem tem medo do Povo?”

Notícia relativa à manifestação de 14 de Janeiro de 1975 convocada pela Intersindical, em apoio à Lei da Unicidade Sindical, que viria a ser promulgada pelo Governo Provisório no dia 21 subsequente.

Noticia a manifestação de novo maximizando o acontecimento. Aborda o problema da liberdade de novo – a “liberdade autêntica” por que lutavam os trabalhadores – por contraponto à liberdade e democracia “formais”:

[...] trabalhadores portugueses que lutam pela democracia autêntica e pela liberdade autêntica – não pela liberdade e democracia formais que dão aos exploradores, directa ou indirectamente, o poder económico, isto é a liberdade de continuarem explorando e de se apoderarem novamente do poder político.

 

Discurso de Carlos Carvalho (Dirigente Sindical, Secretariado da Intersindical)

O dirigente da Intersindical inicia o seu discurso destrinçando o que entende a Intersindical por liberdade sindical – associada a um sindicalismo de classe – por oposição ao pluralismo sindical.

Sob a forma de confissão, explana de novo o que entende a intersindical por “liberdade sindical” – associada a um sindicalismo de classe – por oposição ao “pluralismo sindical”:

[...] todos nós já nos pronunciámos de forma decisiva e firme sobre o que entendemos por liberdade sindical, princípio que desejamos consagrado na Lei. Para nós, trabalhadores, por liberdade sindical é uma expressão que, por natureza, se opõe ao pluralismo sindical. Para nós [...] liberdade sindical significa a possibilidade de constituirmos os nossos próprios e autónomos organismos de classe que defendam os nossos interesses colectivos. [...] significa impossibilidade de divisão do movimento sindical porque nós trabalhadores não queremos.

Identifica aquele pluralismo sindical com “divisão sindical”, que interessará ao “grande capital monopolista”:

Não queremos a divisão sindical porque sabemos muito bem quem está por trás destas manobras. Sabemos que é ao patronato, principalmente o grande capital monopolista e latifundista, que interessa o enfraquecimento do movimento sindical através da sua divisão. Como manifestaram através das suas tomadas de posição públicas, os beneficiários e privilegiados da sociedade burguesa estão contra nós: querem desrespeitar a nossa vontade, menosprezam os nossos interesses, querem ser eles a decidir nas nossas costas e contra a nossa vontade.

Sob a forma de argumentação por confissão, refuta o “pluralismo sindical”, de novo identificado com divisionismo: “Estamos aqui mais uma vez para afirmarmos que só a proibição do pluralismo sindical defende os nossos interesses, porque impede que entre nós outros venham semear divisões”.

A “liberdade sindical” é evocada, para, seguidamente se apresentar um contra-argumento próprio com uma unidade discursiva construída sob a forma de apresentação explícita do argumento oposto e do argumento próprio – Inoculação Propagandística:

A experiência histórica demonstra claramente que onde a liberdade sindical é interpretada como consecução da faculdade de criar sindicatos paralelos, isso sucede por interesses estranhos a nós trabalhadores e é contra nós utilizado.

De novo sob a forma de inoculação propagandística, associa-se o pluralismo sindical à “divisão”, para se exigir a Lei da Unicidade Sindical:

Não temos dúvidas de que aqueles que entre nós defendem o pluralismo sindical, se a sua tese vencesse, tentariam amanhã aproveitar-se desse facto para nos dividir, e melhor nos explorar. E é porque temos consciência disso que aqui vimos reforçar a posição por nós já assumida, de exigência, de que a unidade e a unicidade sindical venham expressamente consagradas na lei.

Carlos Carvalho termina o seu discurso de forma confessional associando a Lei da Unicidade Sindical com uma forma de sindicalismo de classe: “Só a unidade sindical na lei permite a defesa consequente dos interesses de classe dos trabalhadores.”

 

Avante – “Política clara e transparente” – 23 de Janeiro de 1975

Referenciando argumentos do PS relativos à questão da liberdade, procede por inoculação com apresentação explícita de dois argumentos (Inoculação Propagandística):

Este problema das eleições entronca num outro que mais uma vez tem sido insidiosamente avançado pelo PS – o do “partido único”... Insinua-se que o PCP prepara um “golpe” para impedir as eleições e instaurar um regime de “partido único”. Não será um pouco a técnica do “agarra, que é ladrão”? Todos o sabem – e o PS sabe-o muito bem – que o PCP sempre defendeu um Estado democrático com amplas liberdades, com livre actuação dos partidos, que sempre defendeu a unidade não só para hoje como para amanhã, o que resulta afinal de uma situação social objectiva.

Com um argumento apresentado como confissão de tomada de posição, refuta-se o “pluralismo sindical”, referenciando-se de novo o enquadramento dos Sindicatos no âmbito classicista:

O pluralismo sindical levará à criação de sindicatos concorrentes, cada qual com uma vida interna subordinada a uma tendência partidária [...] onde o verdadeiro espírito de classe seria abafado pelo espírito de seita animadora do próprio sindicato.

Evoca-se o argumento a que o PS e o PPD aludem – a “liberdade sindical” – para reafirmar o argumento do PCP e da Intersindical – a Unicidade. Trata-se portanto do recurso ao mecanismo de inoculação com apresentação explícita do argumento contrário e do contra-argumento – Inoculação Propagandística. Reafirma-se que o que está em causa é a independência “de classe” para refutar de novo o “pluralismo sindical”:

A liberdade sindical só pode ser assegurada pela unicidade. O essencial da independência sindical é a independência de classe, a independência na luta contra a exploração e em defesa dos interesses dos trabalhadores. O pluralismo sindical significaria o domínio absoluto dos sindicatos por partidos, por grupos de caciques profissionais ou pelo próprio patronato.

Adopta-se a posição a favor da unicidade, ligando-a a uma perspectiva de sindicalismo classicista, e, recorrendo à inoculação com apresentação de argumento e contra-argumento explícitos, de novo se refuta o “pluralismo sindical”:

Nas condições concretas existentes em Portugal a independência dos sindicatos só pode ser assegurada pela unicidade.

A unidade sindical é uma das mais fortes expressões da unidade da classe operária, condição de defesa efectiva dos seus interesses vitais.

Por outro lado, o pluralismo sindical seria um obstáculo real ao processo democrático (confissão).

 

Discussão

 

Polaridades ideológicas

Quanto aos conteúdos argumentativos, a tónica dilemática do discurso PS (ver Quadro 1) coloca-se entre uma concepção da organização laboral basista (com ênfase nas Comissões de Trabalhadores) – uma posição “conselhista” quanto às formas de organização dos trabalhadores, que aliás teve expressão forte logo em 1974, após o derrube da ditadura, de acordo com Varela (2014) – versus o “autoritarismo” das “cúpulas sindicais” (“alheadas” dos interesses das bases):

 

 

No discurso do PPD (ver Quadro 2), a tónica dilemática coloca-se entre a liberdade sindical e a imposição vertical (por Lei) da unicidade sindical, que se repudia em favor do pluralismo sindical, recorrendo para reforço deste último argumento às credenciais de organizações Internacionais e à letra do programa do MFA:

 

 

Finalmente, as polaridades ideológicas que se expressam no discurso da Intersindical e do PCP (ver Quadro 3) colocam-se entre, por um lado, um pluralismo sindical que se repudia, pois corresponderia à divisão da classe trabalhadora, bem como uma “liberdade em abstracto” e, por outro lado, a unicidade sindical como expressão da unidade da classe trabalhadora, da sua “liberdade real”, e uma visão classicista das organizações sindicais:

 

 

Examinando estas polaridades ideológicas ou dicotomias argumentativas, bem como os conteúdos dos discursos analisados, pode concluir-se que o PCP e a Intersindical defendiam uma concepção de Sindicalismo de Classe no que respeita à organização laboral em Portugal. O PS valorizava uma posição basista relativamente às formas de organização dos trabalhadores, salientando o papel das comissões de trabalhadores, conceptualizando a construção de sindicatos “de acordo com o estado das relações de produção” (vide entrevista a Marcelo Curto). Finalmente o PPD, recorrendo a credenciais, propõe à época o pluralismo sindical, que associa ao tema da liberdade sindical.

Não menosprezando a pertinência temporal e intrínseca destas posições político-ideológicas sobre as formas de organização dos trabalhadores, e à luz das interpretações de vários historiadores que resumimos em trabalho precedente (cf. Amaral, 2014), é possível hipotetizar que estas posições se prendam também com as relações de força e o peso político dos partidos do Governo Provisório, em vésperas das eleições para a assembleia constituinte, que se realizariam a 25 de Abril de 1975. Ao peso do PCP (e da Intersindical) no seio da classe trabalhadora (que não teria correspondência ao seu peso eleitoral, como se verificou nas eleições), contrapunha-se a fraca penetração do PS no meio operário e nas organizações sindicais – que o terá levado a enfatizar desde cedo o papel das Comissões de trabalhadores – assim como do PPD, que preconizava desde 1974 o pluralismo a todos os níveis sindicais, incluindo o confederal.

 

Mecanismos comunicativos sobre a questão da Unicidade Sindical e hipóteses das relações no âmbito do modelo dialógico de Marková

 

Articulação entre funções e conteúdos dos mecanismo comunicativos

 

PS: O PS recorre ao mecanismo da confissão da tomada de posição que reivindica um sindicalismo de bases e a liberdade sindical. Também se serve da Inoculação Retórica para prevenir não só para a vontade das bases “divorciadas das cúpulas”, para, exactamente, a relevância à época das comissões de trabalhadores, bem como para o problema da liberdade sindical posta em causa com a promulgação da Lei, ou no caso dos discursos de Zenha para o problema da Liberdade em geral.

Os conteúdos veiculados por este tipo de inoculação retórica, são também evocados, das poucas vezes que o PS recorre Propagandística, precisamente para Inocular a Audiência para um Sindicalismo de Aparelho versus um sindicalismo de bases.

 

PPD: Procede por inoculação retórica para prevenir a amputação da Liberdade Sindical, com a promulgação da Lei. Recorre a credenciais (Programa do MFA, OIT, Declaração dos Direitos Humanos) para enfatizar a necessidade de liberdade sindical. Utiliza a confissão a favor da liberdade de associação sindical. A única vez em que a inoculação propagandística é utilizada é-o por Sá-Carneiro na entrevista ao jornal A Capital, inoculando para uma pseudo-superioridade “de vanguardas esclarecidas”.

 

PCP e Intersindical: Recorre à maximização e ao mecanismo de descrição dos resultados da consulta aos trabalhadores, cuja “esmagadora maioria” tinha aprovado o princípio da Unicidade Sindical. Ocorre também à maximização da manifestação da Intersindical de 14 de Janeiro (do número de manifestantes e das organizações políticas e sindicais envolvidas) (Figura 2).

 

 

O mecanismo de Inoculação Propagandística é muito evidente nestas duas formações: há uma repetição comunicativa muito consistente assim como homogeneidade de conteúdos discursivas pró-Lei Unicidade Sindical nos órgãos oficiais das duas organizações (Avante e Alavanca): o argumento contrário que se pretende denunciar, que é explicitamente enunciado é o da liberdade sindical entendida como pluralismo sindical, sendo enfatizado o contra-argumento classicista quanto à perspectiva que se propõe para a forma de organização sindical desejável (“unidade da classe trabalhadora”, “independência da classe trabalhadora”, legalidade sindical de “classe”).

Apenas quando o PCP ou o seu dirigente Carlos Carvalhas argumentam em bases de comunicação com função não partidária ou não sindical (Nota da Comissão Política do Comité Central do PCP, artigo de Carlos Carvalhas no Diário de Noticias) relevam mecanismos retóricos com vista a uma resposta dialógica ao argumento da liberdade sindical.

Assim, como se poderá verificar na Figura 3, o PCP na sua nota previne – inoculação retórica – contra posições contrárias à Lei quer os adversários quer a audiência, e maximiza a consulta aos trabalhadores (a lei foi “amplamente discutida” e teve uma “esmagadora aprovação”).

 

 

Por sua vez, Carvalhas usa a inoculação retórica para prevenir contra o pluralismo sindical que corresponderá à divisão da classe trabalhadora assim como para uma liberdade em abstracto que não será a liberdade real desejada para os trabalhadores.

 

Referências

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CORRESPONDÊNCIA

A correspondência relativa a este artigo deverá ser enviada para: Virgílio Amaral, Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Colégio de S. Jerónimo, Apartado 3087, 3000-995, Coimbra, Portugal. E-mail: virgilio.amaral@gmail.com

 

Trabalho financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia, com a bolsa de Investigação SFRH/BPD/79663/2011.

 

Submissão: 11/07/2016 Aceitação: 17/11/2016

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