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Análise Psicológica

versão impressa ISSN 0870-8231

Aná. Psicológica vol.33 no.4 Lisboa dez. 2015

https://doi.org/10.14417/ap.1022 

As virtudes nas organizações

Miguel Pina e Cunha1, Arménio Rego2

1Nova School of Business and Economics, Universidade Nova de Lisboa

2Universidade de Aveiro

Correspondência

 

RESUMO

O termo “virtudes” andou arredado do léxico organizacional. Todavia, mais recentemente, uma vaga de interesse motivada por escândalos no mundo empresarial (particularmente no setor financeiro) trouxe as virtudes para o centro do palco. Neste artigo, discutimos a noção de virtude, apresentamos um quarteto de perspetivas complementares sobre a virtude enquanto processo organizacional, e discutimos formas possíveis de estimular a prática organizacional virtuosa numa perspetiva de comportamento organizacional.

Palavras-chave: Organizações, Virtudes, Ética organizacional.

 

ABSTRACT

Virtue as an organizational phenomenon has been ignored for a considerable period of time. Recently, however, a succession of scandals in the corporate world (particularly in the financial sector) brought the role of virtues back to the focus of research attention. In the article we discuss the notion of virtue, present four complementary perspectives on virtues as an organizational phenomenon and discuss how to stimulate virtuous organizational practice from an organizational behavior perspective.

Key words: Virtues, Organizations, Organizational ethics.

 

Introdução

“Para a virtude da discrição, ou de modo geral qualquer virtude, aparecer em seu fulgor, é necessário que faltemos à sua prática”

Carlos Drummond de Andrade

 

As organizações modernas, com destaque para as empresas, são uma das mais admiráveis forças de progresso social. Criam soluções que tornam a vida mais confortável, respondem a necessidades humanas fundamentais, e deliciam os consumidores com produtos desejáveis. Mas essas mesmas forças de progresso podem transformar-se em máquinas de destruição. Não apenas de “destruição de valor” mas também de destruição de valores e de confiança na economia e na sociedade. Algumas empresas e respetivos líderes têm um lado negro expresso de forma particularmente saliente nos comportamentos de liderança hubrísticos (Bollaert & Petit, 2010; Tett, 2014), no abuso, quando não na exploração do trabalho humano (Crane, 2013), e numa reveladora falta de amor ao próximo, mesmo que o próximo seja o colega do lado (Cunha et al., 2014). Em síntese: algumas empresas, no estrangeiro e em Portugal, têm oferecido deploráveis espetáculos de falta de escrúpulo ético, ou mesmo uma carência do mais elementar bom senso. O sociólogo Zygmunt Bauman resume o processo de forma lapidar, notando que a parceria entre organização e moralidade não tem sido pacífica (Bauman, 2014).

Felizmente, outras empresas, como a Unilever, assumiram o explícito desafio de serem organizações virtuosas (The Economist, 2014). No mundo académico, autores como Crossan, Mazutis e Seijts (2013) têm defendido a necessidade de incorporar as virtudes nos modelos de tomada de decisão gestionária. Não surpreende, por isso, que o tema das virtudes tenha reencontrado um lugar honroso na moderna teoria de gestão (e.g., Cameron, 2011; Crossan et al., 2013; Palanski, Kahai, & Yammarino, 2011; Rego, Cunha, & Clegg, 2012; Ribeiro, Rego, & Cunha, 2013) e do comportamento organizacional, nomeadamente (Cunha, Rego, & Lopes, 2013).

É neste quadro otimista que este texto se situa. Depois de brevemente definirmos o conceito de virtudes, tratamos de dois pontos essenciais. Primeiro: discutimos quatro formas de entender as virtudes em contexto organizacional: (1) as virtudes como disposições individuais; (2) as virtudes como interações generativas; (3) as virtudes como processos culturais (certas organizações estimulam o florescimento das virtudes); e (4) as virtudes como práticas (certas maneiras de trabalhar reforçam hábitos virtuosos). Segundo: sugerimos linhas de orientação prática que podem ajudar a desenvolver as virtudes nos indivíduos em geral, nos líderes e na organização.

 

O que são as virtudes?

As virtudes são qualidades pessoais que orientam os comportamentos para o bem comum (Arjoon, 2000). Tolentino de Mendonça (2014) definiu-as como forças que qualificam a existência. Fowers (2009, p. 1013) definiu virtude como “a forma de excelência que permite ao indivíduo prosseguir finalidades valorosas nas atividades quotidianas… pelo que a virtude não é a sua própria recompensa”. De modo mais “operacional”, pode afirmar-se que as virtudes representam o meio-termo, ou a média dourada, entre dois extremos baixos (Aristotle, 2011; Crossan et al., 2013; Wright & Goodstein, 2007). Por exemplo, a coragem é o meio-termo virtuoso entre a cobardia e a audácia perigosa e irresponsável. A humildade é o meio-termo entre a arrogância extrema e a completa falta de sentido de auto valor pessoal. A curiosidade é o meio-termo entre a total ausência de gosto pela descoberta e o conhecimento e a total indiscrição na forma de inquirir a realidade.

Quando adotadas coletivamente, as virtudes transformam-se em qualidades da organização e ajudam a desenvolver o músculo moral da mesma (Cameron & Winn, 2012). As virtudes são, pois, hábitos que se expressam na ação de uma forma autêntica e convicta. Isto é, são mais do que fazer as coisas bem-feitas (Kay, 2013). Para compreender a importância das virtudes é importante ultrapassar a ênfase que as sociedades colocam no desempenho, na eficiência e no alcance de objetivos. Simplificando: nem todo o elevado desempenho é bom desempenho.

Nonaka, Chia, Holt e Peltokorpi (2014) explicam o processo do seguinte modo. Um fabricante automóvel precisa de saber como fazer um carro bem feito (technê). Todavia, para fazer cada vez melhor os seus automóveis, não lhe basta esse conhecimento. Precisa também de cultivar uma disposição para a excelência, a qual o confronta com a finalidade última da sua atividade, que por sua vez estimula julgamentos e pensamentos informados pela virtude (phronesis). Nesse sentido, uma organização tecnicamente excelente pode ser eticamente medíocre. A sua competência técnica, se não for acompanhada dessa capacidade ética para interrogar o modo como as coisas são feitas, e porque são feitas, constitui uma insuficiência moral. Nesta perspetiva, falhar o alcance de um objetivo pode ser mais honroso que alcançá-lo – se, para alcançar o objetivo, tiverem sido violados princípios éticos e adotados modos de ação menos éticos.

Em suma: nem todo o sucesso é virtuoso, e o sucesso não virtuoso (i.e., vicioso) é um sucesso pouco recomendável. Ademais, há razões para supor que o sucesso não virtuoso pode acabar por redundar em fracasso, pelo menos a longo prazo. A virtuosa Toyota, ao deixar-se inebriar pelo sucesso e perdendo o sentido virtuoso de humildade que sempre a caraterizou, sofreu as consequências perversas que se conhecem (em termos de reputação e de rendimento) depois de ter tratado indevidamente os problemas de segurança que surgiram nos seus automóveis (Chowdhury, 2014).

 

Abordagens sobre as virtudes

O antes exposto requer, todavia, uma análise mais cuidadosa, sob pena de se considerar que a virtude é algo intrínseco a algumas pessoas e, por isso, imutável ou não aprendível. É o que faremos seguidamente ao tratamos as virtudes à luz de quatro abordagens: (Quadro 1) (1) a virtude como disposição (isto é, “inclinação” para atuar de modo virtuoso); (2) a virtude como interação generativa (i.e., resultante da aprendizagem pelo exemplo positivo), (3) a virtude como processo cultural (i.e., resultante da pressão de ambientes positivos); (4) a virtude como trabalho (i.e., resultante da prática quotidiana de uma abordagem moralmente equilibrada).

 

 

 

A virtude como disposição

As virtudes são frequentemente apresentadas como caraterísticas individuais naturais, como disposições ou fatores intra-individuais (Argandoña, 2014), um caráter moral (Cohen & Morse, 2014). Ou seja: as pessoas têm virtudes ou não têm. Quer estas virtudes provenham de traços de personalidade de base genética, quer de experiências educacionais, considera-se que o núcleo virtuoso reside na essência do indivíduo. Nesta perspetiva, a “boa maçã”, a “maçã” virtuosa, não polui as outras e, quando em posição de liderança, impede os liderados de seguirem caminhos não virtuosos. A perspetiva das virtudes como disposições individuais encontra expressão organizacional nos líderes éticos, nos dadores generosos e nos desviantes positivos.

 

Líderes éticos. Um dos exemplos de virtude intra-individual é proporcionado pelos líderes éticos. Trata-se de pessoas seguidoras de uma abordagem moralmente rica da realidade, expressando comportamentos alinhados com padrões morais universalmente válidos (Mayer, 2014). Estes líderes preocupam-se não apenas com aquilo que alcançam e que ajudam as suas organizações a alcançar, mas também com a forma como o fazem. Isto é, trata-se de líderes equilibrados e capazes de perceber que a liderança importa não apenas por aquilo que consegue mas pela forma moralmente justa adotada para alcançar tal resultado. O fenómeno da liderança ética tem sido abundantemente tratado na literatura como uma das fontes de moralidade organizacional (Schaubroeck et al., 2012).

 

Dadores generosos. Algumas pessoas são virtuosas por expressarem uma genuína orientação para o bem comum, sem expectativas de reciprocidade. Grant (2013) apelida estas pessoas de “dadores”. Os dadores são movidos pela virtude da generosidade e desempenham papéis críticos nas organizações. As pessoas generosas ajudam os outros, reforçam o capital social e psicológico das suas organizações e tornam as suas organizações melhores lugares. Em lugares de liderança, estas pessoas atuam frequentemente como coaches genuinamente apaixonados pelo desenvolvimento dos outros ou como colegas normalmente prestáveis e disponíveis (Cunha, Afanador, & Rego, 2015). Os dadores, quando sensatos, geram a confiança e a boa vontade nos seus interlocutores, ao contrário dos recebedores – que geram retração e desconfiança, pois os interlocutores receiam estar a ser instrumentalizados.

 

Desviantes positivos. As virtudes também encontram expressão no comportamento daqueles que se desviam deliberadamente das práticas habituais da organização ou do setor, funcionando como desviantes positivos. O caso de Brad Katsuyama e da sua equipa no mundo de Wall Street, descrito no livro Flash Boys (Lewis, 2014), constitui um exemplo paradigmático. Estas pessoas desejam alterar os modos de funcionamento da organização ou setor, tornando-os melhores. Adotam comportamentos de liderança e de subversão das atuais regras, com uma intenção virtuosa. Estes agentes de liderança são, por vezes, chamados de radicais temperados (Creed, 2003; Meyerson & Scully, 1995). Move-os o desejo de melhorar a organização e atuam em prol da mesma e não de agendas pessoais focadas no auto-interesse.

 

A virtude como interação generativa

Numa segunda perspetiva, as virtudes podem ser adquiridas mediante a experiência de interações virtuosas, por observação, “vicariantemente”. Nesta perspetiva, a virtude é menos um fator intrínseco e intra-individual e mais um processo interacional no qual interações com pessoas virtuosas expressam um caráter generativo capaz de alimentar círculos virtuosos. Eis dois exemplos de processos generativos virtuosos: o exemplo dos líderes e as interações construtivas.

 

Exemplo dos líderes éticos. A virtude resulta da observação e da aceitação de um bom exemplo. Um líder virtuoso diminui o espaço para que os outros não o sejam. A interpretação que os subordinados fazem do comportamento do chefe é a de que a organização valoriza os comportamentos daqueles que promove para posições de liderança: se uma pessoa virtuosa foi promovida, as virtudes contam; se, pelo contrário, a organização promove pessoas destituídas de preocupações virtuosas, então as virtudes são irrelevantes, ou mesmo obstáculos àquilo que é preciso fazer. O que significa que os líderes dão sempre o exemplo – mesmo que estejam a dar exemplos errados.

 

Interações construtivas. As virtudes são forças voluntárias (Hackett & Wang, 2012) adquiridas e treinadas conscientemente, mais que expressões de uma bondade inata e primordial. Por essa razão, a exposição a pessoas e organizações virtuosas, e a busca de interações construtivas (i.e., com potencial generativo) podem constituir um caminho para o reforço da virtude. Algumas organizações e equipas são fontes de interações virtuosas – pelo que atraem as boas “maçãs” e expelem as más “maçãs”. Diferentemente, nos coletivos viciosos, as boas “maçãs” são expelidas – ou “apodrecem”. As interações positivas são a unidade sobre a qual se constrói a virtude organizacional, energizando o sistema moral da organização.

 

A virtude como processo cultural

Numa formulação distinta, as virtudes podem ser tomadas como o resultado de processos de socialização e de aculturação. As organizações podem desenvolver traços culturais que estimulam a expressão de comportamentos virtuosos. Tornam-se elas próprias virtuosas, i.e., dotadas de ambientes moralmente ricos capazes de produzir um impacto positivo dentro e fora das suas fronteiras (Stephens, Hephy, Carmeli, Spreitzer, & Dutton, 2013). Quando um hospital decide seguir a exortação de Florence Nightingale, segundo a qual “o primeiro requisito para um hospital é que não deve magoar o doente”, está a enfatizar uma cultura rica em compaixão, empatia, generosidade. Uma organização é virtuosa não necessariamente porque os seus empregados individualmente sejam virtuosos, mas porque a organização impõe regras de conduta virtuosas às quais os indivíduos se adaptam – ou não se adaptam e são removidos (Schneider, 1987). Nesta perspetiva, é na boa “barrica”, já não na boa “maçã”, que reside o coração virtuoso da organização. Ou seja: cada pessoa pode construir e reforçar a sua virtude pessoal escolhendo contextos nos quais a probabilidade de esse reforço acontecer é maior. Por isso, a reputação ética constitui uma importante fonte de informação sobre um empregador – e uma reputação virtuosa atrai empregados com maior potencial virtuoso. Expomos seguidamente três fatores edificadores de processos culturais virtuosos.

 

Explicitação de valores virtuosos. Muitas organizações procedem à identificação dos seus valores chave. Enunciar valores não se traduz necessariamente em práticas virtuosas. Um exemplo extremo: quando Gordon Gekko, no filme Wall Street, anuncia que a ganância é boa, não está a contribuir para a criação de uma organização virtuosa, embora esteja claramente a enunciar um valor. Quando o desempenho “excelente” é enaltecido independentemente do modo como é alcançado, a organização enuncia um valor, embora não necessariamente uma virtude. Quando, todavia, uma organização enfatiza a compaixão ou a generosidade (Amabile, Fisher, & Pillemer, 2014), está a sublinhar a importância da virtude. Naturalmente, a explicitação de valores virtuosos apenas é eficaz se se traduzir em práticas virtuosas, designadamente as dos líderes. Diferentemente, a dissonância entre os valores (virtuosos) declarados e as práticas (viciosas) adotadas gera cinismo, desconfiança e comportamentos de retração.

 

Histórias virtuosas. A ênfase colocada nas virtudes pode, subsequentemente, ser transmitida sob a forma de histórias. As histórias contadas numa comunidade podem enfatizar diferentes processos. Em alguns casos, são contadas histórias de líderes humildes que deixam os outros brilhar; outras histórias mostram um mundo em que os vencedores ganham tudo. Algumas organizações contam histórias de apreciação e humildade; outras relatam contos de desinteresse pela condição do outro e de humilhação (veja-se, voltando ao cinema, O Lobo de Wall Street). A MindTree, uma empresa tecnológica de Bangalore, distribui aos seus novos colaboradores um pequeno livro com histórias, em vez de um código ético. Essas histórias enfatizam a importância da ética remetendo para casos concretos.

 

As virtudes como verdades profundas. No limite, se a cultura for afinada por tempo suficiente, as virtudes podem tornar-se pressupostos organizacionais profundos. Tornam-se gramáticas culturais que guiam os pensamentos, as conversas e os comportamentos. Se as virtudes apenas podem ser desenvolvidas pela prática, a sua transformação em verdades profundas, em pressupostos culturais, ajuda a explicar e a justificar a sua prática recorrente. A ação cultural apoia-se em pressupostos, sendo os pressupostos respeitadores da virtude o alicerce da organização virtuosa.

 

A virtude como trabalho

A corrente dos estudos organizacionais positivos oferece uma quarta abordagem sobre as virtudes: como trabalho. As virtudes, nesta perspetiva, não são um fator intra-individual, nem um traço cultural, mas antes uma prática, uma forma de trabalho, aquilo que a organização faz e que resulta na expressão de algo que é bom em si mesmo (Gehman, Treviño, & Garud, 2013). Neste sentido, a única forma de ser virtuoso é praticando a virtude e não apregoando uma cultura de belas virtudes que não sai dos documentos nem dos discursos proferidos em salões alcatifados – ou, de resto, de artigos sobre o tema, incluindo este. Como escreveu Naguib Mahfouz, “É claramente mais importante tratar bem o nosso próximo do que estar sempre a rezar, a jejuar e a tocar com a cabeça num tapete de oração.” Que o notório bandido Al Capone tenha um dia afirmado que “Devemos manter os Estados Unidos íntegros, a salvo e livres da corrupção” ilustra bem o ponto.

 

Exercitar o músculo moral. As virtudes, explicou Aristóteles (2011), ocupam um meio-termo, são uma média dourada. Esta média dourada é um exercício diário: nunca está feito, faz-se sempre. Neste sentido, ninguém é virtuoso, porque a pessoa virtuosa pode deixar de o ser ou não o ser a tempo inteiro. A virtude é um trabalho em processo, contínuo e inacabado. Como no caso do Frei Genebro de Eça de Queirós (Queirós, 2008), as virtudes passadas podem ser ofuscadas por uma má ação presente. As forças morais têm de ser mantidas em forma e constantemente revitalizadas.

 

Manter a média dourada. O exercício prático das virtudes implica a capacidade de manter os equilíbrios aristotélicos que aproximam o comportamento da média dourada. A média dourada é uma dualidade vibrante e não um meio-termo morno entre dois extremos (Eisenhardt, 2000). A capacidade de alcançar e de manter este equilíbrio representa um exercício diário. Implica a articulação de regras gerais às contingências específicas. Requer capacidade de conhecimento das regras e conhecimento de si próprio. É um exercício difícil porque os extremos podem ser tentadores. O líder poderoso pode usar o seu fiat para resolver um assunto, em vez de perder tempo a convencer os seus subordinados; a pessoa humilde pode ter de contrariar a sua modéstia para defender assertivamente um ponto de vista. Ou seja, para se manter a média dourada, pode ser necessário esticar a corda da virtude.

 

Linhas práticas de orientação

Considerando a complexidade das virtudes e o seu caráter aprendido na prática, o que podem as organizações fazer para criar hábitos virtuosos? Eis um elenco de possibilidades.

 

Identificar e cultivar o propósito final da organização

As organizações podem cultivar a virtude questionando-se sobre o modo como se movem na direção do seu objetivo último. Podem perguntar: (1) qual o propósito da organização? e (2) como se aproxima a organização desse propósito? Desta forma, a organização fica dotada de uma missão, mais do que apenas de objetivos. Os objetivos não estimulam necessariamente a reflexão profunda. Diferentemente, a reflexão da organização sobre a sua missão/propósito requer o confronto com a sua razão de ser. Naturalmente, a virtuosidade de uma organização dependerá da virtuosidade da sua missão. Missões virtuosas podem ser um poderoso fator motivador e um nutriente do significado do trabalho das pessoas. Numa empresa que produz equipamentos médicos, “salvar vidas” é uma missão bastante distinta de “criar valor para o acionista”. Mas a investigação mostra que a missão “salvar vidas” pode ser uma maneira mais eficaz de “criar valor” do que a missão “criar valor” (Confino, 2012; Kay, 2010; Waldman & Siegel, 2008).

 

Considerar os resultados mas também os comportamentos que a eles conduziram

A existência de um propósito explícito torna mais frutífera a discussão da prática organizacional. Como procura a organização concretizar a sua missão? Aceita que os fins justificam os meios? Vê o alcance dos resultados como uma “vaca sagrada”, logo indiscutível? As pessoas aceitam “cortar caminhos” em nome do alcance dos objetivos? Os próprios objetivos estimulam comportamentos eticamente questionáveis? Infelizmente, a realidade mostra que algumas organizações respondem afirmativamente a estas questões – levando pessoas boas a fazer coisas más (Bazerman & Tenbrusel, 2011), por vezes em nome do alcance dos objetivos e em benefício da organização (Ordoñez, Schweitzer, Galinsky, & Bazerman, 2009). Um delegado de informação médica de Lisboa, por exemplo, confirmou que burlou o Estado “para atingir objetivos do laboratório” (Borja-Santos, 2014). Convém, pois, que as boas pessoas não desenhem os processos que conduzem a becos éticos sem saída.

 

Treinar a virtude como disposição natural

A virtude é mais que um “traço” ou um fator genético: é um hábito, desenvolvido e trabalhado, refletido. Ou seja, as pessoas não são virtuosas porque nasceram virtuosas. São-no porque foram treinadas – na família, na escola, nas instituições e na empresa – para o serem. Com o treino, a reflexão e o exemplo, a virtude pode evoluir para se tornar uma disposição natural. Mas esta naturalidade é o resultado de trabalho contínuo. Mesmo pessoas treinadas na virtude podem desenvolver novos hábitos se forem colocadas em “más barricas”. Como se costuma dizer, o hábito faz o monge.

 

Cultivar a reflexividade “phroneticamente”

Sófocles explicou “como é terrível conhecer, quando o conhecimento não favorece quem o possui”. Caminhar no sentido das virtudes significa ser capaz de aceitar o conhecimento e procurá-lo mesmo quando ele não favorece o seu possuidor. A criação de organizações virtuosas implica a capacidade de pensar o nosso próprio comportamento e as suas causas, bem como o grau em que ele facilita o bem comum. A capacidade de auto-liderança assume, por isso, contornos críticos: bons líderes não são apenas os que influenciam os outros, mas os que se lideram a si mesmos no sentido de usarem o seu autoconhecimento (Rego & Cunha, 2014) de uma forma alinhada com o bem comum.

 

Observar o caráter dos candidatos a líderes

As empresas têm revelado grande preocupação, no passado recente, com as competências dos seus colaboradores, particularmente com as daqueles que ocupam posições de liderança. Compreende-se que assim seja. Mas é importante que escrutinem também, cuidadosamente, as forças de caráter daqueles a quem oferecem liderança. Aristóteles apresentou as principais forças de caráter incluindo a integridade, honestidade, coragem, justiça. O caráter decorre da vida que se leva, da reflexão sobre essa vida, da receção de feedback e de criticismo e da consequente melhoria do modo como se vive.

As organizações devem, pois, escrutinar cuidadosamente as questões de caráter, tanto como as competências técnicas. Para o exercício de liderança ao mais alto nível, pode até ser mais relevante atender ao caráter do que às competências técnicas: à medida que se ascende na organização, o caráter tende a ser mais importante que a competência técnica propriamente dita (Kets de Vries, 2014). De outro modo: para um gestor de topo, o caráter torna-se a mais importante competência técnica, dados os seus papéis como faróis, exemplos e árbitros. Falhas no escrutínio desta variável estarão porventura relacionadas com as recentes crises no setor financeiro (Gandz, Crossan, Seijts, Sapp, & Vandenbosch, 2009). Daí a recomendação do relatório da SHRM (Society for Human Resources Management) Foundation (Zaccaro, 2010) sobre a seleção de executivos (p. 8): “Considere sempre a importância do caráter, da ética e da integridade”.

 

Criar sistemas de pesos e contrapesos

Mesmo que o caráter dos líderes esteja testado, é crucial compreender a psicologia do poder. Líderes com caráter podem sucumbir às tentações do poder. Tornam-se mais prepotentes, menos sensíveis e menos interessados nos pontos de vista dos outros – gerando toxicidade (Tett, 2014). Há razões para supor que Bill Gross, fundador da PIMCO (uma grande empresa de gestão de ativos) e líder bem-sucedido da mesma durante décadas, terá sido forçado a resignar porque a sua arrogância se terá tornado insuportável. O seu egocentrismo chegou ao ponto de, nas cartas enviadas aos investidores, descrever com entusiasmo as atividades dançantes com a sua mulher (“Travolta teria ficado orgulhoso”, afirmou; Foley, 2014). Chegou mesmo a surgir numa conferência usando óculos de sol e comparando-se a Justin Bieber. Escreveu uma investment letter ao seu gato morto (Foley & Braithwaite, 2014). A virtude de outrora foi toldada pela habituação ao poder e pela arrogância “hubrística” e prepotente.

Para evitar o impacto eventualmente perverso da psicologia do poder, importa que o líder cultive níveis elevados de segurança psicológica nas equipas que lidera. Sem tal segurança, as pessoas não dizem o que pensam mas aquilo que lhes parece que os seus chefes querem ouvir. É igualmente importante que a organização contenha mecanismos de pesos e contrapesos, de modo a desconcentrar o poder e a obrigar à prestação de contas. Estas precauções estimulam o comportamento prudente e contrariam a hubris.

 

Comentário final

As virtudes praticam-se, tanto ao nível individual como no plano organizacional. A combinação de esforço pessoal, cultura organizacional e trabalho virtuoso desenham um triângulo propiciador de organizações virtuosas. As virtudes são, assim, a expressão comportamental de valores praticados no quotidiano e não respostas extraordinárias em momentos eticamente perturbadores. Ou seja, as organizações genuinamente virtuosas fazem dos hábitos de orientação para o bem-comum a sua segunda pele e cuidam dessa pele diariamente.

 

Referências

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CORRESPONDÊNCIA

A correspondência relativa a este artigo deverá ser enviada para: Miguel Pina e Cunha, Nova School of Business and Economics, Universidade Nova de Lisboa, Campus de Campolide, 1099-032 Lisboa. E-mail: mpc@novasbe.pt

 

Submissão: 11/02/2015 Aceitação: 08/07/2015

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