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Análise Psicológica

versão impressa ISSN 0870-8231

Aná. Psicológica vol.32 no.1 Lisboa mar. 2014

https://doi.org/10.14417/ap.837 

Momentos de inovação em psicoterapia: Das narrativas aos processos dialógicos

Miguel M. Gonçalves*, Joana R. Silva*

* Escola de Psicologia, Universidade do Minho

Correspondência

 

RESUMO

Partindo da proposta de Frank (1961), de que a mudança psicoterapêutica envolve uma mudança nos significados, sugerimos que os significados se organizam em narrativas cujos autores (I-positions, segundo Hermans) contam de uma forma activa as suas histórias. No sentido de estudar a mudança em psicoterapia, e partindo destas assunções, desenvolvemos o Sistema de Codificação de Momentos de Inovação, que fornece um método fiável e sistemático de identificar as novidades que emergem nas sessões de psicoterapia, que denominamos de Momentos de Inovação (MIs). Estes momentos de inovação emergem na psicoterapia e contribuem para interromper a dominância das auto-narrativas problemáticas responsáveis pelo sofrimento psicológico, permitindo a narração de novas histórias e a emergência de novas posições-do-Eu (I-positions). Após a descrição deste sistema de codificação, apresentamos um modelo de mudança e um modelo de estabilidade terapêutica, fundamentado nos resultados empíricos obtidos até ao momento. Partindo destas premissas, exploramos duas questões centrais relevantes: (1) Quais os processos que bloqueiam o desenvolvimento de momentos de inovação da fase intermédia até à fase final da terapia, particularmente no que respeita à reconceptualização? (2) Por que razão será a reconceptualização central no processo de mudança?

Palavras-chave: Narrativa, Momentos de inovação, Psicoterapia.

 

ABSTRACT

Departing from Frank’s (1961) proposal that psychotherapeutic change involves change in meanings, we suggest that meanings are organized into narratives, and that narratives have authors (I-positions according to Hermans) that are actively telling their stories. To study change in psychotherapy, according to these assumptions, the Innovative Moment Coding System was created, which provides a systematic and reliable method for the identification of the novelties emerging in psychotherapy sessions, which we call innovative moments (IMs). These innovative moments emerge in successful psychotherapy and disrupt the dominance of the problematic self-narratives that brought the client to therapy, thus allowing for new I-positions to come to the foreground and tell stories that are outside the scope of the former problematic self-narratives. After describing this coding system, we present a model of psychotherapeutic change and a model of therapeutic stability grounded on the empirical results obtained until now. From here we explore two main questions: (1) Which processes block the development of innovative moments from the middle of the therapy to the end, particularly the emergence of reconceptualization? (2) Why is reconceptualization so central in the change process?

Key-words: Narrative, Innovative moments, Therapy.

 

INTRODUÇÃO

Neste artigo partimos da perspectiva de que a Psicoterapia não se ocupa apenas com a redução sintomática mas também, e talvez de forma mais central, com a transformação de significados pessoais. Acreditamos que é difícil alcançar uma mudança significativa em psicoterapia sem uma transformação paralela ao nível dos significados. Na sequência desta perspectiva, e subscrevendo a afirmação de Frank com mais de 50 anos, o objectivo da psicoterapia é operar uma mudança nas assunções que conduzem o cliente à desmoralização: “As psicoterapias efectivas combatem a desmoralização persuadindo os pacientes a transformar estes significados patogénicos em novos significados que reacendam a esperança, elevem a mestria, aumentem a auto-estima e reintegrem os pacientes nos seus grupos” (Frank, 1961, p. 52; ver Frank & Frank, 1991).

A estrutura destes significados patogénicos tem sido alvo de teorização por virtualmente todas as escolas de psicoterapia. Os modelos mais importantes de psicoterapia, desde a terapia cognitiva às terapias psicodinâmicas e humanistas, têm proposto diferentes formas de conceptualizar estes significados patogénicos, desde crenças centrais, a esquemas maladaptativos, esquemas pessoais incongruentes, representações objectais maladaptativas, esquemas emocionais, experiências não assimiladas, entre outros. Parece-nos, pois, importante sublinhar que praticamente todos os modelos psicoterapêuticos concebem os significados problemáticos como assumindo uma posição nuclear na psicopatologia ou nas dificuldades psicológicas.

Mais recentemente, vários autores têm enfatizado que os significados se organizam em narrativas de vida, propondo assim que o sofrimento psicológico poderá associar-se à produção de auto-narrativas problemáticas (e.g., Dimaggio, 2006; Gonçalves, Matos, & Santos, 2009; Sarbin, 1986; White & Epston, 1990). Neste contexto, concebemos as auto-narrativas problemáticas como regras implícitas de significado maladaptativas. Imaginemos que a vida psicológica de uma pessoa é organizada em torno da seguinte regra implícita: “Devo sempre privilegiar as opiniões dos outros e negligenciar as minhas próprias opiniões”. Facilmente podemos compreender de que forma esta regra estrita poderá constranger o processo de construção de significado do cliente, comprometendo a sua vida a nível emocional, relacional, comportamental, etc. Refira-se que esta regra é considerada implícita uma vez que na maioria das vezes a pessoa não tem consciência, ou pelo menos consciência total, da sua existência. O efeito de amplo espectro destas regras leva à criação de um padrão de significado.

Os processos que conduzem à psicopatologia e à mudança terapêutica têm sido igualmente analisados de uma perspectiva dialógica (e.g., Hermans & Dimaggio, 2004; Lysaker & Lysaker, 2006; Osatuke & Stiles, 2006). Desta perspectiva, as narrativas de vida podem ser concebidas como um resultado de processos dialógicos de negociação, tensão, desacordo ou aliança entre diferentes posições do self (cf. Gonçalves et al., 2009). Nesta óptica, o self é constituido por múltiplos autores (ou posições-do-Eu – I positions) que narram as suas histórias, ao mesmo tempo que, enquanto actores, representam estas diferentes posições (Hermans, 1996). A especificidade inerente à história de cada voz ou posição conduz à multipotencialidade do self e a uma construção contínua de significado, à medida que diferentes posições vão ganhando ou perdendo poder. Quando este debate de vozes é silenciado, traduzindo-se num monólogo univocal, encontramo-nos perante uma ruptura dialógica.

Assim, considerando o exemplo apresentado anteriormente sob a perspectiva de self dialógico (Hermans & Gieser, 2012; Hermans & Kempen, 1993), podemos dizer que um número reduzido de posições-do-Eu (I-positions) dominam o self, enquanto posições-do-Eu alternativas são silenciadas ou invisíveis. Mais especificamente, todas as vozes1 associadas com afirmação pessoal encontram-se silenciadas ou dominadas, processo que ocorre tipicamente em clientes depressivos. Um dos efeitos deste processo consiste na constrição significativa da multivocalidade do self (Hermans, 2006), que perde flexibilidade em resultado da indisponibilidade de posições-do-Eu alternativas (e.g., associadas à assertividade).

Retomando a afirmação de Frank (1961) apresentada anteriormente, podemos dizer que um processo de psicoterapia bem sucedido permite a ocorrência de uma mudança na auto-narrativa problemática, na medida em que o cliente começa a aceder a novos significados e este aumento na flexibilidade contribui para a restauração da multivocalidade do self (i.e., posições alternativas emergem e ganham dominância). Assim, assume-se que quando existe uma transformação das auto-narrativas problemáticas em psicoterapia, começam a emergir excepções às regras previamente organizadas pela auto-narrativa problemática. Na linha de investigação que temos vindo a desenvolver denominamos estas excepções por Momentos de Inovação (MIs, cf. Gonçalves, Ribeiro, Mendes, Matos, & Santos, 2011). Consideremos o exemplo de uma cliente cuja regra implícita presente na auto-narrativa problemática seria o ressentimento e a dificuldade em expressar os seus sentimentos (cf. Gonçalves, Mendes, Ribeiro, Angus, & Greenberg, 2010).

Esta regra foi inferida através do discurso da cliente em psicoterapia: “é por isso que eu não digo ao meu marido o que sinto interiormente... e mesmo que dissesse, ele iria provavelmente rir-se...”. Uma excepção ou um MI face a esta regra da auto-narrativa problemática poderia emergir na seguinte afirmação: “mas os meus sentimentos são os meus sentimentos e eu tenho direito a eles!”. O conceito de MIs e os principais resultados encontrados no decorrer nos trabalhos de investigação com esta metodologia serão desenvolvidos em seguida.

MOMENTOS DE INOVAÇÃO (MIs)

A emergência de MIs implica a transição para primeiro plano de novas vozes, ou vozes anteriormente silenciadas e/ou dominadas pela auto-narrativa problemática. A emergência de novas posições-do-Eu gera a possibilidade de transformação da anterior auto-narrativa problemática, dado que existem novos narradores disponíveis. Assim, quando os MIs emergem, o percurso para a transformação de significado encontra-se aberto (e.g., Ribeiro, Gonçalves, & Fernandes, 2009).

Nesta perspectiva, existem dois ingredientes essenciais para a transformação de significados:

(a) a emergência e diversidade de MIs, considerando-se que é a repetição de novos significados que permite ultrapassar as regras de significado problemáticas e implícitas vigentes anteriormente;

(b) um padrão específico de emergência de MIs, que facilite a transformação das regras de construção de significado anteriores, tópico que será discutido em maior detalhe posteriormente, aquando da apresentação do modelo heurístico de desenvolvimento de MIs.

Os MIs podem tomar diferentes formas como sejam acções, sentimentos, projectos e planos futuros, desde que se revelem necessariamente incongruentes com a auto-narrativa problemática, dada a sua definição de “excepções à regra” (cf. Gonçalves et al., 2011). Por outro lado, é importante salientar que cada narrativa (seja problemática ou de inovação) tem o seu próprio narrador ou posição-do-Eu, o que significa que assumimos aqui uma clara ligação entre os produtos narrativos que temos vindo a estudar e os processos dialógicos que lhes são subjacentes.

Tendo por base este conjunto de assunções, o nosso grupo de investigação desenvolveu o Sistema de Codificação de Momentos de Inovação (SCMI, Gonçalves, Ribeiro, Mendes et al., 2011), tendo como principal objectivo analisar e compreender os processos de mudança terapêutica. Este sistema de codificação é habitualmente aplicado a todas as sessões de psicoterapia, procurando-se identificar os MIs face à auto-narrativa problemática que trouxe o cliente à terapia.

Até ao momento actual o SCMI foi aplicado a diferentes amostras de clientes em psicoterapia breve, quer em termos de modelo de intervenção terapêutica – terapia centrada nas emoções, terapia centrada no cliente, terapia cognitivo-comportamental e terapia construtivista – quer em termos do tipo de diagnóstico e/ou problemática clínica do cliente – desde clientes deprimidos a vítimas de violência conjugal (Gonçalves, Mendes et al., 2012; Matos et al., 2009; Mendes et al., 2010). Este sistema foi igualmente aplicado ao estudo intensivo de casos clínicos (Alves, Mendes, Gonçalves, & Neimeyer, 2012; Gonçalves, Mendes et al., 2010; Ribeiro, Bento, Salgado, Stiles, & Gonçalves, 2011; Santos, Gonçalves, & Matos, 2010; Santos, Gonçalves, Matos, & Salvatore, 2009). Não obstante, a metodologia de análise de dados mais utilizada passa pela comparação entre grupos com resultados psicoterapêuticos diferentes, isto é, casos de sucesso vs. casos de insucesso, procurando compreender o processo de mudança terapêutica.

O SCMI permite a análise de dados através de duas dimensões essenciais: a saliência e a tipologia de MIs (cf. Gonçalves, Ribeiro, Mendes et al., 2011). A saliência pode definir-se como a extensão de cada MI identificado durante a interacção terapêutica, por comparação com a extensão total dessa sessão. Quando trabalhamos com transcrições, analisamos habitualmente a percentagem de palavras presentes no MI, em relação ao total de palavras dessa sessão. A segunda dimensão consiste na tipologia de MIs. O sistema permite identificar 5 tipos de MIs diferentes: acção, reflexão, protesto, reconceptualização e desempenho de mudança.

Os MIs de acção referem-se a acções ou comportamentos específicos que desafiam a auto-narrativa problemática. Considere-se a seguinte ilustração clínica de um cliente com uma auto-narrativa problemática centrada na depressão (note-se que todos os exemplos que se seguem referem-se à mesma problemática):

Cliente: Ontem fui ao cinema pela primeira vez em meses!

Os MIs de reflexão consistem em pensamentos, sentimentos, intenções ou outros produtos cognitivos não relacionados com a auto-narrativa problemática:

Cliente: Acho que as nossas conversas, as nossas sessões se revelaram produtivas, eu senti-me um pouco a regressar aos velhos tempos, foi bom, senti-me bem, valeu a pena.

Os MIs de protesto contêm novos comportamentos (como MIs de acção) e/ou pensamentos (como MIs de reflexão) que desafiam a auto-narrativa problemática, representando uma rejeição dos seus pressupostos. Esta rejeição activa é a principal característica que permite a distinção entre MIs de protesto e MIs de acção e reflexão:

Cliente: Eu sou um adulto e sou responsável pela minha vida, e, e, eu quero reconhecer estes sentimentos e vou deixá-los sair! Quero experienciar a vida, quero crescer e sabe bem sentir-me no comando da minha própria vida.

Os MIs de reconceptualização caracterizam-se por uma descrição do processo de mudança a um nível meta-cognitivo. O cliente não só manifesta pensamentos e comportamentos fora da esfera da narrativa problemática mas também compreende os processos envolvidos nesse movimento de mudança:

Cliente: Sabe... quando estava no museu, pensei para mim próprio: estás mesmo diferente... há um ano atrás não conseguirias sequer ir ao supermercado! Desde que comecei a sair, comecei a sentir-me menos deprimido... isso também está relacionado com as nossas conversas e com a mudança de emprego...

Terapeuta: Como é que lhe ocorreu esta ideia de ir até ao museu?

Cliente: Eu chamei o meu pai e disse-lhe: Hoje vamos sair!

Terapeuta: Isto é novo, não é?

Cliente: Sim, é como lhe digo... eu sinto que estou diferente...

Os MIs de desempenho de mudança referem-se a novos objectivos, experiências, actividades ou projectos que decorrem da mudança:

Terapeuta: Agora parece ter tantos projectos para o futuro!

Cliente: Sim, tem razão. Quero fazer todas as coisas que eram impossíveis de fazer enquanto me encontrava dominada pelo medo. Quero trabalhar outra vez e ter tempo para apreciar a minha vida com os meus filhos. Quero ter amigos outra vez, quero ter pessoas para falar, para partilhar experiências e para sentir cumplicidade na minha vida outra vez.

PRINCIPAIS RESULTADOS DA INVESTIGAÇÃO REALIZADA COM O SCMI

Na Figura 1 encontra-se um resultado típico da investigação realizada com o SCMI (cf. Mendes et al., 2010), neste caso relativo à aplicação do sistema a uma amostra de depressão, submetida a terapia centrada nas emoções. Note-se que a saliência média de MIs é muito superior nos casos de sucesso, chegando quase aos 35% no caso 1. Apesar de todos os tipos de MIs se revelarem mais salientes nos casos de sucesso, são particularmente assinaláveis as diferenças entre os dois grupos no que respeita aos MIs de reconceptualização e de desempenho de mudança: nos casos de sucesso apresentam uma saliência expressiva e nos casos de insucesso a reconceptualização revela-se quase inexistente e o desempenho de mudança nem sequer emerge.

 

 

Na Figura 2 smooth splines não paramétricos representam a evolução da reconceptualização ao longo da terapia dos seis casos clínicos representados na Figura 1. Podemos verificar que nos casos de sucesso a saliência da reconceptualização aumenta de uma forma progressiva à medida que o processo terapêutico se desenvolve, atingindo o seu valor máximo no final da terapia. Este padrão não ocorre nos casos de insucesso, onde a saliência da reconceptualização se revela significativamente mais reduzida e estável no decorrer de todo o processo terapêutico.

 

 

Na Figura 3 encontra-se representado um smooth spline não paramétrico para a evolução do desempenho de mudança nos casos de sucesso (tal como referido anteriormente não existe desempenho da mudança nos casos de insucesso). Note-se que neste tipo de MI se verifica um padrão similar ao que apresentamos para a reconceptualização, apesar de menos acentuado. Como podemos verificar nos dois últimos gráficos apresentados, os dados sugerem que a saliência da reconceptualização e do desempenho de mudança aumenta consideravelmente nos casos de sucesso mas não nos casos de insucesso.

 

 

A investigação realizada com o SCMI (Gonçalves et al., 2012; Matos, Santos, Gonçalves, & Martins, 2009; Mendes et al., 2010) tem, assim, revelado que os casos de sucesso se caracterizam por: (a) uma tendência progressiva na saliência dos MIs; (b) os MIs de acção, reflexão e protesto têm uma maior saliência no início do processo de psicoterapia; (c) a reconceptualização tende a emergir numa fase intermédia do processo e a aumentar até ao final; (d) o desempenho de mudança tende a emergir após a reconceptualização.

Salienta-se, desta forma, o papel central que a reconceptualização parece assumir nos casos de sucesso, questão que discutiremos em maior detalhe posteriormente. Os resultados que temos vindo a descrever encontram-se representados no modelo heurístico de mudança em psicoterapia (Figura 4; cf. Gonçalves et al., 2009; Santos, Gonçalves, Matos, & Salvatore, 2009). Sugerimos que a terapia se inicia com uma auto-narrativa problemática que domina o self. No início de uma terapia bem sucedida, os MIs de acção, reflexão e protesto começam a emergir, através de uma sequência variável em função de cada caso específico. Com alguns clientes primeiro emergem os MIs de acção e depois os de reflexão. Noutros casos, a reflexão domina e os MIs de acção têm uma expressão muito reduzida. Há ainda casos em que os MIs de protesto emergem desde a fase inicial da terapia. Estes três tipos de MIs representam habitualmente as primeiras formas de inovação, constituindo oportunidades para posições-do-Eu novas, ou posições anteriormente dominadas pela narrativa problemática, emergirem e começarem a narrar as suas histórias. Numa fase intermédia do tratamento, os MIs de reconceptualização começam a emergir e vão aumentando a sua expressividade até ao final do processo. Acompanhando a reconceptualização, outros MIs de acção, reflexão e protesto começam a emergir. À medida que a pessoa começa a narrar-se a si própria de forma diferente, tal como ocorre na reconceptualização, outros MIs de acção, reflexão e protesto, que de alguma forma validam esta mudança na identidade, começam igualmente a emergir. Especulamos que nesse momento se coloca em marcha uma espécie de ciclo virtuoso: com os MIs de reconceptualização começa a emergir uma potencial nova identidade. Esta identidade é validada pelos MIs iniciais e mais elementares mas, ao mesmo tempo, suscita novos MIs de acção, reflexão e protesto, consistentes com a reconceptualização. Após a ocorrência destes ciclos, o desempenho de mudança emerge, sugerindo que esta nova auto-narrativa tem futuro. A partir deste padrão de MIs é desenvolvida uma nova auto-narrativa (Gonçalves et al., 2009).

 

 

MODELO HEURÍSTICO DE MUDANÇA TERAPÊUTICA

Centremo-nos agora numa caracterização global dos casos de insucesso sob a perspectiva da investigação realizada com o SCMI (Gonçalves et al., 2009). Em primeiro lugar, note-se que, tal como esperado, o desenvolvimento dos casos de insucesso se tem revelado muito diferente dos casos de sucesso descritos anteriormente sendo que: (a) a saliência de MIs é mais reduzida do que nos casos de sucesso; (b) os MIs de acção, reflexão e protesto ocorrem sem uma clara tendência progressiva ao longo da terapia; (c) a reconceptualização e o desempenho de mudança encontram-se ausentes ou apresentam uma saliência muito reduzida. Assim, e como se pode constatar na Figura 5, nas sessões iniciais do processo de psicoterapia, os casos de insucesso são muito semelhantes aos de sucesso, verificando-se a emergência de MIs de acção, reflexão e protesto. Estes MIs, suscitam a emergência de uma nova auto-narrativa mas a ausência de elaboração da reconceptualização torna a sua consolidação improvável, o que conduz de novo à dominância da auto-narrativa problemática.

 

 

Após o sumário dos principais resultados da nossa investigação há duas questões centrais que se colocam, com relevância teórica e empírica. A primeira prende-se com a compreensão dos processos que bloqueiam o desenvolvimento de MIs desde as fases intermédias da terapia, em particular a emergência da reconceptualização, tal como descrito anteriormente (ver Figura 5). A segunda está relacionada com a compreensão da centralidade da reconceptualização no processo de mudança. Iremos procurar de seguida discutir estas duas questões.

 

MODELO HEURÍSTICO DE ESTABILIDADE TERAPÊUTICA

AMBIVALÊNCIA E INSUCESSO TERAPÊUTICO

Como afirmámos anteriormente, os casos de sucesso e de insucesso apresentam trajectórias muito semelhantes no que respeita à emergência de MIs no início da terapia. A sua diferenciação ocorre nas fases intermédias da terapia, existindo dois aspectos que caracterizam os casos de sucesso: (1) o aumento na saliência de MIs e (2) a reconceptualização e o desempenho de mudança emergem e tornam-se dominantes até ao final do processo terapêutico. Há, assim, uma questão central que se coloca: Quais são os processos responsáveis por estas diferenças entre os casos de sucesso e os de insucesso, nas fases intermédias da terapia?

Uma possibilidade que temos estudado é a da ambivalência face à mudança ser responsável pelo insucesso terapêutico (Gonçalves, Ribeiro, Stiles et al., 2011). Dado que os MIs se associam a posições-do-Eu novas ou a posições previamente existentes mas de algum modo silenciadas, a sua emergência desafia a perspectiva dominante do cliente. Isto é, a emergência de novidade ameaça o sentido de estabilidade do cliente que existia anteriormente. Ora, se muitas vezes esta ausência de estabilidade é desejada, uma vez que a pessoa deseja a mudança, ao mesmo tempo ela é geradora de ansiedade. Por conseguinte, para reestabelecer o sentido de estabilidade interna, o potencial de inovação pode ser abortado e o sentido de self habitual reafirmado (Ribeiro & Gonçalves, 2010).

Quando os MIs são abortados no seu potencial de mudança, a auto-narrativa problemática reemerge e o sentido de estabilidade, ainda que problemático, é restabelecido. Assim, encontramo-nos perante uma alternância entre a inovação e a auto-narrativa problemática, sem a existência de mudanças profundas no self. Este processo, que temos denominado de ambivalência2, encontra-se ilustrado na Figura 6.

 

 

O estado de ambivalência pode ser caracterizado por uma oscilação entre duas posições opostas. A produção de um MI liberta o cliente da opressão que resulta da dominância da auto-narrativa problemática, mas produz ansiedade uma vez que ameaça o seu sentido de estabilidade. Assim, o cliente retorna à auto-narrativa problemática, reduzindo a ansiedade, mas voltando a sentir-se oprimido mais uma vez pela auto-narrativa problemática. Claro, que esta opressão estimula a produção de novos MIs e assim sucessivamente, num potencial movimento ad eternum.

Temos vindo a estudar empiricamente o processo de ambivalência identificando Marcadores de Retorno ao Problema (MRPs) nas sessões de psicoterapia (cf. Gonçalves, Ribeiro, Stiles et al., 2011). Mais concretamente, analisamos todos os MIs, procurando identificar aqueles em que a pessoa, subsequentemente, reafirma a auto-narrativa problemática. Os MRPs são operacionalizados como momentos em que o cliente produz um MI mas imediatamente após a emergência deste MI produz igualmente um retorno ao problema, como no exemplo seguinte: “Esta semana tenho-me sentido menos deprimida (MI de reflexão) mas, de qualquer forma, continuo a sentir-me deprimida (MRP)”.

Os MRPs podem envolver diferentes formas de atenuação do potencial de mudança dos MIs. Imaginemos que o MI consiste numa afirmação do cliente constatando que se tem sentido menos deprimido (o que seria um MI de reflexão). Existem diversos tipos de retorno ao problema: o cliente poderá contradizer o MI (“mas, apesar de tudo, continuo a ser uma pessoa deprimida”), reafirmar a dominância da auto-narrativa problemática (“mas eu sou muito fraco para continuar assim”), reatribuir a mudança a algum elemento externo ao self mas se calhar é apenas da medicação”) ou trivializar a mudança (“mas, apesar de tudo, isto é uma mudança tão pequena”). Qualquer um destes exemplos seria codificado como um MRP.

Os dados empíricos típicos que temos obtido até ao momento, através de diferentes amostras de psicoterapia (Gonçalves, Ribeiro, Stiles et al., 2011; Ribeiro et al., no prelo), sugerem que: (a) os casos de sucesso têm menos MRPs e/ou (b) nos casos de sucesso a presença de MRPs decresce ao longo do processo terapêutico e (c) os MRPs não decrescem nos casos de insucesso. Num estudo de Gonçalves, Ribeiro, Stiles e colaboradores (2011) realizado com uma amostra de terapia

narrativa de mulheres vitimas de violência conjugal, a média de MRPs apresentada nos casos de sucesso foi de cerca de 7% face ao número total de MIs, enquanto que nos casos de insucesso era de quase 40% do total de MIs. Na Figura 7 podemos ver que a reconceptualização e o desempenho de mudança são os MIs que têm menos MRPs, o que é consistente com a importância destes MIs para o processo de mudança, tal como descrevemos anteriormente. Assim, a reconceptualização e desempenho de mudança poderão ser mais difíceis de atenuar do que os outros MIs.

 

 

Depois da descrição do conceito de ambivalência e da forma como este processo tem sido empiricamente operacionalizado nos nossos trabalhos de investigação, surge uma questão interessante quer do ponto de vista prático, quer do ponto de vista teórico: Como é que se ultrapassa um processo de ambivalência?

Até ao momento actual (Gonçalves & Ribeiro, 2012a) identificamos dois processos: (a) Escalada da posição não dominante e inibição da posição dominante e (b) Negociação e envolvimento numa acção conjunta.

Comecemos então por reflectir sobre a forma mais complexa e que envolve a negociação entre as duas posições envolvidas (problemática e inovadora). Quando isto ocorre, ambas as posições se envolvem num diálogo, tranformando-se uma à outra. Este processo é semelhante ao que tem sido descrito por outras teorias dialógicas, como o modelo de assimilação das experiências problemáticas (Stiles, 2002), em que a determinado ponto do processo de mudança ambas as vozes desenvolvem uma ponte de significado que lhes permite comunicar. Nir (2012) também caracterizou recentemente um processo interpessoal similar denominado de negociação integrativa interna, em que existe uma situação de ganho para ambas as posições, uma vez que tanto uma quanto a outra conseguem de alguma forma alcançar os seus objectivos. Finalmente, Hermans e Hermans-Konopka (2010) referem-se a este processo como o bom diálogo, em que ambas as posições se envolvem num diálogo transformativo.

Todos estes processos são muito semelhantes ao que aqui denominamos de negociação e envolvimento numa acção conjunta. Consideremos o seguinte exemplo. A Joana (pseudónimo) era uma mulher de 42 anos, a participar num processo de Terapia Centrada nas Emoções, com um diagnóstico de Depressão Maior. Esta cliente oscilava entre duas vozes opostas: a voz dominante, que foi descrita como a procura da aprovação dos outros (e.g., “Acho que estou assustada, vou acabar sozinha”) – a voz de boa menina – e a voz não dominante, que foi descrita como os pensamentos e os sentimentos que desafiam a voz de boa menina (e.g., “Acho que lá no fundo eu sei que sou forte o suficiente para poder sobreviver por mim própria”) – a voz rebelde. Segue-se um momento de resolução do processo de ambivalência através da negociação das duas posições em oposição. [Depois de um diálogo de duas cadeiras entre a voz da boa menina e a voz rebelde]

Joana: É sempre como se eu me visse a mim própria como duas personalidades separadas [referindo-se às suas duas vozes], como duas pessoas completamente diferentes e...

Terapeuta: Então, quem é que está sentada aí agora? Qual delas é que está sentada aqui?

Joana: Sinto que a parte mais forte de mim [referindo-se à voz rebelde] agora está a dar poder à parte mais fraca [referindo-se à voz de boa menina].

(...)

Joana: Eu penso que é uma forma de ser apoiante e de dar força [MI de Reflexão]

Terapeuta: Então é como se... tudo acontecesse de repente? Joana: Sim.

Terapeuta: Então, é quase como se não tivesse de lhe perguntar – acerca do que quer para si – e ela não tivesse quase de lhe dizer e é como se, ela aparecesse e isso faz a Joana sentir-se mais forte?

Joana: É, é como se quando eu estava ali [sentada na cadeira da voz de boa menina] e me sentia tão vulnerável e fraca e depois parecia que as duas [vozes] vinham juntas como duas coisas... duas pessoas a vir juntas e de repente senti-me como se estivesse muito mais forte.

(...)

Joana: Acho que podemos confrontar os assuntos e falar com o T. [o marido] acerca disso, isso não precisa de ser assustador [MI de Reconceptualização]

O segundo processo a que nos referimos – Escalada da posição não dominante – parece menos elegante do que a negociação de posições, na medida em que a voz de inovação escala e assume a posição daquela que era anteriormente a voz dominante. Este processo é semelhante àquele descrito por Nir (2012) como negociação interna coerciva. Contrariamente ao que acontecia no processo descrito anteriormente esta é uma situação de ganho-perda, uma vez que uma posição alcança os seus objectivos mas a outra não. Hermans (1996) denominou este processo de inversão da dominância, em que a voz anteriormente dominada assume o controlo no presente. Qual será o potencial desta resolução aparentemente menos elegante?

Consideremos o seguinte exemplo. Susana (pseudónimo) era uma mulher de 38 anos que integrou um estudo sobre MIs em mulheres sobreviventes de relações íntimas de violência. Em terapia foi possível identificar duas vozes: (a) a voz do perdão (do abuso do marido) – voz problemática – e (b) a voz da resistência, que recusava a responsabilidade pelo abuso do marido – voz da inovação. De seguida apresentamos um momento de resolução do processo de ambivalência através da escalada da posição não dominante.

Susana: Eu vejo as coisas de uma outra perspectiva... já não desculpo ou minimizo os comportamentos violentos dele... já se foi embora [referindo-se à voz do perdão]...

Terapeuta: É curioso... porque há muitas pessoas a tentar convencê-la (do contrário)...

Susana: Quanto mais as pessoas me tentam convencer de que tenho de o perdoar, mais me convenço a mim própria de que as coisas não podem ser consertadas.

Terapeuta: O que é que a ajuda a resistir à pressão dos outros para o perdoar?

Susana: Percebi que as coisas eram piores do que eu poderia imaginar! (...) Eu costumava reprimir os meus sentimentos porque costumava acreditar que se pensasse muito sobre isso iria ficar muito deprimida e não iria ser capaz de tomar conta do meu filho (...) Agora, deixo as coisas vir [MI de Reconceptualização]

Neste exemplo é claro como a voz da resistência subjuga a voz do perdão, ocorrendo uma inversão do domínio entre as vozes em conflito.

Talvez um dos resultados mais interessantes desta investigação exploratória seja o facto de em ambas as resoluções se encontrar envolvido um MI de reconceptualização. Se este facto for replicado noutros estudos, isso significa que cada vez que um processo de ambivalência é resolvido, emerge uma reconceptualização. Especulamos que a reconceptualização permite ultrapassar a oscilação entre duas vozes em oposição, tal como ocorre num processo de ambivalência, através de uma meta-posição que articula o passado (isto é, a auto-narrativa problemática) com novas vozes de inovação.

É claro que persistem ainda várias questões: Será a escalada da voz de inovação uma mudança menos positiva? Será que constitui um estádio intermédio de uma fase de negociação? A nossa intuição clínica sugere que talvez em situações muito perturbadoras (como é o abuso) poderá ser necessário um processo de escalada, antes que a negociação possa ocorrer. Este é certamente um processo que irá ocupar os nossos esforços de investigação no futuro.

Vimos anteriormente que a reconceptualização faz parte da trajectória dos casos de sucesso e acabamos de referir o seu envolvimento na resolução de processos de ambivalência. Parece-nos que estes dois resultados se encontram relacionados. Neste sentido, a segunda questão relevante a colocar, após a análise do processo de ambivalência, é: Porque razão será a reconceptualização tão importante no processo de mudança?

RECONCEPTUALIZAÇÃO E SUCESSO TERAPÊUTICO

A reconceptualização tem dois componentes: (1) contraste entre uma auto-narrativa problemática do passado e uma nova faceta não problemática e (2) alguma forma de descrição do processo através do qual a mudança ocorreu. Isto significa que existem três posições presentes neste tipo de MI: O Eu no passado, o Eu no presente e uma meta-posição que faz a ligação entre os dois. Consideremos, em seguida, um exemplo que ilustra este processo (cf. Gonçalves et al., 2010). Note-se que a negrito se encontra a elaboração da cliente sobre o contraste entre o Eu no passado e o Eu no presente e a sublinhado apresenta-se a elaboração sobre o processo de mudança.

Lisa: Sim, sim, estou a voltar a sentir os meus sentimentos, sim e acho que isso se deve à consciência que sei que está presente agora e que antes nem sabia que existia (ri-se). Por isso sou uma pessoa, percebo que sou uma pessoa e que tenho o direito de ventilar os meus sentimentos e aquilo que eu penso que é certo ou bom paramim e isso tem sido o progresso alcançado em terapia.

Terapeuta: Sim, parece que está realmente a encontrar o seu caminho.

Lisa: Mm hm, como pessoa sim, pois antes pensava que estava colada a ele [o marido]. Sim, não tinha uma existência e agora tenho e isso é um bom sentimento.

Analisemos agora de que forma a reconceptualização pode ser perspectivada como um tipo especial de meta-posição. Recentemente, Hermans e Hermans-Konopka (2010) sugeriram que as meta-posições são importantes devido a três funções principais: unificadora, executiva, e libertadora. A meta-posição coloca diversas posições do-Eu em contacto, estabelecendo a ligação entre diferentes vozes (função unificadora); tem o poder de tomar decisões, por exemplo privilegiando uma posição em detrimento das outras numa dada situação (função executiva); e, finalmente, facilita a capacidade de terminar padrões habituais ou automáticos associados às posições familiares, dando prioridade a posições novas, menos automáticas (o que representa a função libertadora). Estas funções são muito claras na reconceptualização: passado e presente têm uma integração temporal que dá significado à transição (função unificadora), a posição presente é preferida e ganha prioridade (função executiva), os padrões habituais anteriores, presentes na auto-narrativa problemática dominante, são interrompidos e terminados (função libertadora). A esta proposta, adicionamos uma quarta função que, na nossa perspectiva, transforma a reconceptualização num tipo especial de meta-posição: uma função desenvolvimental. O papel desenvolvimental da reconceptualização pode ser ilustrado através de quatro características (Gonçalves & Ribeiro, 2012b). Em primeiro lugar a estrutura narrativa. Comparativamente com outros MIs, a reconceptualização é muito mais semelhante a uma narrativa, em que se enfatiza um período de tempo – a auto-narrativa do passado versus a auto-narrativa alternativa do presente. Assim, encontra-se presente um ingrediente que diferentes investigadores (e.g., McAdams, 1993; Pennebaker, 1997) atribuem às narrativas: a sua capacidade de organizar a natureza caótica dos acontecimentos.

Em segundo lugar, a reconceptualização assegura a auto-continuidade através do contraste. Na reconceptualização temos um self no passado, um self no presente e uma ligação entre os dois. Sem esta componente teríamos um salto na identidade, uma misteriosa transformação do passado para o presente sem qualquer insight acerca do processo de mudança (Cunha, Gonçalves, Valsiner, Mendes, & Ribeiro, 2012). Se isto ocorresse, a pessoa teria sido um actor na mudança mas não o seu autor, utilizando a distinção proposta por Sarbin (1986).

Em terceiro lugar a reconceptualização envolve uma identificação progressiva com a auto-narrativa emergente. Esta é a razão pela qual este tipo de MI se repete uma e outra vez a partir da fase intermédia da psicoterapia. Ou seja, não existe apenas uma reconceptualização que magicamente produz a mudança, mas existe, pelo contrário, uma repetição e a reconceptualização é frequentemente o MI mais dominante no final do processo terapêutico, provavelmente porque a pessoa se encontra a demonstrar a si própria e aos outros como é que a mudança se tem desenvolvido e como poderia ser a sua nova auto-narrativa. Assim, o processo de repetição permite, num certo sentido, experimentar a mudança conduzindo a que progressivamente o excepcional se torne familiar.

Finalmente, sugerimos que a reconceptualização pode ser vista, de alguma forma, como um processo inverso ao de ambivalência. Isto talvez explique a emergência de uma reconceptualização após a resolução de cada processo de ambivalência, tal como vimos anteriormente. Enquanto que num processo de ambivalência as vozes continuam a reagir uma à outra sem que ocorra qualquer ressonância ou transformação, num processo de reconceptualização existe necessariamente alguma integração entre as vozes problemáticas anteriores e as novas vozes (que representam a inovação). Provavelmente, parte da contribuição da reconceptualização consiste apenas no seu papel facilitador da saída de um processo de ambivalência, sendo que os nossos resultados de investigação mostram que os MIs de reconceptualização são, de facto, bastante mais difíceis de abortar através da ambivalência (Gonçalves, Ribeiro, Stiles et al., 2011).

Parece-nos obviamente necessário estudar empiricamente estes processos desenvolvimentais, identificando estas quatro funções e compreendendo como é que elas se relacionam entre si.

Vários investigadores e académicos da área da Psicoterapia têm argumentado que o insight é um processo chave em psicoterapia (e.g., Hill & Castonguay, 2010). Tendo em conta os nossos resultados, poderíamos acrescentar que o insight não é suficiente, precisamos de uma forma especial de insight que ligue a narrativa problemática do passado à narrativa emergente, através de uma meta-posição presente na reconceptualização.

IMPLICAÇÕES FUTURAS

Existem dois pontos centrais a salientar considerando o que discutimos anteriormente sobre a reconceptualização e a ambivalência. Em primeiro lugar, vários estudos com amostras e estudos de caso sugerem que, de facto, a ambivalência pode ser um processo central envolvido no insucesso da mudança em psicoterapia. Num futuro próximo, procuraremos desenvolver investigação que permita compreender de que forma este impasse poderá ser resolvido em terapia. Por outro lado, pretendemos perceber se existem outras formas de resolução presentes em psicoterapia. Até ao momento actual, identificamos apenas aqueles acima descritos: escalada da posição não dominante e negociação de vozes. Além disso, seria importante analisar se existem situações em que uma destas formas seja preferível, relativamente à outra.

O nosso trabalho de investigação sugere que a reconceptualização assume um papel central em psicoterapia. Num futuro próximo, iremos centrar-nos na questão da possibilidade de redução sintomática em psicoterapia sem a presença da reconceptualização. Estudamos alguns casos que sugerem que é possivel existir uma mudança mais superficial sem a ocorrência de reconceptualização. Serão estes casos em que ocorre a mudança sintomática, sem que exista uma mudança significativa nas narrativas de vida da pessoa? E será esta uma mudança que envolve um risco acrescido de recorrência dos sintomas?

Por outro lado, nos casos em que a mudança envolve a presença de reconceptualização, será possivel identificar empiricamente os quatro ingredientes que apontamos como responsáveis pela função desenvolvimental da reconceptualização? Se a resposta à questão anterior for afirmativa, como é que estes processos poderão ser mantidos e desenvolvidos em psicoterapia?

Estas são apenas algumas das questões que procuraremos seguir no futuro.

 

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Submissão: 19/09/2013 Aceitação: 11/10/2013

 

A realização deste estudo foi apoiada pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT), através do projecto “Ambivalência e insucesso psicoterapêutico”, com a referência PTDC/PSI-PCL/121525/2010.

 

Correspondência

A correspondência relativa a este artigo deverá ser enviada para: Miguel M. Gonçalves, Departamento de Psicologia Aplicada, Escola de Psicologia, Universidade do Minho, Campus de Gualtar, 4710-057 Braga, Portugal. E-mail: mgoncalves@psi.uminho.pt

 

NOTAS

1 Tomamos aqui o conceito de vozes e de posições do Eu (I-positions) como equivalentes. Mais especificamente, uma posição do Eu expressa-se adquirindo uma voz.

2 Esta estabilidade, resultante da sucessiva dominância de posições alternativas, foi designado por “mutual in-feeding” por Valsiner (2002). Não obstante a importância desta contribuição teórica para a investigação que temos vindo a desenvolver, no âmbito do nosso modelo de mudança terapêutica optámos por denominar este processo de ambivalência, dadas as suas especificidades, quer em termos conceptuais, quer em termos da sua operacionalização empírica.

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