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Análise Psicológica

versão impressa ISSN 0870-8231

Aná. Psicológica vol.33 no.3 Lisboa set. 2015

https://doi.org/10.14417/ap.904 

Conciliação família-trabalho vivida a dois: Um estudo qualitativo com casais com filhos pequenos

Mariana Mendonça1, Paula Mena Matos1

1Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto

Correspondência

 

RESUMO

O presente estudo, de caráter exploratório, pretende conhecer o modo como casais com crianças pequenas conciliam a vida profissional e familiar, recorrendo a uma metodologia qualitativa. A amostra foi constituída por 8 casais de duplo emprego, 16 participantes, com filhos na primeira infância ou em idade pré-escolar, com os quais foi realizada individualmente uma entrevista semiestruturada, construída para o efeito. Na análise de conteúdo utilizou-se o QSR NVivo 8. Os resultados apontam para a existência de experiências de compensação, segmentação e sobretudo de interferência na conciliação entre o trabalho e a família. Para além das estratégias mais funcionais, emergiram nos discursos outras do domínio da intimidade, nomeadamente, a importância da atenção e respeito pelo outro, da autenticidade e do self-disclosure para um equilíbrio positivo do envolvimento familiar e profissional. O parceiro romântico é descrito como base segura e porto seguro, sugerindo que a vinculação ao companheiro amoroso e a intimidade têm um papel relevante no processo de conciliação trabalho-família.

Palavras-chave: Conciliação trabalho-família, Intimidade, Casal.

 

ABSTRACT

This exploratory study aims to understand the balance between work and family domains in dual earner couples, with toddlers and preschoolers, using a qualitative method. The sample was composed by 8 couples, 16 participants. Each was individually interviewed using a semi-structured interview, designed by the authors. Results suggested that participants experience compensation, segmentation and specially spillover in their attempt to balance work and family. Some conciliation strategies emerged associated with intimacy dimensions beyond the more functional ones, such as care and respect, authenticity and self-disclosure with the romantic partner. The spouse is referred as a secure base and a safe haven, suggesting that attachment and intimacy have a role in the couple’s work-family conciliation process.

Key-words: Work-family conciliation, Intimacy, Couple.

 

Introdução

Ao longo do ciclo vital, o indivíduo é confrontado com diferentes desafios e tarefas desenvolvi mentais. As necessidades de conciliação dos vários contextos de vida assumem, também, diferentes características ao longo do desenvolvimento. No presente trabalho centramo-nos na segunda etapa do ciclo familiar (Relvas, 2006), associada ao nascimento dos filhos, transição especialmente desafiante para o indivíduo e para o casal. Aprender a ser pai ou mãe é um processo particularmente exigente e envolve uma necessidade de reorganização familiar, pela definição de papéis parentais e pela redefinição das fronteiras em relação ao casal e ao exterior (Relvas, 2006). Devido à elevada saliência atribuída ao papel parental, por vezes, os casais sentem dificuldades em delimitá-lo no tempo e no espaço, correndo o risco de desinvestir noutras áreas igualmente importantes, das quais se destaca a vivência da conjugalidade em pleno (Alarcão, 2006). Por outro lado, e porque as necessidades desenvolvimentais dos filhos também imprimem exigências específicas aos cuidados dos pais e à dinâmica familiar (Carter & McGoldrick, 2005), optámos por centrar este estudo em casais com filhos na primeira infância ou em idade pré-escolar. Nesta etapa da vida das famílias, a necessidade de disponibilidade física e psicológica para o exercício da parentalidade coloca desafios particulares à conciliação trabalho-família.

As exigências colocadas aos casais têm vindo a ser alteradas ao longo do tempo, nomeadamente devido a mudanças socioculturais. De facto, nas últimas décadas, temos assistido a um elevado número das famílias em que ambos os cônjuges desempenham funções laborais remuneradas (Matias, Fontaine, Simão, Oliveira, & Mendonça, 2010). No caso português, a década de 60 marcou uma mudança no paradigma vigente, com a mulher a encetar um movimento de participação ativa nas esferas até então tradicionalmente masculinas (Aboim, 2007) e, por conseguinte, a inserção da mulher no mercado de trabalho no nosso país é hoje evidente. Os dados mostram que, ao nível nacional, a população empregada é constituída por 52% e 48% de homens e mulheres, respetivamente (INE, 2012). As motivações económicas são importantes, mas não explicam todo o fenómeno, uma vez que podemos identificar questões de realização profissional e pessoal, bem como de manutenção da autoestima (Rice, 1979).

Na atualidade, tanto homens como mulheres desempenham funções laborais exigentes, nomeadamente em termos do número de horas de trabalho. Ainda assim, parecem permanecer algumas diferenças ao nível do que é socialmente expectável na vida familiar para cada um dos géneros. Por exemplo, encontram-se diferenças no trabalho doméstico, sendo que, apesar do crescente envolvi -mento do homem neste domínio, a responsabilidade continua a ser predominantemente feminina (Aboim, 2007). Relativamente às tarefas do âmbito da parentalidade, alguns casais procuram dividir responsabilidades de forma igualitária (Deutsch, 2001). Contudo, as tarefas concretizadas pelos pais e pelas mães parecem ser qualitativamente diferentes: se as mães tendem a assumir uma maior responsabilidade pelos cuidados diretos e indiretos, os pais revelam-se mais ativos nas áreas da disciplina e da brincadeira e lazer no exterior (Deutsch, 2001; Pimenta, Veríssimo, Monteiro, & Costa, 2010). Estas especificidades levam-nos a refletir sobre o conceito de identidade de género. Nesta época de mudança, em que se espera um crescente envolvimento do homem no cuidado dos filhos, bem como a sua participação nas tarefas domésticas, persiste a associação destas mesmas tarefas a valores tendencialmente percecionados como femininos (nomeadamente, a afetividade e a passividade), contrapondo-se à masculinidade frequentemente associada ao meio laboral (Aboim, 2007).

Por tudo isto, as famílias em que ambos trabalham deparam-se com um conjunto de exigências que implicam uma articulação dos diferentes contextos em que se inserem e dos diferentes papéis (conjugal, parental, profissional) que assumem. Não obstante, apesar das múltiplas responsabilidades e dificuldades, estes casais parecem ser geralmente saudáveis e bem-sucedidos (Haddock, Zimmerman, Current, & Harvey, 2008; Haddock, Zimmerman, Ziemba, & Current, 2001). Mais, alguma investigação aponta para o facto de os benefícios que retiram da conciliação dos vários papéis parecerem sobrepor-se às dificuldades existentes (Matias et al., 2010; Veríssimo, Pimenta, Borges, Costa, Monteiro, Torres, & Martins, 2013).

Ao longo do tempo, as relações entre trabalho e família têm vindo a ser alvo de diferentes modelos explicativos na literatura. O modelo da compensação define as experiências dos dois domínios como antitéticas, ou seja, pressupõe que estes se relacionam inversamente (Evans & Bartolome, 1984). Assim, é esperado que, perante condições insatisfatórias numa das esferas, os indivíduos respondam com um maior envolvimento no outro contexto. Um segundo modelo assenta na hipótese da segmentação, que enfatiza a separação do trabalho e da família na vida individual, assumindo que são domínios distintos, psicológica e fisicamente e, portanto, independentes (Elizur, 1986). Por fim, encontramos o modelo da interferência (ou spillover), que assume que as experiências num domínio influenciam as experiências do(s) outro(s) em que o indivíduo está envolvido (Sumer & Knight, 2001).

Sumer e Knight (2001) sugerem que estes três processos (compensação, segmentação e interferência) não são mutuamente exclusivos, pelo que é possível que alguns aspetos da vida familiar e profissional sejam mais sujeitos à interferência, enquanto outros sejam mais propensos à segmentação ou à compensação. Os autores sugerem, ainda, que estas dinâmicas podem diferir entre indivíduos, bem como no mesmo indivíduo ao longo do tempo, estando associadas a dimensões distintas, quer da personalidade, quer do contexto (Sumer & Knight, 2001).

A família e o trabalho são dois contextos que exigem um elevado envolvimento pessoal e, como tal, podem ser responsáveis pela vivência de alguma tensão por parte daqueles que os conjugam. O stress, os constrangimentos de tempo e o aumento da pressão experienciada podem contribuir para a experiência de emoções negativas que são, por sua vez, transportadas para os contextos de interação do indivíduo (Rothbard, 2001). Ainda que o estudo do conflito tenha vindo a prevalecer na literatura, outros autores falam de uma interferência positiva, facilitação ou enriquecimento (Carlson, Kacmar, Wayne, & Grzywacz, 2006; Greenhaus & Powell, 2006; Rothbard, 2001). Assim, o conceito de enriquecimento aplica-se a toda a extensão de experiências de um papel que melhoram a qualidade de vida noutro papel e insere-se numa lógica da expansão de energia (Marks, 1977). Esta perspetiva defende que o ser humano não dispõe de uma quantidade fixa de tempo e energia e que, pelo contrário, esta poderá ser expandida com o envolvimento do mesmo em diferentes domínios (Greenhaus & Powell, 2006).

Greenhaus e Powell (2006) propõem que o enriquecimento pode ocorrer por duas vias: a instrumental e a afetiva. A primeira acontece quando um recurso gerado no papel A é diretamente aplicado no papel B, isto é, quando as capacidades, habilidades e os valores desenvolvidos num dos domínios (trabalho ou família) são aplicados diretamente e com sucesso noutro papel (família ou trabalho). O enriquecimento afetivo, por sua vez, baseia-se na transferência do afeto ou emoção positivos de um papel para o outro. Neste caso, um recurso gerado num dos papéis pode produzir no indivíduo afeto positivo, o que, por sua vez, contribuirá para o elevado desempenho e afeto positivo no outro papel.

Importante referir que as relações entre trabalho e família se fazem pautar por bidirecionalidade, independentemente de nos centrarmos numa lógica de conflito ou de enriquecimento (Greenhaus & Powell, 2006). Por outro lado, dada a complexidade das dinâmicas inerentes ao envolvimento no trabalho e na família, o enriquecimento e o conflito surgem como construtos independentes, podendo coocorrer. Assim, é possível que um indivíduo experiencie simultaneamente interferências negativas e positivas entre as duas esferas (Rothbard, 2001).

Tendo em conta a elevada prevalência de famílias em que ambos trabalham, seria importante o estudo mais aprofundado das questões da conciliação trabalho-família, nomeadamente no que diz respeito a condições que favorecem a vivência positiva da articulação entre os contextos familiar e profissional. Alguns autores ressaltam esta lacuna na literatura, concluindo que muitas das estratégias propostas para a conciliação eficaz dos domínios do trabalho e da família parecem pouco adaptadas às necessidades reais das famílias (Matias et al., 2010; Vieira, Ávila, & Matos, 2012).

Neste contexto, o presente trabalho assume-se como exploratório e teve como ponto de partida as seguintes questões de investigação:

 

1) Como vivem os casais participantes do estudo a articulação das exigências do trabalho e da família?

2) Que estratégias usam estes casais na articulação das esferas do trabalho e da família?

3) Como mantêm os casais em estudo a proximidade emocional no dia-a-dia?

4) Qual o papel da intimidade no casal, na articulação das esferas do trabalho e da família?

 

Método

 

Participantes

A amostra foi constituída por 8 casais heterossexuais (16 participantes), em que ambos os cônjuges desempenhavam uma atividade profissional remunerada a tempo inteiro. Todas as famílias tinham pelo menos um filho com idade inferior a 6 anos. Pretendíamos conhecer a realidade de famílias que não tivessem iniciado a transição para o ensino formal do primeiro ciclo, pela consciência de que, nesta fase, surgem diferentes dimensões do cuidar (e.g., o apoio nas tarefas escolares) e uma marcada abertura ao sistema extrafamiliar (Relvas, 2006).

A idade dos homens compreendia-se entre os 33 e os 40 anos, com uma média de 36,25 anos (DP=2,19), e a das mulheres entre os 31 e os 41 anos, com uma média de 35,13 (DP=3,3). O tempo médio de relação amorosa era de 11,8 anos (DP=4,9) e o tempo médio de coabitação com o parceiro amoroso de 8,4 anos (DP=3,3). Quatro casais tinham apenas um filho, 2 casais tinham 2 filhos e 2 casais tinham 3 filhos. As idades dos filhos variam entre 6 meses e 17 anos, tendo todos os casais filhos na primeira infância ou em idade pré-escolar, sendo que dois casais tinham ainda um filho adolescente.

A escolaridade dos participantes distribuía-se em 9º ano (M=3; F=1)1, 12º ano (M=2; F=0), licenciatura (M=2; F=7) e pós-graduação (M=1; F=0). De acordo com a Classificação Internacional de Ocupações (International Standard Classification of Occupations), a amostra inclui 7 profissionais de ensino, 4 trabalhadores de serviços e de vendas, 2 profissionais administrativos de serviço público, 2 artífices e trabalhadores similares, e 1 profissional de saúde. Os participantes eram da zona do Porto e de Leiria.

O procedimento de seleção da amostra foi realizado por conveniência, na medida em que os participantes foram selecionados por cumprirem os critérios definidos, recorrendo-se também ao método de “bola de neve”. Assim, os critérios de inclusão englobavam: (1) coabitar com o companheiro amoroso, independentemente de serem casados ou de viverem em união de facto, (2) ter pelo menos um/a filho/a na primeira infância ou em idade pré-escolar, (3) ambos os cônjuges exercerem uma atividade profissional remunerada a tempo inteiro.

 

Instrumento

Tendo como objetivo principal estudar o modo como vivem estes casais a articulação trabalho-família, optou-se por uma metodologia qualitativa, de modo a aceder ao relato das experiências vividas pelos casais e os significados construídos em torno delas. Esta opção metodológica prende-se com o objetivo de alargar o conhecimento sobre o tema, validando a multiplicidade de experiências possíveis, por contraste com a necessidade de testagem de hipóteses concretas. A análise não se centrou na quantificação dos dados qualitativos, mas no recurso a métodos não matemáticos de interpretação, com o objetivo de exploração de conceitos e relações nos dados, posteriormente organizados num esquema de interpretação teórica (Strauss & Corbin, 1998).

Recorreu-se, deste modo, a uma entrevista semiestruturada, construída para o presente estudo (Mendonça & Matos, 2015)2. Para além de recolher alguns dados demográficos (idade dos participantes, escolaridade, profissão, número e idades dos filhos, duração da relação amorosa e tempo de coabitação), a entrevista encontrava-se dividida em diferentes áreas. A primeira estava relacionada com o trabalho, com questões que procuravam explorar o enquadramento do mesmo na vida do participante (e.g., “Há quanto tempo tem este trabalho?”; “Gostaria de me descrever um pouco o seu trabalho? Fale-me do que faz.”), bem como os significados atribuídos ao mesmo (e.g., “O que significa o trabalho para si? O que lhe traz?”; “Em que medida está satisfeito com a sua vida profissional? Porquê?”). Exploraram-se, ainda, questões associadas à realização e satisfação profissionais e a perceção sobre o trabalho do companheiro romântico (e.g., “Como é o trabalho do seu marido? Costumam falar do trabalho?”).

A segunda temática da entrevista debruçou-se sobre a vida familiar, na qual se procurava compreender as satisfações e exigências associadas ao papel parental e as especificidades das próprias crianças (e.g., “Fale-me um pouco dos seus filhos.”; “Em que medida está satisfeito enquanto pai/mãe? Gostaria que algo fosse diferente?”). Exploraram-se aspetos da transição para a parentalidade e da rotina familiar (e.g., “Sente que a sua vida familiar tem mudado ao longo do tempo? Em que medida?”). Algumas questões procuravam compreender a história da relação conjugal (e.g., “Como é o seu marido/mulher?”; “Costuma conversar sobre as dificuldades com o seu companheiro? Costumam conversar sobre o modo como se sentem?”), bem como eventuais mudanças sentidas ao longo do tempo (e.g., “Fale-me do seu casamento. Identifica mudanças na relação desde o início?”).

Por fim, era abordada a temática da conciliação quer diretamente (e.g. “Como é que os dois equilibram as exigências do trabalho e da família? O que faz cada um?”) quer através da apresentação de cenários da vida quotidiana (e.g., “Imagine o fim de um dia normal de trabalho. Gostava de me descrever como é quando chega a casa?”; “Que receitas daria a outros casais para lidarem com as responsabilidades?”).

A entrevista qualitativa pressupõe o entrevistado como construtor de significados, ativo na criação do conhecimento (Gubrium & Holstein, 2001). Deste modo, pretendeu-se uma abordagem aberta e flexível, com o objetivo de fazer emergir informação da experiência dos casais, libertando as questões de qualquer caráter prescritivo. A análise de conteúdo foi realizada com apoio do programa QSR NVivo 8.

 

Procedimento

Realizou-se um primeiro contacto telefónico, no qual se apresentavam os objetivos do estudo e se esclareciam eventuais dúvidas. Caso o casal concordasse participar, agendava-se uma data para a entrevista, num horário conveniente para ambos os cônjuges. Os participantes eram informados acerca da possibilidade de realização da entrevista nas instalações da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto (FPCEUP), mas o local era, em última instância, definido pelos mesmos. Assim, as entrevistas de dois casais foram realizadas num gabinete de consultas do Serviço de Consultas de Psicologia da FPCEUP, enquanto outras três tiveram lugar na casa dos participantes. Um dos casais solicitou, ainda, a realização das entrevistas numa sala do seu local de trabalho e outros dois em espaços públicos.

As entrevistas foram administradas aos elementos do casal individualmente e uma imediatamente a seguir à outra, controlando-se assim a possibilidade de partilha de informações antes do segundo elemento ser entrevistado. Pretendia-se, desta forma, garantir uma maior genuinidade das respostas e uma posterior análise diádica menos contaminada. Realizaram-se gravações áudio das entrevistas para uma maior fidelidade no processo de análise dos dados. Antes de se iniciar a entrevista, apresentou-se, oralmente e por escrito, o objetivo do estudo, afirmando o caráter confidencial e voluntário da participação, e a possibilidade de desistência a qualquer momento da entrevista. Os participantes tiveram igualmente a informação de que os dados iriam ser unicamente utilizados para fins de investigação científica. Os participantes preencheram um consentimento informado relativamente à sua participação no estudo e à autorização para registo áudio das entrevistas.

As entrevistas tiveram uma duração de aproximadamente 90 minutos e procuraram abordar várias questões da vida profissional e familiar. Numa tentativa de adequar as entrevistas, o guião inicial da entrevista foi testado com um casal e reformulado, com o objetivo de tornar as questões mais claras.

As dezasseis entrevistas foram integralmente transcritas e um primeiro juiz realizou a análise de conteúdo, criando um sistema hierarquizado de categorias e suas componentes, com recurso ao QSR NVivo 8. O nível de análise do presente estudo foi o tema enquanto unidade semântica. A unidade de contexto também foi considerada nas codificações realizadas. Deste modo, a seleção dos excertos das entrevistas procurou captar a mensagem subjacente ao discurso global sobre a temática (Bardin, 1977). As transcrições integrais das entrevistas foram lidas por um segundo juiz e o sistema de categorias inicialmente construído foi discutido e reformulado, em conjunto, para uma maior aproximação aos discursos dos participantes. Ainda que, numa primeira fase, a codificação para a criação das categorias tenha sido realizada ao nível de cada participante individualmente, num segundo momento cruzou-se a informação dos dois elementos do casal, contemplando-se uma perspetiva diádica na análise. Embora se faça referência à frequência das categorias ao longo da apresentação dos resultados, a preocupação não é a da quantificação per si como indicadora de representatividade, mas antes da identificação da diversidade de experiências de conciliação família-trabalho de alguns casais que são, naturalmente, qualitativamente diferentes, mas que também têm pontos em comum. Importante referir que o sistema de categorias emergente dos discursos incluía conceitos que transcendem o campo da conciliação. Não obstante, no presente trabalho serão apenas apresentados os resultados relativos a esta temática.

 

Resultados

A apresentação dos resultados será realizada de acordo com o sistema de categorias emergente dos discursos. Este é constituído por duas dimensões principais: Relação entre trabalho e família e as Estratégias de conciliação. A primeira divide-se em três subcategorias, designadamente: Compensação, Segmentação, Interferência. Por sua vez, a categoria Estratégias de conciliação divide-se em quatro subcategorias: Intimidade, Coping cognitivo, Coping emocional e Coping comportamental. Cada uma destas subcategorias apresenta diferentes componentes, como é possível observar no esquema em árvore apresentado (cf. Figura 1).

 

 

 

Relação entre trabalho e família

No âmbito da relação entre as duas esferas, os participantes fizeram referências que permitem identificar os diferentes modelos apresentados na literatura: compensação, segmentação e interferência.

A compensação foi mencionada por alguns participantes (N=7), mas sempre na direção do trabalho para a família. A satisfação encontrada na família, nomeadamente na interação com os filhos, parece contribuir para o bem-estar dos indivíduos, atenuando o humor negativo decorrente das adversidades encontradas no trabalho. No que diz respeito à relação conjugal, esta parece desempenhar a função de porto seguro, no qual os indivíduos procuram o conforto em momentos de fragilidade, nomeadamente quando vivenciam experiências percebidas como desagradáveis no trabalho (“A minha mulher é o meu porto de abrigo.”, 6M3).

Para muitos participantes (N=13), a segmentação é vista como um objetivo (componente ideal) (“Isso... trabalho é trabalho e casa é casa.”, 8F). Com recurso a verbos como tentar e evitar, os indivíduos demonstram o esforço consciente que lhes exige esta procura da separação das duas esferas. Quando estão em casa, a maioria dos entrevistados tenta não falar nem pensar no trabalho (“Faço mesmo o esforço para desligar o botão e, mesmo que esteja a pensar, faço esforço e digo: acabou!”, 7M). Por outro lado, alguns participantes demonstraram a preocupação de não levar as “coisas de casa para o trabalho” (5F), ainda que admitam que nem sempre é possível (componente realidade). Como percebemos, para alguns participantes esta segmentação é um ideal difícil de atingir (“A gente não devia levar a casa para o trabalho, nem o trabalho para casa. Mas, às vezes, se calhar passa um bocadinho...”, 8M), mas esta não é a posição generalizada. Uma das entrevistadas, cujo envolvimento no trabalho é elevado (e.g., tem vários cargos de responsabilidade no local de trabalho, propõe várias iniciativas para além do trabalho estipulado) afirma ter facilidade na separação das duas esferas, referindo: “Consigo chegar bem ao emprego, mesmo depois de ter tido uma chatice muito grande, com o maior dos sorrisos, e ninguém repara.” (2F). Importa salientar que esta participante parece descrever uma tendência para o evitamento do parceiro amoroso (“adoro o meu marido... pronto, mas não é o: não conseguia viver sem ti!”; Eu, se puder evitar por qualquer coisa esses confrontos, fujo.”; “Um afastamento muito grande. Criado por mim, tenho que admitir. (...) E como não estava bem fisicamente e detestava, detestava-me... apesar de ele dizer que me adorava de todas as formas e feitios, afastei-me.”), sendo que a literatura sugere que adultos com características evitantes têm uma maior predisposição para o investimento no trabalho enquanto fuga das questões relacionais (Hazan & Shaver, 1990). Por contraponto, o cônjuge expõe a importância que atribui ao self-disclosure, na medida em que procura que a companheira partilhe o modo como se sente em relação às diferentes áreas da vida (“Ela é uma pessoa mais fechada em relação a mim, e tento expressar-me mais a nível sentimental e... claro que sinto mais do que ela. Ela não se abre assim tanto, e eu tento puxar por ela para conversarmos ao máximo, no que for possível.”, 2M). Estes resultados parecem ser consonantes com os obtidos por Brunell, Pilkington e Webster (2007), que pressupõem que uma menor autorrevelação das mulheres contribui para uma menor satisfação com a relação amorosa nos homens.

Porém, não são todos os participantes que procuram a segmentação, sendo que, num dos casais, parece verificar-se uma certa fusão dos contextos profissional e pessoal. Por trabalharem juntos, ambos os cônjuges referem haver um “complemento” do casal nas duas esferas. Parece existir uma perceção de disponibilidade do outro, que é visto como companheiro de trabalho e de vida (“Companheiro, no sentido de companhia! É a companhia que eu tenho, é a ele que eu tenho! E ele tem-me a mim. E estamos aqui para o que der e vier.”, 3F).

Para além dos diferentes posicionamentos relativamente à separação do trabalho e da família, também o próprio conceito de segmentação difere de casal para casal. Se, para alguns, separar papéis passa por tentar não trazer tarefas laborais para realizar em casa, sem que isso impeça a partilha de assuntos profissionais com o cônjuge (“Se tiver que falar com o meu marido sobre o meu trabalho, falo”, 1F), outros percecionam este mesmo diálogo como prejudicial e, portanto, evitável (“E depois falo dos problemas [do trabalho] com o meu marido, porque no emprego não sou de falar. Tenho consciência que faço mal, que não devo fazer isso, porque ele fica cansado e chateado”, 7F). As perspetivas sobre a segmentação parecem, ainda, ser influenciadas pelas características da profissão e pelos significados atribuídos à mesma. Por exemplo, um dos participantes tem uma profissão de risco e, neste caso, a segmentação parece surgir como estratégia de controlo da ansiedade, tanto para o próprio (“Só me lembro [do trabalho] quando tenho outro dia. Ter que me levantar [risos], e chegar a tempo (...) A qualquer altura podemos ser chamados para uma situação em que podemos pôr a nossa vida em risco.”, 4M), como para a companheira (“Quando ele chega a casa, pergunto sempre se correu tudo bem, porque é um trabalho de risco e..., mas não é uma coisa que nos ocupe muito tempo familiar. Falamos, algumas coisas, de algumas situações, mas não muito.”, 4F). Por outro lado, os participantes que atribuem ao trabalho significados maioritariamente funcionais (“O que é o trabalho que me traz? Um ordenado ao fim do mês, que é muito bom!”, 8F; “Com o trabalho pagamos a casa, damos de comer à pequenita...e pronto. É assim, acho que o trabalho, para mim, significa estabilidade.”, 8M) desvalorizando questões mais associadas à realização profissional (N=2) descrevem uma maior facilidade na segmentação (“Trabalho é no trabalho, mais nada.”, 8M).

Ainda que, como referido, encontremos relatos de compensação e de segmentação, na maior parte das vezes, as duas áreas tendem a interpor-se no dia-a-dia dos casais, que identificam uma elevada interferência. O estudo deste mecanismo é complexo e, para uma compreensão mais completa das várias formas que assume, apresentaremos a análise diferenciada das mesmas.

 

Interferência positiva na direção trabalho-família. Este aspeto é apenas referido pelos elementos de um dos casais (casal 3), assumindo, para estes, uma relevância significativa. Reportam-se à estabilidade profissional enquanto requisito da própria estabilidade familiar. Assim, a estabilidade profissional parece contribuir para uma maior tranquilidade, que se associa à predisposição para experiências mais positivas na interação familiar (“A vida amorosa só é perfeita se o resto estiver bem alicerçado. E, neste momento, com a nossa profissão estabilizada, é muito positivo.”, 3M).

 

Interferência positiva na direção família-trabalho. Esta interferência esteve presente em grande parte das entrevistas (N=9). Os indivíduos referem-se à família como “estrutura-base” (5F), “a estrutura da minha vida”, “centro da nossa vida” (7M). Este sentimento de pertença encontrado no núcleo familiar transmite força e “uma tranquilidade” (1M) que parecem ajudar a encarar os desafios do quotidiano e, em concreto, da vida profissional (“O facto de ter um bom núcleo familiar ajuda na vida profissional.”, 5F).

Os discursos podem ser lidos à luz da teoria da vinculação, nomeadamente a partir do conceito de base segura, aplicado à relação conjugal (Waters & Cummings, 2000). Assiste-se ao apoio e encorajamento de um parceiro à exploração e prossecução de objetivos pessoais do outro e, designadamente, ao investimento em contextos diversos, como é o caso do contexto laboral (Hazan & Shaver, 1990; Vasquez, Durik & Hyde, 2002). Este aspeto é ilustrado no seguinte excerto:

“Se eu me sentir realizado a nível conjugal com a minha esposa, vou-me sentir mais forte, porque vou sentir que há ali um amor próximo, um amor único, que nos une e que nos ajuda a levar a vida para a frente. Isso vai-me fortalecer muito mais por dentro. E, portanto, quando eu for falar com... ou ter qualquer relacionamento profissional, ou que seja pessoal, eu vou muito mais fortalecido. (...) A minha mulher não nos deixa ficar parados. Está sempre... Leva-me sempre para a frente. Porque, às vezes, temos tendência a esmorecer, de nos deitar, etc., mas ela está sempre ali! Parece que vai buscar energia, está sempre pronta a levar as coisas para a frente! Isso é muito bom para quem está ao lado dela, porque apanhamos boleia dela e vamos com ela.” (7M). Por sua vez, o sistema familiar (cônjuge e filhos) é referido como fonte de satisfação. Deste modo, identificamos a transferência de humor positivo em casa para o trabalho (“Saímos de casa com mais energia, com um sorriso nos lábios, e é mais fácil encarar os problemas do dia-a-dia.”, 4F).

É ainda possível que exista a transferência de competências desenvolvidas no seio familiar para o desempenho no trabalho. Um dos participantes refere a sua perspetiva acerca do trabalho desenvolvido pela companheira, cujo desempenho avalia como “fantástico” (3M), associando as suas competências às desenvolvidas no âmbito da parentalidade. Esta, porém, não estabelece espontaneamente esta relação em nenhum momento da entrevista (“Enquanto mulher, [ser mãe] é uma realização muito grande. E eu gosto imenso de crianças, não é? Mas uma coisa são os meus alunos e outra coisa são as minhas filhas.”, 3F).

A interferência positiva da família para o trabalho surge com maior predominância nos discursos das mulheres (N=6) comparativamente com os dos homens (N=3), algo que poderá estar associado a uma eventual maior saliência do envolvimento familiar para as mesmas. Por outro lado, não podemos esquecer que este é um estudo de perceções e um estudo exploratório do discurso verbal dos sujeitos. Deste modo, a expressão emocional, tendencialmente maior nas mulheres (Blier & Blier-Wilson, 1989; Fiorentini, 2013), poderá ter uma influência nesta questão. É possível que as mulheres apresentem uma maior facilidade na expressão dos aspetos relacionais e emocionais que, emergentes da vida familiar, influenciam positivamente a vida profissional.

 

Interferência negativa na direção trabalho-família. No que diz respeito ao mecanismo de interferência, esta é a direção mais enfatizada pelos participantes, tendo sido, aliás, mencionada por todos os entrevistados. O trabalho surge como modelador da vida familiar, não só ao nível das dinâmicas, dos horários e das rotinas mas, também, da própria estrutura familiar. Por exemplo, a decisão de ter mais um filho é seriamente ponderada de acordo com as especificidades da vida profissional, nomeadamente a estabilidade profissional e as questões económicas (“Era precisoque as condições a nível financeiro e a estabilidade que existe agora se modificassem. (...) É caro ter um filho!”, 8M).

Novamente, a interferência manifesta-se de diferentes formas. A mais óbvia prende-se com horários de trabalho exigentes, que “tiram tempo” (6F) à vida familiar e contribuem para a perceção de “sobrecarga muito maior” (6F) do próprio e do cônjuge. Esta questão é agravada pelo facto de, muitas vezes, os participantes terem necessidade de trazer trabalho para casa. De referir ainda que, de acordo com alguns estudos, o investimento da mulher no trabalho tem influência nos níveis de stress experienciados pelo companheiro (Karambayya & Reilly, 1992). Resultados semelhantes foram encontrados por Ten Brummelhuis, Haar e van der Lippe (2010), que referem que os índices de exaustão, irritabilidade e angústia (distress) da mulher têm influência nos níveis de exaustão, irritabilidade e angústia (distress) do companheiro, mas não o contrário. Esta questão parece verificar-se no casal 2, em que a mulher refere investir fortemente na sua carreira, desempenhando um cargo de gestão (“Sempre tive um bom reconhecimento da minha vida profissional.”, 2F). Por sua vez, o marido explica que as exigências do trabalho da companheira têm uma influência negativa em si, sendo indutoras de stress (“Há certas alturas em que fico stressado, porque ela por vezes não tem horas para chegar a casa. Reuniões a altas horas, às vezes ao sábado...”, 2M), e dificultam a gestão da dinâmica familiar (“A nível familiar, também... por vezes o miúdo quer a mãe, e a mãe ao sábado não está, está em reuniões, ou porque tem exames para corrigir.”, 2M).

No casal 5, por sua vez, é o homem quem tem um trabalho especialmente exigente, que implica inclusivamente passar algumas noites fora de casa. Ao longo da entrevista, descreve-nos elevados níveis de stress (“nunca estou 100% tranquilo... teoricamente estou de férias, mas estou a atender o telefone, estou a responder a e-mails, etc.”, 5M). Porém, este stress não emerge no discurso da companheira, que parece valorizar o investimento do marido na vida profissional. Ao descrever o companheiro, destaca: “O meu marido é uma pessoa honesta, trabalhadora, de bom coração, sincero, um ótimo pai e um ótimo marido.”, (5F). Por outro lado, a participante parece adotar uma atitude flexível, funcionando como apoio na articulação das necessidades da família e das exigências do trabalho do marido, algo reportado pelo parceiro. De referir que as características do trabalho da mesma (e.g., não tem necessidade de levar trabalho para casa) parecem facilitar esta atitude colaborativa.

Verifica-se muitas vezes uma elevada dificuldade em esquecer o trabalho, o que se traduz numa menor disponibilidade para o envolvimento na vida familiar (“nunca estou 100% tranquilo”, 5M). Parece, ainda, ser comum (N=9) a transferência para a família do humor negativo gerado no trabalho (“Ela nota que eu ando um pouco em baixo, devido ao trabalho. Interage um pouco com a família”, 2M), bem como do stress profissional (“O stress do dia-a-dia e depois chegar a casa e eles [as crianças] pegarem-se... eles às vezes exageram e por tabela exagero eu também.”, 6M).

De forma expressa ou implícita, surgem, repetidamente, relatos de cansaço físico e, sobretudo, psicológico que se traduzem frequentemente na indisponibilidade para interagir de forma positiva com os filhos (“Chego extremamente cansado. Nesses dias é difícil para me concentrar para conseguir brincar com eles como gostaria.”, 7M). Dada a elevada saliência que o papel parental assume na vida dos indivíduos ([Os meus filhos] são parte de mim. Eu sem eles não sou eu, já. (...). Acho que, se me faltasse algum, morria parte de mim, mesmo. Não sei imaginar a minha vida sem eles.”, 6F; “A minha filha é tudo. (...) Se tivesse que dar tudo o que tenho por uma ou outra [filha e esposa], desfazia-me das coisas sem problema nenhum.”, 8M), todas estas questões contribuem para a emergência de marcados sentimentos de culpabilidade.

Para além da parentalidade, também a conjugalidade parece ser influenciada negativamente pelas questões profissionais. Deste modo, o desinvestimento da relação conjugal parece ser acentuado pelo cansaço para vários participantes (N=8), associando-se a uma perceção de afastamento do casal (“Também o cansaço, o trabalho... Tenho consciência que é da minha parte...Às vezes não nos deixa estarmos tão juntos, tão próximos”, 7F).

A tensão experienciada no trabalho reflete-se, em alguns casos (N=2), na saúde dos participantes (“Eu quase todos os dias chego com dores de cabeça, por isso o trabalho dá-me muita dor de cabeça”, 2M), o que interfere igualmente com a vida em casa.

 

Interferência negativa na direção família-trabalho. A interferência negativa nesta direção parece surgir pontualmente na eventualidade de algum problema familiar que, segundo os participantes, tende a dificultar a capacidade de concentração e de investimento no trabalho (“E, se a pessoa não estiver bem em casa, vai andar no trabalho e vai andar a pensar nisso... não está concentrado no trabalho”, 1M). Verifica-se ainda a transferência do humor negativo gerado no contexto familiar para o trabalho e os indivíduos descrevem uma tendência para desencadear interações negativas (“Se a pessoa tiver uma discussão em casa chega ao trabalho irritado... e, se calhar, começa também uma chatice no trabalho.”, 8M). Ainda, o cansaço decorrente do cuidado dos filhos pequenos acaba por dificultar algumas vezes o desempenho profissional (“Basta-me ter uma noite mal dormida, quando a minha filha era mais pequena, que tinha o dia logo a correr-me muito mal!”, 5F).

Por outro lado, alguns participantes (N=4) manifestam a renúncia à persecução de determinados objetivos profissionais por anteciparem dificuldades familiares e por recearem comprometer o desempenho do seu papel parental e conjugal (“Fui pensando [num projeto profissional diferente], mas nunca quis porque sabia o tempo que isso me ia tomar e o que ia perder em casa.”, 6M).

A interferência assume, porém, outras formas, associando-se à idiossincrasia da experiência dos indivíduos. Numa das entrevistas, talvez pelo facto de o participante desempenhar uma profissão de risco, é relatada a dificuldade de concentração no trabalho em alguns momentos, por se recordar do filho, experiência que parece ser vivida com ansiedade (“Fico sempre muito ansioso porque vem-me sempre ao pensamento o meu filho, e fico ansioso para chegar a casa e vê-lo cá em casa.”, 4M).

A interferência negativa da família para o trabalho é mais vezes referida pelos homens (N=7), ainda que as mulheres também o abordem (N=5), resultado que parece diferir dos encontrados em estudos anteriores (Byron, 2005; Heraty, Morley, & Cleveland, 2008). Tendo em conta a maior quantidade de exigências familiares das mulheres comparativamente aos homens, poderia esperar-se que estas relatassem com maior frequência a perceção de interferência negativa da família para o trabalho. Contudo, esta questão poderá estar relacionada com a eventual perceção do trabalho familiar enquanto responsabilidade da mulher, pelo que a realização do mesmo contribuirá para a manutenção e reforço da identidade de género (Fontaine, Andrade, Matias, Gato, & Mendonça, 2007).

 

Estratégias de conciliação

Quando questionados acerca das “receitas” que consideram importantes para lidar com as exigências do dia-a-dia, os participantes identificaram diferentes estratégias de conciliação das esferas do trabalho e da família, sendo que algumas destas surgem associadas à intimidade.

A intimidade é um processo interpessoal, no qual dois parceiros se tornam física e emocionalmente próximos, permitindo-se conhecer o outro e explorar-se na relação (Reis & Shaver, 1988). Caracteriza-se pela capacidade de investir em relações onde imperam a partilha e a mutualidade, sem que este envolvimento implique a perda do sentido de individualidade (Costa, 2005). A construção da intimidade sofre a influência dos modelos internos dinâmicos do sujeito face a si próprio (modelo de si) e face aos outros (modelo dos outros), que surgem como linhas orientadoras do investimento do indivíduo nas relações de proximidade (Bartholomew & Horowitz, 1991). Estes modelos são (re)construídos ao longo do tempo, e a forma como evoluem é complexa. Podemos dizer que são pautados por continuidade desde a infância até à idade adulta, visto que as experiências precoces com as figuras de vinculação primárias têm influência na qualidade das relações futuras e no modo como o comportamento dos outros é interpretado. São também marcados por descontinuidade, na medida em que as experiências das novas relações, numa fase mais tardia da vida, poderão contribuir para a reformulação dos modelos iniciais. Deste modo, um indivíduo com uma vinculação insegura na infância poderá estabelecer uma relação de segurança na idade adulta, com um parceiro apoiante e atento às suas necessidades (Cassidy, 2000; Matos, 2002).

No que concerne à intimidade, Costa (2005) fala da importância do respeito pelo outro e do investimento na resolução construtiva de diferenças para a intimidade, questões frequentemente trazidas pelos participantes.

Assim, na subcategoria relativa ao respeito pelo outro, encontramos relatos de intimidade (“Respeitar e tentar compreender. Ser compreensiva com a pessoa que está ao nosso lado. Mas principalmente respeitar a pessoa.”, 4F). Alguns participantes falam, ainda, da importância da atenção ao outro para a articulação satisfatória das diferentes esferas (“estar disponível para estar atento ao outro, e ver se o outro está a ser feliz.”, 7M). Por sua vez, a autenticidade caracteriza-se pela capacidade da autorrevelação, pela partilha genuína de aspetos da individualidade, no sentido de “ser verdadeiro, dizer aquilo que se sente”, (3F) e é uma das características destacadas pelos participantes, enquanto aspeto importante na gestão dos vários domínios da vida. Os participantes definem ainda, como estratégias de conciliação, aspetos que favorecem a proximidade do casal. Esta questão parece estar associada à crença de que é “preciso trabalhar para que a relação funcione.”, (4F). É o caso dos momentos para o casal (“Tenho que voltar a namorar a sério com a minha esposa, tenho que lhe prestar mais atenção...”, 7M). Porém, mais do que a simples existência de momentos a dois, ter tempo de qualidade com o companheiro parece ser importante para a maioria dos entrevistados (“Ir tentando reinventar as coisas, e tentar aproveitar o tempo que temos.”, 6M). Ainda que identifiquem como uma possível estratégia, os casais referem que nem sempre é possível ter este espaço para a díade, não apenas pelas circunstâncias do quotidiano mas também porque, por vezes, o subsistema conjugal é intersetado pelo parental.

Por fim, o diálogo é identificado como estratégia pela maioria dos participantes. Parecem recorrer-lhe enquanto estratégia de resolução construtiva do conflito (“Se temos um ponto de vista diferente, nunca o mostramos à frente dela [da filha]. E conversamos depois à parte.”, 5F), mas também enquanto meio de self-disclosure (“Não vou discutir esse tipo de coisas com a minha mãe ou com o meu irmão, porque é com o meu marido que eu vivo, é com ele que eu partilho tudo e mais alguma coisa.”, 3F) e de prestação de apoio ao companheiro (“Vejo logo que há preocupação a nível profissional ou a nível sentimental, dou logo conta disso. Tentamos conversar um pouco, a ver se resolvemos a situação.”, 2M). A integração do self-disclosure na categoria da intimidade surge na sequência de resultados da literatura que mostram que a capacidade e o desejo para realizar o mesmo, bem como a sua adequação ao contexto, parecem estar associados a dimensões da vinculação ao parceiro amoroso (Mikulincer & Shaver, 2007). Deste modo, sujeitos seguros apresentam uma maior capacidade de self-disclosure do que indivíduos com padrões de vinculação mais inseguros, uma vez que criam expectativas positivas acerca da disponibilidade e responsividade do outro, pelo que valorizam e são capazes de autorrevelação, numa frequência e adaptação ao contexto adequadas (Mikulincer & Shaver, 2007). Nas relações de intimidade, é esperado um equilíbrio entre as dimensões da proximidade e da solitude. Assim, o indivíduo que mantém uma vinculação segura é capaz de autonomia e de estar sozinho, investindo em áreas importantes para si como o trabalho e, simultaneamente, de ser na relação, numa lógica de investimento e de interdependência mútua (Costa, 2005; Vasquez et al., 2002). A relação de proximidade que mantém com o parceiro transmite um sentimento de segurança que inclusivamente incentiva o comporta mento de exploração de contextos externos ao casal, como é o caso do meio laboral (Fonseca, Soares & Martins, 2006; Matias, Vieira, & Matos, in press; Vasquez et al., 2002). O comporta mento de vinculação, por sua vez, caracteriza-se pela procura do outro, especialmente em situações percecionadas como de ameaça, numa tentativa de restabelecimento do sentido de segurança percebida (Ainsworth, 1989; Bowlby, 1969). Neste processo, tem um papel fundamental a ativação do sistema comportamental de prestação de cuidados do parceiro, que alerta o parceiro para as necessidades do outro e o motiva a providenciar apoio e conforto (Collins & Feeney, 2000; Collins & Ford, 2010).

Porém, em momentos de crise ou de ativação emocional, nem sempre os sujeitos procuram o apoio do companheiro. Pelo contrário, em alguns casos verifica-se o recurso ao evitamento (“Eu, se puder guardar sempre tudo para mim, guardo. Só que, depois, manifesto pela minha forma de reagir. Afasto-me muito, e... pronto.”, 2F), que implica um movimento inverso à procura de proximidade, através do afastamento do parceiro. A utilização desta estratégia associa-se, por vezes, à perceção negativa do conflito. Porém, sabemos que a intimidade também se desenvolve no conflito, que surge como meio para a afirmação e validação do próprio self enquanto diferente do outro (Costa, 2005).

A influência da conjugalidade nas dinâmicas trabalho-família surgiu, ainda, no estudo de Vieira e colaboradores (2012), no qual a vinculação ao parceiro romântico caracterizada por níveis de ansiedade elevados se associava a elevados índices de conflito trabalho-família que, por sua vez, prediziam elevados níveis de stress parental. Por sua vez, os resultados de Matias et al. (in press) indicaram que a orientação para a carreira parece operar a ligação entre a vinculação evitante e o conflito trabalho-família. Deste modo, indivíduos mais evitantes na relação com o parceiro amoroso tendem a investir mais na carreira e a experienciar níveis mais elevados de conflito trabalho-família, e no caso das mulheres, também níveis inferiores de enriquecimento família-trabalho. Num outro estudo, Fonseca e colaboradores (2006) encontraram uma relação significativa entre o estilo de vinculação e a orientação para o trabalho. Deste modo, indivíduos com estilos de vinculação segura e evitante apresentam, na maioria, uma orientação segura para o trabalho. Por outro lado, os autores encontraram que indivíduos com uma vinculação insegura-ansiosa/ambivalente têm tendência para apresentar uma orientação insegura-ansiosa/ambivalente no trabalho.

Como esperado, para além destas estratégias mais associadas à relação, surgem as relativas à funcionalidade, associada a características como a estabilidade, a harmonia e a avaliação positiva da relação (Costa, 2005; Narciso & Costa, 1996). A noção de equipa, referida pela maioria dos casais (N=12), parece englobar estas duas dimensões: a intimidade e a funcionalidade. Estes participantes relatam uma complementaridade dos elementos do casal ao nível da realização das tarefas. Assim, segundo os entrevistados, a divisão destas tem por base as exigências da esfera profissional de cada elemento do casal: “Cada um tem que dar o máximo que pode, não é? É o bem comum e o objetivo comum” (6M). É interessante perceber que, embora em alguns casos se mantenha uma divisão mais definida das tarefas por cada cônjuge (“Normalmente, a parte do exterior é dele”, 5F), muitas vezes esta divisão não é rígida (“não é que seja rigoroso”, 6M). Não obstante, apesar desta aparente flexibilidade na gestão das tarefas familiares, parece existir, nos casais que dividem tarefas de forma equitativa, uma tendência para cobrar ao outro a sua participação ativa, sendo que “se um tiver que limpar a casa, o outro tem que fazer outra coisa” (3M). A ênfase dada a esta questão da justiça na divisão do trabalho doméstico por vários participantes (“Nunca há aquela situação de eu estar muito atrapalhada e estar o meu marido no sofá sem fazer nada.”, 4F) leva-nos a refletir acerca dos motivos subjacentes a esta regra implícita de que, quando um dos elementos do casal desempenha uma tarefa doméstica, o outro não deverá estar num momento de lazer. Por vezes, parece estar associada ao receio de manutenção dos modelos de relação mais tradicionais: “Mete-me bastante impressão aqueles casais... à moda antiga, não é? O pai sentado no sofá sem fazer nenhum, e a mãe ali à volta com os filhos e com o trabalho” (6F). É possível que os indivíduos procurem, deste modo, a contradição dos mesmos, contabilizando o desempenho de cada um nas tarefas domésticas.

Ainda que, por vezes, os papéis não se distanciem de forma marcada dos tradicionais, continuando a responsabilidade pelas tarefas domésticas a ser atribuída à mulher (“Eu praticamente faço tudo! Não é? Já é o que uma mulher faz sempre.”, 8F), é percetível, no discurso dos homens, uma preocupação relativamente à sobrecarga das companheiras: “Principalmente ao fim-de-semana, tento aliviá-la disso.” (8M). Esta atenção é confirmada nos discursos das mulheres (“Se ele às vezes me vê um bocadinho mais atrapalhada, ele inicia o jantar; ou, se eu estou a fazer o jantar, e ele vê que as camas estão por fazer, ele faz-me as camas...”, 3F). Ainda que assumam a responsabilidade pela realização das tarefas domésticas, algo identificável nomeadamente na formulação “faz-me as camas”, de um modo geral, as mulheres confirmam a manifestação do cuidado descrito pelos maridos.

No exercício da parentalidade, esta questão de género parece não se colocar do mesmo modo (Byron, 2005). Como sugerido por Relvas (2006), verifica-se um esbatimento das diferenças dos papéis paterno e materno (“Agora, a nível do nosso filho, dividimos todas as tarefas: desde o banhinho, mudar a fralda, dar de comer.”, 4M). A divisão das tarefas inerentes às responsabilidades parentais parece, porém, ser influenciada pelos horários laborais de cada um dos cônjuges, diferindo as questões da complementaridade de casal para casal. A literatura mostra que, muitas vezes, embora ambos os pais se envolvam ativamente no exercício da parentalidade, as tarefas desempenhadas por mulheres e homens no que diz respeito aos filhos são qualitativamente diferentes (Haddock et al., 2002; Pimenta et al., 2010). Contudo, esta diferenciação não emerge dos relatos dos entrevistados, no que diz respeito ao cuidado dos filhos.

Com base no discurso dos participantes, organizaram-se as restantes estratégias em subcate gorias de coping, que coincidem com as identificadas por Neal e Hammer (2009) no âmbito do seu estudo com casais em que ambos trabalham, inseridos na geração “sandwich”. Ainda que os participantes do presente estudo se encontrem numa fase desenvolvimental distinta, as categorias emergentes da análise de conteúdo dos discursos pareceram enquadrar-se nas propostas pelos autores. Assim, na subcategoria coping cognitivo, inserimos o recurso ao planeamento e organização (“Podemos na mesma fazer tudo! Só que tem é uma logística diferente, não é?”, 6F), aspeto que, por vezes, se cruza com o estabelecimento de rotinas (“Porque é uma vida com muitas rotinas” [risos], 1M).

Os indivíduos referem que procuram ainda desdramatizar, aspeto que se associa a um esforço consciente para instituir uma postura de flexibilidade em relação às questões do quotidiano (“Não nos preocupamos muito com a casa durante a semana. Ao fim-de-semana há de se arranjar tempo para dar um jeitinho.”, 5F) e às próprias divergências familiares (“Tento conversar de forma a não dar muita importância às coisas, relativizar o problema...”, 4F). Em alguns momentos, os participantes dizem recorrer a pensamentos positivos e à centração no presente. Ainda no que diz respeito às estratégias de coping cognitivo, emerge a focalização no trabalho, que se traduz no estar “lá intensivamente” (7M), num esforço de concentração para um bom desempenho que, à partida, permitirá uma maior estabilidade profissional (“Resta-nos a nós, no dia-a-dia, no nosso trabalho, fazermos o melhor para não termos nenhum motivo onde possam agarrar.”, 5F). Por outro lado, focalizar no trabalho permite, em alguns casos, não passar tanto tempo longe da família (“Eu vou tentar ser o mais objetiva possível, não perder tempo, para que possa sair mais cedo, para mais cedo ir buscar o meu filho e estar com ele.”, 4F), o que facilita a conciliação das duas esferas.

Paralelamente às questões cognitivas, encontram-se as relativas ao coping emocional, no qual surgem estratégias como a e a adoção de uma atitude de persistência. Para articular as várias dimensões da vida de forma adaptativa, os entrevistados destacam, ainda, que procuram ter calma e paciência. Por último, os participantes referem a focalização na família, muitas vezes relacionada com a disponibilidade emocional para a mesma (“Só passo a pensar nos problemas no dia seguinte. Enquanto estou com eles, pronto...”, 1M) e com o tempo de qualidade passado com os familiares, em especial com os filhos (“Sempre que estou com eles, tento estar com eles mesmo, e brincar com eles...”, 7M). Neste âmbito, podemos refletir acerca da importância dos rituais familiares. Os rituais são práticas que encerram em si conjuntos de significados co-construídos e partilhados pelos membros da família (Crespo, 2011). É o caso do ritual do momento da refeição em conjunto (“O sagrado da mesa. O estar à mesa para comer. Tentar preservar isso.”, 3M) e de outros, específicos de cada família (“Depois vamos dar banho ao nosso filho, os dois. Também é um momento de brincadeira e de estarmos os três, que é sempre divertido, a hora do banho!”, 4F). É esperado pelos vários elementos da família que o padrão de interações se repita. Esta expectativa aproxima os indivíduos e transmite-lhes um sentido de segurança, já que os rituais contribuem para o estabelecimento de uma estrutura previsível e estável ao longo do tempo (Spagnola & Fiese, 2007). Assim, os pais assumem um papel de ritualizadores, o que progressivamente contribui para a integração de um sentimento de pertença e de modelos de socialização nas crianças (Crespo, 2011).

Por fim, o coping comportamental engloba as estratégias de promoção de envolvimento social (Neal & Hammer, 2009). De facto, os casais referem o apoio informal, nomeadamente da família alargada. Neste aspeto, surge a importância da distância geográfica como facilitador ou barreira à participação das famílias de origem neste quotidiano (“Os meus pais também moram lá perto, e isso ajuda bastante.”, 5F). Os amigos raramente são identificados como um apoio e, por vezes, é apontada a falta de disponibilidade dos mesmos (“Eu costumo dizer que os amigos só são para a parte boa. Para a parte de convívio e assim.”, 2F). São ainda referidos apoios formais, obtidos através da contratação de serviços, como é o caso de empregadas domésticas e de amas. Importa referir que não se espera que a procura de apoio, nomeadamente no seio da família alargada, tenha sempre um valor instrumental. Por vezes, este apoio também poderá ser emocional. Na verdade, não esperamos que as categorias identificadas sejam mutuamente exclusivas, uma vez que os aspetos que estas encerram são interdependentes. Porém, a organização das mesmas emerge do discurso dos entrevistados e, no caso específico do apoio social, a perspetiva de coping comporta -mental surgiu, em detrimento das questões emocionais.

De destacar que muitos participantes fizeram questão de frisar que, apesar do apoio recebido por estas entidades, o principal recurso de que dispõem é, em última instância, o do casal, enfatizando a postura ativa que assumem nestas questões (“Todo os apoios, nós é que os procuramos”, 3M). Este resultado é concordante com as conclusões de Matias e colaboradores (2010) relativamente à proatividade das famílias portuguesas no processo de conciliação.

 

Conclusão

O presente estudo teve como objetivo explorar o modo como vivem os casais com filhos pequenos a conciliação entre a vida familiar e o investimento profissional. Ainda que os resultados tenham vindo a ser integrados com a literatura na secção anterior, parece importante sintetizar algumas questões emergentes dos discursos, nomeadamente as relativas ao papel da relação conjugal na experiência da conciliação.

Os resultados sugerem que a intimidade assume uma dupla função. Em primeiro lugar, enquanto fim em si mesmo, para o bem-estar individual e para a satisfação com a relação conjugal. Por outro lado, enquanto meio para atingir uma articulação funcional e satisfatória da relação entre trabalho e família. Se a relação conjugal é encarada como base segura (Collins & Feeney, 2000; Waters & Cummings, 2000), faz sentido que a promoção da intimidade contribua para uma maior capacidade de exploração de diferentes áreas, nomeadamente no que diz respeito às possibilidades de conciliação dos vários papéis exercidos (Matias et al., in press; Vasquez et al., 2002).

Ainda que seja necessária alguma precaução na análise dos resultados, estes parecem trazer pistas importantes para a prática clínica, reforçando nomeadamente a pertinência da intervenção ao nível das dimensões mais relacionais e da intimidade, para além das mais funcionais, para as questões da conciliação.

A intervenção não deverá, contudo, resumir-se ao nível microssistémico. Numa perspetiva sociopolítica, advoga-se a importância da criação de apoios institucionais às famílias, que permitam uma articulação mais eficaz, sem prejuízo de dimensões essenciais como o tempo familiar, aspeto tantas vezes referido pelos participantes. Torna-se, assim, importante o desenho de investigações que procurem estudar quais as medidas de apoio à família mais eficazes para a conciliação família-trabalho (Brough & O’Driscoll, 2010) e, deste modo, contribuir para que os casais vivam a multiplicidade de papéis em pleno e sem experiências de culpabilidade.

Este trabalho apresenta algumas limitações que deverão ser referidas. Ao contrário do que seria desejável num estudo qualitativo, a saturação dos dados não foi garantida. Assim, acreditamos que as histórias descritas não descrevem a totalidade de vivências possíveis e estamos conscientes de que uma recolha de dados mais exaustiva permitiria aceder a experiências qualitativamente diferentes das que aqui são apresentadas.

Por outro lado, o processo de tratamento dos dados não é imparcial. Apesar do esforço efetuado no sentido do rigor na representação fiável das perceções dos entrevistados, os esquemas interpretativos não são livres de influências das grelhas de leitura prévias dos investigadores. Esta é uma interpretação possível das histórias recolhidas, que não pretende reunir todas as leituras possíveis, e que não é passível de ser generalizada.

Não obstante, a informação recolhida poderá contribuir para o desenho de novas investigações sobre o tema. A título de exemplo, se assumirmos que a qualidade da relação conjugal poderá ter um papel facilitador na articulação das esferas familiar e profissional e, tendo em conta o crescente número de núcleos familiares monoparentais no atual contexto português, poderia ser importante investigar as dinâmicas de conciliação também nestas famílias. Tornar-se-ia, ainda, interessante perceber quais os desafios da conciliação família-trabalho vividos pelos casais sem filhos.

Por outro lado, nesta amostra, todos os participantes se encontravam a desempenhar uma atividade profissional. Considerando a elevada taxa de desemprego ao nível nacional, seria necessário perceber que dinâmicas assumem as famílias quando um dos elementos do casal enfrenta uma situação de desemprego, ou quando ambos se encontram em situações laborais precárias.

Em suma, apesar das limitações, consideramos que o presente estudo contribui para a compreensão do fenómeno complexo da conciliação família-trabalho, alertando para a importância da proximidade e da segurança emocionais vividas na relação romântica para uma vivência mais positiva dos dois domínios.

 

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CORRESPONDÊNCIA

A correspondência relativa a este artigo deverá ser enviada para: Mariana Mendonça, Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto, Rua Alfredo Allen, 4200-135 Porto. E-mail: mariana.olival.mendonca@gmail.com

 

Este estudo integra-se no projeto PTDC/MHC-CED/5218/2012, financiado pelo FEDER, através do programa COMPETE e por fundos nacionais através da FCT.

 

Submissão: 27/05/2014 Aceitação: 24/03/2015

 

NOTAS

1 M=Número de participantes do sexo masculino; F=Número de participantes do sexo feminino.

2 O guião da entrevista pode ser consultado, mediante solicitação às autoras.

3 Por questões de confidencialidade, a identificação dos sujeitos é realizada através de um código, no qual se atribui o primeiro algarismo ao número do casal segundo a ordem em que foi entrevistado. A letra diz respeito ao género, sendo que a letra M significa “masculino” e a letra F “feminino”.

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