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Análise Psicológica

versão impressa ISSN 0870-8231versão On-line ISSN 1646-6020

Aná. Psicológica vol.35 no.1 Lisboa mar. 2017

https://doi.org/10.14417/ap.1238 

O relacionamento e a auto-definição de acordo com a perspectiva de Sidney Blatt: Conceptualização e implicações clínicas

Rui C. Campos1

1Departamento de Psicologia, Escola de Ciências Sociais, Universidade de Évora

Correspondência

 

RESUMO

Este trabalho de natureza teórica pretende apresentar o modelo de Sidney Blatt e discutir em torno de algumas das suas implicações clínicas. O artigo está organizado em diferentes secções. Começamos por abordar a conceptualização do autor sobre a depressão, de seguida descrevemos a sua proposta sobre o desenvolvimento da personalidade e os dois estilos de personalidade que concebeu, anaclítico e introjectivo. De seguida referimo-nos às estruturas ou esquemas cognitivo-afectivos e às duas configurações psicopatológicas descritas por Blatt. Continuamos discutindo em torno das relações existentes entre essas duas configurações psicopatológicas e fazemos depois uma síntese/reflexão sobre o modelo. O artigo termina com uma discussão sobre as implicações clínicas do modelo.

Palavras-chave: Relacionamento, Auto-definição, Sidney Blatt, Conceptualização, Implicações clínicas.

 

ABSTRACT

This theoretical work intends to present Sidney Blatt’s model and to discuss some of its clinical implications. The article is organized in different sections. We begin by approaching the author’s conceptualization on depression, then we describe his proposal on the development of personality and the two personality styles he has poposed:, anaclític and introjective. Next, we refer to cognitive-affective structures or schemas and to the two psychopathological configurations described by Blatt. We continue by discussing the relations between these two psychopathological configurations and then make a synthesis/reflection on the model. The article ends with a discussion of the clinical implications of the model.

Key words: Relatedness, Self-definition, Sidney Blatt, Conceptualization, Clinical implications.

 

Na década de 70 do século passado, Blatt e colegas (Blatt, 1974; Blatt, D’Afflitti, & Quinlan, 1976; Blatt, Wein, Chevron, & Quinlan, 1979; Chevron, Quinlan, & Blatt, 1978) iniciaram uma série de estudos sobre a depressão tendo por base a premissa de que esta podia ser mais bem compreendida se considerada como um desvio em relação ao desenvolvimento normal e não como um entidade ou um conjunto de entidades nosológicas independentes e bem delimitadas. Blatt considerou importante estudar as experiências depressivas, as vivências internas dos sujeitos, indo além dos sintomas manifestos das síndromas depressivas. Na sua perspectiva, o indivíduo pode vivenciar experiências típicas dos depressivos sem estar clinicamente deprimido. Mais tarde Blatt (Blatt, 1990, 2008; Blatt & Shichman, 1983) generalizou o seu modelo à compreensão da psicopatologia e não apenas da depressão, elaborou um modelo do desenvolvimento da personalidade e aplicou-o ao estudo do processo psicoterapêutico.

 

A conceptualização sobre a depressão

Até aos anos 70 do séc. XX, o termo depressão remetia, fundamentalmente, para uma entidade psiquiátrica ou psicopatológica concreta. Segundo Blatt e Levy (1998), foi, sobretudo, a partir dessa altura que a depressão começou a ser vista, não apenas como uma entidade nosológica, mas também como um estado afectivo disfórico, variável em intensidade, duração e adaptabilidade que podia manifestar-se num contínuo, desde formas relativamente moderadas e circunscritas no tempo, em resposta a acontecimentos de vida perturbadores, até formas graves, persistentes e fortemente desadaptativas (Campos, 2009a).

Dada a dificuldade em conceptualizar diferentes tipos de depressão com base em sintomas, o que resulta em subtipos normalmente muito heterogéneos (Blatt & Maroudas, 1992; Blatt, Quinlan, Chevron, McDonald, & Zuroff, 1982), vários autores, nomeadamente Blatt, mas também Bowlby (1980), Arietti e Bemporad (1980) e Beck (1983), propuseram a distinção entre tipos depressivos com base em outros critérios que não as expressões sintomáticas, como as experiências relevantes para os indivíduos e que os podem conduzir à depressão (Blatt & Blass, 1992, p. 419; Blatt & Zuroff, 1992, p. 527). Deste modo, propuseram-se distinguir tipos de experiências depressivas sem uma preocupação com o tipo ou a gravidade dos sintomas manifestos de depressão (Campos, 2009a,b). Blatt (1974; Blatt et al., 1982) considera que diferenciar tipos de experiências depressivas desta forma pode ser útil para compreender melhor a depressão, a sua etiologia e as múltiplas expressões que assume, dada a sua complexidade e heterogeneidade.

Blatt (1974) recorreu à conceptualização de vários autores da escola psicanalítica (e.g., Abraham, 1916; Bibring, 1953; Freud, 1917/1980; Rado, 1928) e à sua própria experiência clínica psicanalítica para apoiar a distinção entre uma depressão em que se acentua a componente de dependência e outra em que a culpa e o auto-criticismo assumem o papel central. Distingue, assim, uma depressão anaclítica ou de dependência e uma depressão introjectiva ou de auto-criticismo, centrando-se as experiências dos indivíduos depressivos à volta de duas dimensões básicas da personalidade, o relacionamento e a definição do Self, respectivamente (veja-se Blatt, 2004; Blatt & Levy, 1998; Blatt & Shahar, 2005).

Como se verá mais adiante, estas duas formas de depressão são enquadradas mais tarde por Blatt em duas configurações gerais de psicopatologia, o que se pode considerar, de certo modo, um aspecto original do seu modelo.

Enquanto estados afectivos ou experiências depressivas, podem variar em intensidade, desde constituir experiências passageiras e moderadas, até estados clínicos profundos e graves (Blatt, 1974; Blatt et al., 1976). Além do mais, os dois tipos de experiências depressivas não são mutuamente exclusivos, podendo co-existir num mesmo indivíduo (Campos, 2009a,b). Note-se que estas duas formas se podem entrecruzar, continuar e comunicar numa depressão que se pode designar de mista. Cada sujeito terá uma depressão com mais ou menos atributos anaclíticos e mais ou menos atributos introjectivos. Fala-se aqui de dimensões depressivas, tipos de experiências depressivas que coexistem, embora num dado indivíduo tenda a prevalecer uma deles em detrimento do outro. Entendidos como “protótipos”, os dois tipos de depressão estariam associados a estilos parentais diferentes que conduziriam a tipos igualmente distintos de perturbação das representações mentais (Blatt, 2004; Blatt & Homann, 1992).

Blatt considera que vários factores podem contribuir para a ocorrência da depressão, nomeadamente, aspectos temperamentais, estilos parentais e consequentes estilos de vinculação, acontecimentos externos traumáticos na infância e factores precipitantes presentes. Considera, também, que os factores devem ser analisados de forma inter-relacionada. Por exemplo, não são os aspectos temperamentais só por si, nem as características dos pais que podem conduzir a uma vulnerabilidade à depressão, mas a incompatibilidade entre as características temperamentais da criança e as características dos pais (Blatt & Homann, 1992).

A conceptualização de Blatt esboça, na verdade, como acontece com outras conceptualizações em Psicologia, um modelo de diatese – stress. Segundo este tipo de modelos, predisposições individuais, como variáveis de personalidade, interagem com acontecimentos de vida geradores de stress, originando a depressão clínica.

No caso da linha anaclítica, e de uma forma sucinta, pode resumir-se o modelo de Blatt de vulnerabilidade à patologia depressiva do seguinte modo: figuras parentais com uma atitude inconsistente, de negligência, abandonante ou hiper-protectora, poderão criar uma vulnerabilidade/personalidade de tipo interpessoal/anaclítico/dependente com dependência, labilidade afectiva, preocupações com as relações e uso de defesas de tipo evitante, como a negação ou o recalcamento. Mais tarde, em resultado de experiências de perda, abandono, rejeição ou de não se sentir cuidado, pode originar-se uma depressão anaclítica/de dependência com sentimentos de desamparo, tristeza, solidão, abandono, rejeição, desamor, sintomas somáticos e o uso da negação ou busca desesperada de um objecto substituto que possa proporcionar amor (Blatt, 2004; Blatt & Homann, 1992; Blatt & Zuroff, 1992; Campos, 2000).

Por outro lado, no caso da linha introjectiva, um estilo parental intrusivo, controlador e crítico poderá gerar uma vulnerabilidade/personalidade de tipo auto-avaliativo/introjectico/auto-crítico, onde se encontra uma atitude hostil, mas igualmente de auto-crítica, uma excessiva actividade e procura de realizações como mecanismo compensatório, preocupação com questões de sucesso/insucesso, responsabilidade e culpa. Verifica-se o uso de defesas neutralizantes, como a formação reactiva, a intelectualização ou a projecção. Perante experiências de insucesso nas realizações pessoais, culpabilização, ridicularização, crítica, diminuição da auto-estima ou perda de controlo sobre o ambiente, mas também, de perda e abandono, pode desenvolver-se uma depressão introjectiva/de auto-criticismo, com sentimentos marcados de desvalorização, culpa e crítica. Pode também verificar-se a presença de comportamentos auto e hetero-agressivos (Blatt, 2004; Blatt & Homann, 1992; Blatt & Zuroff, 1992; Campos, 2000; Fazaa & Page, 2003).

Mas pode ir-se um pouco mais além nesta perspectiva relativa às influências recíprocas entre características internas e ambiente. As características de personalidade do indivíduo também determinam parcialmente a natureza do seu ambiente e esse ambiente, por sua vez, afecta ou reforça as características do próprio. Os indivíduos auto-críticos e dependentes procuram e manipulam os ambientes e as relações interpessoais de forma qualitativamente diferente, o que, por sua vez, ajuda a consolidar as suas características (Blatt, Cornell, & Eshkol, 1993; Blatt & Zuroff, 1992).

Existem outras perspectivas teóricas que podem ser comparadas à de Blatt, no que respeita aos tipos de depressão. De facto, uma mudança importante ocorreu ao longo das últimas décadas na conceptualização, investigação e intervenção terapêutica na depressão. Passou-se de uma focalização na expressão sintomática para uma focalização na compreensão da vulnerabilidade à depressão com base no funcionamento da personalidade (Luyten & Blatt, 2007).

Um certo número de autores (e.g., Arieti & Bemporad, 1980; Beck, 1983; Bowlby, 1980) abordou a depressão a partir de um olhar fenomenológico (Blatt & Maroudas, 1992). Esta abordagem fenomenológica e focalizada em dimensões internas será porventura mais rica e útil para a avaliação psicológica e para a intervenção psicoterapêutica, inclusive para a compreensão do próprio processo de mudança terapêutica, como discutiremos no final deste artigo.

A formulação posterior de Blatt sobre as duas dimensões da personalidade foi para além da sua relação com a depressão (Blatt & Maroudas, 1992). Inicialmente, Blatt (1974) distinguiu a depressão anaclítica da depressão introjectiva. No entanto, mais recentemente, generalizou esta distinção para definir duas configurações primárias de psicopatologia – a configuração anaclítica e a configuração introjectiva. A formulação de uma personalidade anaclítica e de uma personalidade introjectiva tem implicações que vão para além da compreensão da depressão, aplicando-se a uma vasta gama de psicopatologias (Blatt, 1990; Blatt & Shichman, 1983). Aplicou também a distinção anaclítico versus introjectivo ao processo de desenvolvimento da personalidade.

Na verdade, Blatt e colegas (e.g., Blatt, 2006, 2008; Blatt & Blass, 1990; Blatt & Luyten, 2009; Blatt & Shichman, 1983; Luyten & Blatt, 2013) conceptualizaram duas polaridades/processos desenvolvimentais básicos: relacionamento e auto-definição que podem ser vistos como dimensões psicológicas fundamentais para a compreensão do processo de desenvolvimento da personalidade e das variações na organização da personalidade normal e da psicopatologia.

Esta evolução de uma descrição empírica de duas formas de depressão para uma conceptualização e ligação a dimensões globais de personalidade constitui, em nossa opinião, um aspecto original do modelo.

 

Um modelo sobre o desenvolvimento da personalidade: O relacionamento e a auto-definição

Embora alguns teóricos do desenvolvimento enfatizem nos seus modelos, quer a dimensão do relacionamento, quer a dimensão da auto-definição, muitas das teorias de desenvolvimento valorizam apenas uma delas: a separação e a auto-definição ou a vinculação e o relacionamento interpessoal (Blatt & Blass, 1990, 1992).

No entanto, algumas teorizações (e.g., Adler, 1951; Angyal, 1951; Bakan, 1966; Bowlby, 1969; Guilligan, 1982; McAdams, 1985; Shor & Sanville, 1976) enfatizam a integração das duas dimensões como central para o desenvolvimento e para o bem-estar psicológico. A separação e o relacionamento não são vistos como processos que se desenvolvem em paralelo, mas como inter-dependentes. Constituem ambos, objectivos básicos do desenvolvimento (Blatt & Blass, 1996). Para Blatt (1990; Blatt & Blass, 1996), o desenvolvimento da personalidade implica uma interacção entre duas linhas ou processos fundamentais, ou mais especificamente, entre as tarefas inerentes a essas linhas de desenvolvimento: o estabelecimento de relações interpessoais cada vez mais maduras, recíprocas, mutuamente satisfatórias, estáveis e duradouras, e o desenvolvimento de uma identidade ou auto-definição ou de um sentido do Self, como consolidado, diferenciado, realista, integrado, essencialmente positivo, estável e cada vez mais integrado.

Segundo Blatt, os dois processos evoluem de uma forma interactiva, dialéctica, recíproca, balanceada e mutuamente facilitadora ao longo de todo o desenvolvimento. Assim, “O desenvolvimento harmonioso da personalidade envolve um ênfase igual e complementar na individualidade e no relacionamento, quer nos homens, quer nas mulheres” (Guisinguer & Blatt, 1994, p. 109). Um sentido do Self cada vez mais sólido, facilita o estabelecimento de relações cada vez mais maduras. Por sua vez, o estabelecimento de relações interpessoais de maior qualidade possibilita o desenvolvimento de uma identidade ou auto-definição mais evoluída (Blatt, 1991).

Blatt e Blass (1990, 1992, 1996) introduziram algumas modificações no modelo de Erikson, de forma a que fosse reconhecido o papel do relacionamento interpessoal no desenvolvimento da identidade e a dar conta da interacção dialéctica entre as linhas do relacionamento e da auto-definição. Consideram que a identidade “emerge através de uma dialéctica... entre o Self... [percebido como] separado e o self experienciado na sua vinculação aos objectos” (Blatt & Blass, 1996, p. 316). Blatt salienta que as tarefas de vinculação são subvalorizadas na conceptualização psicossocial de Erikson, em parte devido ao seu esquema linear do desenvolvimento (veja-se Blatt & Blass, 1996; Campos, 2003). Em Erikson, o estabelecimento de uma identidade sólida é considerado o objectivo central. A vinculação tem um papel secundário; é um sub-produto facilitador. As tarefas de vinculação são elos intermédios no processo que têm como fim a individuação. Relações interpessoais maduras ocorrem como consequência do alcançar dessa mesma individuação (veja-se Blatt & Blass, 1996; Campos, 2003).

Na tentativa de expandir/reformular o modelo de Erikson, Blatt, com base na formulação de Sullivan (1953) (que havia identificado um novo estádio de cooperação versus alienação no desenvolvimento psicossocial, que ocorreria na altura do surgimento do pensamento operatório), acrescentou um novo estádio de cooperação entre os estádios de iniciativa e realização. A sequência linear de Erikson de oito estádios pôde então ser separada em duas linhas paralelas mas interactivas de relacionamento/vinculação e de auto-definição/separação (Blatt & Blass, 1996).

Apesar das duas linhas interagirem ao longo de todo o ciclo de vida, permanecem relativamente independentes uma da outra nos primeiros anos. Em estádios posteriores do desenvolvimento, são totalmente integrados diferentes aspectos das duas linhas fundamentais. Por exemplo, o estádio de formação da identidade na adolescência, além de pertencer à linha de auto-definição, é também um estádio “integrativo e cumulativo... envolvendo uma síntese e integração [dos vários aspectos] da individualidade e do relacionamento” (Blatt & Blass, 1996, p. 319), em que “a capacidade de cooperar e partilhar com os outros é coordenada com um sentido de individualidade...” (Blatt, 1995, p. 13). Além disso, “Os estádios de intimidade e geratividade... são [também] expressões da integração de níveis de desenvolvimento anteriores de individualidade e relacionamento... consolidados numa identidade madura – num self na relação” (Blatt & Blass, 1996, p. 320). Uma última e mais completa síntese do relacionamento e da auto-definição ocorre no estádio de integridade, considerado também como cumulativo e integrativo.

 

Dois estilos de personalidade

Apesar de a “normalidade” poder ser definida como uma integração entre o relacionamento e a auto-definição, dentro dos limites dessa normalidade os indivíduos podem colocar uma ênfase maior num dos dois processos de desenvolvimento, definindo-se assim duas configurações/estilos básicos de personalidade, anaclítico e introjectivo, respectivamente, consoante a ênfase é posta no relacionamento ou na individualidade/auto-definição. Como afirma Blatt (1990, 1995; Blatt et al., 1993; Blatt & Shichman, 1983) estas duas configurações de personalidade apresentam modos particulares de cognição, diferentes estilos de relação, diferentes tipos de mecanismos defensivos e um foco instintivo e desenvolvimental específico.

Os indivíduos que colocam a ênfase no relacionamento interpessoal com uma relativa negligência da auto-definição (anaclíticos), enfatizam a síntese e a integração num todo dos vários elementos e não uma análise crítica dos detalhes. O seu pensamento é mais figurativo, intuitivo e determinado por sentimentos do que por factos e detalhes. Em termos de estilo cognitivo, são fundamentalmente dependentes de campo. Procuram a harmonia, a satisfação, a confiança e o bem-estar nas relações. São orientados para o objecto. O seu modo instintivo principal é libidinal. Utilizam fundamentalmente mecanismos defensivos de tipo evitante (e.g., repressão e negação) (Blatt, 1990, 1995; Campos, 2003).

Por outro lado, para os indivíduos que colocam a ênfase na auto-definição (introjectivos), o foco é na análise (e não na síntese), na exploração crítica dos detalhes e das partes. O seu pensamento é mais literal, focado no comportamento manifesto, na lógica e na causalidade. Em termos de estilo cognitivo, são fundamentalmente independentes de campo. O seu objectivo primeiro é a obtenção de prestígio, o controlo e o poder e o seu desejo básico é de serem reconhecidos e respeitados. O seu modo instintivo principal envolve a agressividade e a assertividade ao serviço da auto-definição. Utilizam sobretudo mecanismos defensivos neutralizantes. (e.g., projecção, intelectualização, formação reactiva e sobre-compensação) (Blatt, 1990, 1995; Campos, 2003).

Por vezes, um acumular de experiências traumáticas, em associação com predisposições individuais podem afectar o processo dialéctico entre as duas linhas de desenvolvimento (e. g., Blatt, 1991). Em resultado de desvios ligeiros em relação ao processo normal de desenvolvimento, o indivíduo assumirá uma de duas possíveis trajectórias, desenvolvendo um dos estilos de personalidade. Mas nos extremos, uma centração excessiva numa das linhas de desenvolvimento, definirá uma de duas configurações psicopatológicas (Blatt & Shichman, 1983), anaclítica ou centrada no objecto e introjectiva ou centrada na autonomia e no Self.

Se o processo normal de desenvolvimento for perturbado numa determinada fase, sem que outros factores possam minorar posteriormente essa perturbação, as dificuldades vão repetir-se e consolidar-se como modos disfuncionais de adaptação. No entanto, acontecimentos posteriores poderão minorar as dificuldades geradas inicialmente. Por exemplo, as relações da criança com as figuras significativas podem ter um impacto negativo no desenvolvimento, mas certas relações posteriores com outras pessoas poderão minimizar a vulnerabilidade inicial. Mas quanto mais cedo as perturbações ocorrerem e quanto mais acentuados forem os desvios em relação ao processo de desenvolvimento normativo, mais grave será a patologia (Blatt, 1990).

 

As estruturas ou esquemas cognitivo-afectivos

As manifestações sintomáticas das várias patologias, desde a esquizofrenia às neuroses, resultam, em grande parte, segundo Blatt (1991, 1995), de perturbações nas estruturas ou esquemas cognitivo-afectivos construídos a partir de relações significativas ao longo do desenvolvimento. Os esquemas vão-se desenvolvendo à medida que a maturação psicológica do indivíduo se processa e exigências de diversos tipos vão ocorrendo. Quando estas exigências são adequadas à idade, a criança é capaz de alterar os seus esquemas, de forma a acomodar a nova experiência. Mas quando as exigências são persistentes e ultrapassam a capacidade de acomodação da criança, pode verificar-se uma perturbação no desenvolvimento dessas estruturas cognitivo-afectivas (Blatt, 1991, 1995; Blatt & Lerner, 1983).

Tendo por base uma integração de conceitos das teorias cognitivas e das teorias psicanalíticas do desenvolvimento e da teoria da vinculação (e.g., Bowlby, 1969; Kobak & Hazan, 1991; Mahler, Pine, & Bergman, 1975; Werner & Kalpan, 1963), Blatt (1995) descreve vários pontos nodais no desenvolvimento dos esquemas cognitivo-afectivos. Perturbações nesses pontos associam-se a diferentes formas de psicopatologia.

O primeiro nível de esquema cognitivo-afectivo que emerge por volta dos dois, três meses, é designado por constância dos limites – sendo evidente do ponto de vista comportamental pela resposta de sorriso intencional do bebé e pela sua capacidade de interagir com os outros. Por volta dos seis, oito meses, a criança desenvolve um esquema denominado constância libidinal – a criança começa a distinguir diferentes pessoas à sua volta e investe em apenas algumas, diferenciando-as das demais. Esta constância libidinal é muito importante no desenvolvimento, uma vez que permite o estabelecimento de uma vinculação segura. Por volta dos 16, 18 meses, um terceiro esquema cognitivo emerge, denominado constância evocativa – a capacidade de reter e evocar o conceito de um objecto que já não está presente no campo perceptivo. Os padrões de vinculação segura e insegura tornam-se evidentes por volta da emergência deste esquema. Perturbações na constância dos limites e na constância libidinal associam-se à patologia psicótica e perturbações na constância evocativa associam-se à organização borderline.

Depois da consolidação da constância evocativa, a evolução do conceito de Self e do conceito de outro ocorre de forma inter-relacionada, sendo expressão das duas linhas fundamentais do desenvolvimento. O processo de desenvolvimento dialéctico dos conceitos de Self e de relação com o outro pode ser conceptualizado e ilustrado pela reformulação do modelo de Erikson referida anteriormente (Blatt, 1991, 1995).

 

Duas configurações psicopatológicas

Em resultado de perturbações no processo normal de desenvolvimento, “alguns indivíduos, ... [mais frequentemente] as mulheres, tornam-se excessivamente preocupados com o relacionamento, em detrimento do desenvolvimento do conceito de Self” (Blatt & Blass, 1992, p. 416). Os homens lidam mais frequentemente com as perturbações no processo dialéctico de desenvolvimento, “exagerando as tentativas de consolidar um sentido do Self em detrimento do estabelecimento de relações (Blatt & Blass, 1992, p. 417). Esta diferença poderá dever-se, ainda que apenas em parte, ao contexto social. No homem, é sobretudo valorizada a auto-definição e a realização pessoal, ao contrário do que acontece nas mulheres, em que é mais valorizada a dimensão relacional e afectiva (Blatt, 2006, 2008).

Na psicopatologia introjectiva, o desenvolvimento das relações interpessoais está afectado, sendo as relações vividas e interpretadas fundamentalmente em função da auto-definição. Na psicopatologia anaclítica é negligenciado o sentido do Self, sendo este definido em função da qualidade das relações e do investimento do objecto no sujeito (Blatt, 2008). A distinção entre duas configurações psicopatológicas tem repercussões clínicas importantes, particularmente em termos do processo psicoterapêutico, como discutiremos mais à frente.

Há uma semelhança importante relativamente aos aspectos estruturais e dinâmicos entre as diferentes patologias dentro de cada configuração, mas em cada uma das configurações existem vários níveis de estruturação, desde as tentativas menos evoluídas às mais evoluídas de estabelecer relações interpessoais significativas ou um sentido do Self consolidado (veja-se Campos, 2003). Na verdade, podem definir-se linhas ao longo das quais os pacientes podem regredir ou evoluir. Cada forma de patologia contém um potencial de evolução ou regressão e constitui um ponto relativo de um continuum dinâmico ou espectro dentro de cada configuração psicopatológica (Blatt & Shichman, 1983; veja-se também Blatt, 1990, 2008; Blatt & Blass, 1992).

 

A configuração anaclítica

As patologias da configuração anaclítica podem ter a sua génese associada à negligência, excessiva proximidade ou inconsistência nas relações precoces (e.g., Blatt, Besser, & Ford, 2007; Mongrain & Leather, 2006). A necessidade extrema de amor e atenção e a dificuldade em tolerar a frustração, a espera e a não gratificação imediata das necessidades são dominantes (e.g., Blatt, 2004).

Do ponto de vista do desenvolvimento, podem incluir-se nesta configuração diferentes perturbações, desde as menos evoluídas (mais graves) até às mais evoluídas (num nível moderado). Num nível mais arcaico, podemos encontrar a esquizofrenia indiferenciada (não-paranóide), reflexo de uma incapacidade de diferenciação entre o Self e o outro; num nível intermédio, como sequela de negligência na relação primária de cuidado e como expressão de uma forte ansiedade de separação, podemos encontrar a perturbação borderline e a anaclítica/dependente (ou personalidade infantil) e, num nível superior, a perturbação histriónica (Blatt, 2006, 2008).

No que respeita à patologia neurótica, sobretudo a esfera que foi abordada por Blatt, existem dois pontos nodais para a ocorrência de patologia na linha anaclítica. Perturbações num nível de relacionamento interpessoal mais primário encontram-se sobretudo em pacientes com personalidades infantis, enquanto perturbações num nível relacional mais evoluído se encontram sobretudo em pacientes histriónicos. Os indivíduos com uma personalidade infantil/dependente são, normalmente, mais exigentes com os outros e sentem-se mais desamparados do que os histriónicos, embora ambos desejem fortemente ser amados e necessitem da atenção do outro (Blatt, 2006, 2008; Blatt & Blass, 1992; Blatt & Shichman, 1983). De forma a dar conta de um tom eminentemente disfórico associado à presença de sentimentos de não ser amado e de ser abandonado, Blatt (1974) tinha associado a personalidade infantil à depressão anaclítica. Tendo como pano de fundo a personalidade infantil, podem ocorrer expressões sintomáticas variadas, como a depressão, mas também os equivalentes depressivos, como o abuso de substâncias e as queixas somáticas. Os sintomas constituem tentativas mais primárias de busca de gratificação, podendo o indivíduo através deles evitar sentir-se rejeitado, desamparado, fraco e desprotegido (Blatt & Shichman, 1983).

 

A configuração introjectiva

A génese deste tipo de psicopatologia está ligada a uma relação com objectos controladores, intrusivos, punitivos ou excessivamente críticos (Blatt, 2008). Os desejos básicos dos indivíduos com patologias da configuração introjectiva relacionam-se com a obtenção de poder, controlo, autonomia e reconhecimento e por serem respeitados e admirados (e.g., Blatt, 2006, 2008; Rector, Bagby, Segal, Joffe, & Levitt, 2000).

A patologia dentro da configuração introjectiva, tal como acontece na anaclítica, pode ocorrer em vários níveis do desenvolvimento. Desde um nível menos evoluído (mais grave) a um nível superior (moderado): a esquizofrenia paranóide, perturbação borderline de tipo intojectivo (overideational), paranóia, perturbação obsessivo-compulsiva, depressão introjectiva e perturbação narcísica (Blatt, 2006; Blatt & Shichman, 1983; Campos, 2003; Ouimette, Klein, Riso, & Lizandi, 1994).

Os sujeitos paranóides estão muito preocupados em manter um Self diferenciado, embora este não seja definido internamente. O Self é definido por contraste com os outros, preocupando-se estas pessoas em assegurar um sentido de si próprias como distintas, separadas e diferentes. Num nível mais evoluído de desenvolvimento na linha introjectiva, os pacientes obsessivo-compulsivos estão preocupados com o domínio e controlo sobre a mente e o corpo. Esforçam-se continuamente para manter o controlo sobre pensamentos, acções e sentimentos (Blatt, 2008). A perturbação depressiva integra um nível superior da configuração introjectiva (Blatt, 2006, 2008). De referir que, num certo sentido, a paranóia pode ser vista justamente como o “inverso” da depressão; na primeira a culpa é projectada no exterior, na segunda é introjectada e voltada contra o self. O mesmo acontece com os impulsos agressivos, que são, respectivamente, voltados para o exterior ou para o próprio. Uma falha na construção do Self existe nos indivíduos com qualquer uma das duas perturbações, mas as manobras defensivas utilizadas são diferentes. No nível superior da configuração, na perturbação narcísica, a sobrecompensação pode funcionar como uma defesa contra dúvidas sobre o valor próprio. O sujeito exagera na atribuição de qualidades a si mesmo, assumindo um comportamento narcísico, com fantasias de grandiosidade, sucesso, poder, reconhecimento e prestígio e necessidade de domínio e controlo (Blatt, 2008).

 

Relações entre as duas configurações

De acordo com Blatt (1990), apesar da maioria dos quadros psicopatológicos se organizar à volta de uma das duas configurações, podem encontrar-se pacientes com características de ambas as configurações. Surgem casos em que é impossível classificar os pacientes como anaclíticos ou introjectivos – são as chamadas expressões mistas (Blatt, 2008). Podem encontrar-se experiências de perda e abandono, comportamentos orais excessivos, características obsessivas e auto-criticismo, sentimentos de culpa, fobias e mecanismos de defesa, ora neutralizantes, ora de evitamento (Blatt, 2004).

Em nosso entender o modelo de Blatt explica menos bem como se originam estes quadros mistos. A natureza tipológica do modelo tem como consequência natural a ênfase na diferenciação entre linhas/configurações psicopatológicas e uma maior dificuldade em explicar as apresentações mistas quanto à sua génese em termos desenvolvimentais.

De qualquer forma, do ponto de vista clínico, os pacientes com características simultaneamente anaclíticas e introjectivas apresentam uma psicopatologia mais grave (Shahar, Ford, & Blatt, 2003). Os pacientes anaclíticos ou introjectivos puros conseguiram construir uma forma de adaptação relativamente focal, o que lhes permite funcionar num nível mais adaptado. Apesar de tudo, os pacientes com um quadro misto evidenciam melhorias mais significativas e rápidas do que os pacientes anaclíticos e introjectivos puros em psicoterapia de orientação psicanalítica, provavelmente porque o seu sistema defensivo é menos consolidado e mais mobilizável (Shahar et al., 2003).

Por outro lado, acontece por vezes que a presença de características de uma das duas configurações oculta a verdadeira configuração de personalidade, os seja, os dois tipos de características podem co-ocorrer mas numa constelação mais dinâmica. Os atributos de uma das configurações podem servir como defesa contra a experienciação e o reconhecimento das características da outra. Por exemplo, um sujeito que coloca uma ênfase excessiva em aspectos como a autonomia, o poder e o reconhecimento (linha introjectiva), pode estar simplesmente a defender-se de experiências dolorosas de abandono e rejeição (linha anaclítica), negando determinados desejos e necessidades interpessoais (Blatt, 2008; Blatt & Shahar, 2005). O contrário também pode acontecer, embora seja menos provável (Blatt, Luyten, & Corveleyn, 2005).

Finalmente, pode ainda considerar-se a possibilidade de ocorrência de um efeito sinérgico entre as duas linhas. Tal como acontece no desenvolvimento normal, também na patologia o relacionamento e a auto-definição podem operar de forma sinérgica. Quando os sujeitos anaclíticos têm a percepção de ter falhado num dado objectivo sentem-se sem valor, mas também sentem medo de serem rejeitados pelos outros, devido ao facto de terem fracassado. Por outro lado, os indivíduos introjectivos podem, em determinados momentos, vivenciar rejeição interpessoal e experiencia-la como abandono, mas também como uma prova da sua incapacidade relacional, o que se traduz numa ameaça à sua auto-estima (Shahar, Gallagher, Blatt, Kuperminc, & Leadbeater, 2004).

 

Uma síntese/reflexão sobre o modelo

De acordo com o modelo, a construção de uma identidade sólida vai permitir o estabelecimento de relações objectais de maior qualidade e complementaridade e determinar uma necessidade objectal mais evoluída. Por outro lado, é a possibilidade de estabelecer relações de qualidade com bons objectos que permite a construção de uma identidade coesa. O processo decore ao longo de todo o ciclo vital. Trata-se, na verdade, de uma sinergia entre uma posição mais centrada no objecto e uma posição mais centrada no Self. O desenvolvimento saudável estaria associado a uma busca de objectos que complementem o sujeito (não que o completem) e que respeitem e sejam respeitados na sua individualidade (Campos & Mesquita, 2014).

Existe ainda, de acordo com o modelo, uma plasticidade no processo de desenvolvimento que vai, no entanto, diminuindo com o passar do tempo – a possibilidade de uma influência reparadora do meio torna-se menor à medida que o desenvolvimento progride. Embora as relações precoces disfuncionais possam ser perturbadoras, relações subsequentes podem amenizar esse efeito patogénico. Contudo, quanto mais cedo as perturbações ocorrerem, mais grave tenderá a ser a patologia.

Blatt salienta os processos de internalização e integração como centrais para o desenvolvimento e como possibilitando a construção da identidade. Inerente ao modelo, está também uma ideia de que, quando as exigências ambientais são adequadas à idade/período de desenvolvimento da criança, esta é capaz de ir acomodando a nova experiência. No entanto, quando as exigências são maiores e persistentes, pode verificar-se uma perturbação no desenvolvimento das estruturas cognitivo-afectivas.

O autor valoriza o impacto no desenvolvimento das relações significativas com os cuidadores, mas a sua proposta teórica parece centrar-se mais na construção dos esquemas mentais/representações internas e de como perturbações na construção dessas representações podem originar diferentes formas de perturbação. Há em Blatt uma referência clara ao papel que o estilo relacional pais-criança pode ter, mas a ênfase é colocada, ainda sim, pensamos, no sujeito, na construção da personalidade e das representações mentais (Campos & Mesquita, 2014).

O modelo propõe uma leitura da perturbação à luz da ocorrência de desvios no processo desenvolvimental e esboça uma proposta classificatória da psicopatologia em duas configurações/clusters (onde são integrados os dois tipos de depressão, inicialmente conceptualizados de forma isolada) com base em critérios desenvolvimentais que são considerados muito importantes para a sua compreensão.

O modelo pode considerar-se, em nossa opinião, como tipológico, no sentido em que classifica as diferentes perturbações em dois tipos ou duas configurações básicas e nenhuma delas é vista como mais evoluída que a outra. No entanto, é simultaneamente maturacional, assumindo que a patologia pode ocorrer a vários níveis dentro de cada uma das configurações, da mais grave à menos grave. Blatt considera ainda, de qualquer forma que, por vezes, podem ocorrer expressões mistas, embora menos frequentes do que as formas puras. Além disso, as duas configurações podem operar de forma sinérgica e a presença de características de uma das duas configurações pode servir como defesa contra a experienciação das características da outra.

A conceptualização de Blatt parece “convidar” à dedução de que a linha anaclítica seria predominantemente objectal e de que a linha introjectiva seria predominantemente narcísica. No entanto, esta aproximação é apenas aparente. O investimento no Self ou nos objectos não serve para caracterizar se a modalidade de investimento é narcísica ou objectal, dado que o investimento no objecto pode ser de cariz narcísico. Esta ideia é já expressa, aliás, no texto Para introduzir o narcisismo de Freud (1914/1986). Para Kohut (1966), por exemplo, a antítese do narcisismo não é a relação objectal, mas sim o amor objectal. Este autor considera que a relação com os objectos pode implicar um investimento de tipo narcísico e a solidão pode “esconder” um forte desejo de amor objectal (Campos & Mesquita, 2014).

Na verdade, genericamente em psicopatologia dinâmica, a distinção narcísico versus objectal, conceptualizada em termos do foco de investimento, é incorrecta. No limite, quer os pacientes anaclíticos, quer os introjectivos apresentarão características narcísicas, no sentido em que são auto-centrados e preocupados com as suas necessidades. Por exemplo, a passividade e aparente preocupação dos indivíduos anaclíticos com os outros podem reflectir a sua necessidade de gratificação e de manter a auto-estima e um sentido de coesão interna, usando os outros para essa finalidade. O objecto seria investido com o objectivo de satisfazer as necessidades do sujeito. Num estudo (Campos, 2009c) com sujeitos dependentes (definidos com base num resultado elevado na escala de dependência do Questionário de Experiências Depressivas – Campos, Besser, & Blatt, 2013), utilizando o Método do Rorschach, observou-se que as respostas de reflexo tendiam a correlacionar-se, significativamente, com a presença do estilo dependente. Ora as respostas de reflexo são justamente consideradas como estando associadas à dimensão narcísica da personalidade (Exner, 2003).

Um narcisismo patológico poderá caracterizar, genericamente, a psicopatologia, pelo que comporta de centração do indivíduo no que sente que está em falta. Um narcisismo saudável, contrariamente, implica uma “individualidade em relação”. Ele é necessário para o estabelecimento de relações de qualidade. Mas são essas relações de qualidade, por sua vez, e em primeira instância, que determinam a construção de um narcisismo robusto. Por outro lado, a objectalidade pode ser vista como um corolário ou fim último do desenvolvimento – um Self em ligação, a capacidade de se vincular ao outro e permitir ao mesmo tempo que o outro transforme, pelo afecto e pela ligação (Campos & Mesquita, 2014). De acordo com Blatt e Blass (1996, p. 319), as duas linhas, do relacionamento e da auto-definição, são totalmente integradas na parte final do desenvolvimento num sistema de nós – dá-se a integração do conceito de Self e do conceito de outro num sentido pleno de nós.

 

Implicações clínicas

Uma das implicações mais interessantes da perspectiva de Sidney Blatt relaciona-se com o facto de as diferentes formas de psicopatologia poderem ser vistas, não como entidades nosológicas independentes e isoladas, mas como “modos inter-relacionados de adaptação, organizados em níveis de desenvolvimento diferentes dentro de duas configurações básicas” (Blatt, 1990, p. 312). A proposta de duas linhas de desenvolvimento proporciona uma estrutura conceptual que permite integrar uma variedade de perturbações e expressões sintomáticas apenas em duas configurações.

Blatt e colegas (Blatt, 2006, 2008; Blatt & Levy, 1998) afirmam que a investigação tem demonstrado que as perturbações da personalidade descritas no DSM podem ser integradas, de forma parcimoniosa, em dois clusters. Um conjunto de perturbações parece focalizar-se de diferentes formas e, possivelmente, em diferentes níveis do desenvolvimento em questões do relacionamento interpessoal. Um outro conjunto parece expressar uma preocupação em estabelecer, preservar e manter um sentido do Self, de formas diferentes e também, possivelmente, em diferentes níveis do desenvolvimento. Vários trabalhos (veja-se Blatt & Levy, 1998; Cogswell & Alloy, 2006; Ouimette et al., 1994) mostraram que as perturbações dependente, histriónica e borderline se correlacionam significativamente com medidas da dimensão anaclítica, e que as perturbações anti-social, paranóide, esquizóide, narcísica, evitante e obsessivo-compulsiva se correlacionam com medidas da dimensão introjectiva1.

Diversas críticas têm sido feitas aos sistemas de classificação de tipo categorial em geral e ao DSM, em particular. Uma dessas críticas tem a ver com a existência de três clusters de perturbações da personalidade. O DSM coloca, por exemplo, a perturbação dependente e a perturbação histriónica em clusters diferentes, apesar da evidente proximidade entre as duas. Isto decorre, na realidade, do facto do DSM “arrumar” as perturbações mentais com base na expressão sintomática ou comportamental e não nas características internas dos sujeitos (veja-se Campos, 2011, 2012).

É verdade que, de forma positiva, a versão actual do DSM, o DSM-5 (American Psychiatric Association, 2013) apresenta na secção III, em Modelo alternativo para as perturbações da personalidade, uma proposta alternativa para o diagnóstico de perturbação da personalidade que envolve, justamente, uma disfunção ao nível do Self (identidade e Self-direction) e do relacionamento (empatia e intimidade). Note-se, no entanto, que na secção principal do manual continua a vigorar uma proposta categorial idêntica à do DSM-IV-TR, com três clusters de perturbações e pontos de corte fixos.

De facto, a distinção entre uma preocupação excessiva com o relacionamento e uma preocupação excessiva com a auto-definição é útil, não apenas para o estudo da psicopatologia, mas, também, para o processo psicoterapêutico. A proposta classificatória de Blatt, com base em critérios desenvolvimentais e psicodinâmicos, é importante para a intervenção terapêutica, porque assenta numa compreensão do funcionamento interno dos sujeitos.

Os estudos empíricos realizados por Blatt e colegas sobre mudança terapêutica são particularmente relevantes. Os pacientes, excessivamente preocupados com questões do relacionamento (anaclíticos) e os pacientes excessivamente preocupados com a auto-definição (introjectivos) mudam de forma diferente e respondem de forma diferente a diferentes tipos de intervenção e estratégias terapêuticas (Blatt, 1991, 1995, 2008). As mudanças clínicas em pacientes anaclíticos manifestam-se, primeiramente, na qualidade das relações interpessoais. As mudanças nos pacientes introjectivos ocorrem, sobretudo, ao nível da intensidade da expressão sintomática e na qualidade dos seus processos cognitivos. As mudanças nos pacientes anaclíticos tendem a ser lentas e subtis, enquanto nos pacientes introjectivos são mais rápidas e evidentes2 (e.g., Blatt, 2008; Blatt & Blass, 1992; Blatt et al., 2007; veja-se também Blatt & Felsen, 1993). Por outro lado, os pacientes anaclíticos parecem responder melhor a expressões de suporte por parte do terapeuta, enquanto os pacientes introjectivos parecem responder melhor a intervenções de cariz exploratório/interpretativo (e.g., Blatt, 2008; Blatt, Zuroff, Hawley, & Auerbach, 2010; Luyten & Blatt, 2013).

De forma relevante, Blatt sugere que os esquemas cognitivo-afectivos anteriormente descritos, não só são importantes no desenvolvimento psicológico e para compreender as diferentes formas de psicopatologia, mas também para o estudo do processo terapêutico. A mudança psicoterapêutica envolverá, muito provavelmente, uma reactivação do processo sinérgico de desenvolvimento (Blatt, 2008). As experiências interpessoais que ocorrem no contexto terapêutico contribuirão, porventura, para uma revisão do sentido do Self, o que irá permitir expressões mais evoluídas de relacionamento interpessoal. Estas, por sua vez, poderão contribuir para uma reedificação mais madura do Self (e.g., Blatt, 2008; Luyten, Blatt, & Mayes, 2012).

De facto, se as várias formas de psicopatologia implicam distorções nas representações objectais e do Self, e se vinculações seguras na infância resultam na construção de esquemas progressivamente mais evoluídos, então, faz sentido pensar que interacções construtivas entre paciente e terapeuta possam facilitar a revisão das representações mentais perturbadas (Blatt, 2008; Luyten & Blatt, 2013; Luyten et al., 2012). Experiências alternadas e reparadoras de vinculação e desvinculação, aproximação e afastamento no processo terapêutico poderão permitir uma progressiva eliminação das representações mentais disfuncionais e o desenvolvimento de novas representações, mais articuladas, diferenciadas e integradas do Self e dos outros (Blatt, 2008; Blatt, Auerbach, & Behrends, 2008).

 

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CORRESPONDÊNCIA

A correspondência relativa a este artigo deverá ser enviada para: Rui C. Campos, Departamento de Psicologia, Escola de Ciências Sociais, Universidade de Évora, Colégio do Espírito Santo, Largo dos Colegiais, 2, Apartado94, 7002-554 Évora, Portugal. E-mail: rcampos@uevora.pt

 

Com algumas modificações, este artigo constitui parte da lição apresentada pelo autor à Universidade de Lisboa para obtenção do título de agregado em Psicologia, na especialidade de Psicologia Clínica.

 

Submissão: 25/02/2016 Aceitação: 18/07/2016

 

NOTES

1 De referir que Luyten e Blatt (2011, 2013) elaboraram em torno desta questão e propuseram que as várias perturbações da personalidade se poderiam situar num espaço bidimensional, em quadrantes, definido pelos eixos ortogonais anaclítco e introjectivo.

2 Evidências recentes (Werbart, 2014), no entanto, sugerem que mudanças mais estáveis na estrutura mental podem ser mais difíceis de atingir em pacientes introjectivos do que em pacientes anaclíticos.

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