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Análise Psicológica

versão impressa ISSN 0870-8231

Aná. Psicológica vol.31 no.2 Lisboa jun. 2013

 

O desenvolvimento da socialização e o papel da família

Alice Murteira Morgado*; Maria da Luz Vale Dias*; Maria Paula Paixão*

* Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Coimbra

Correspondência

 

RESUMO

O estudo apresentado procurou analisar o papel da família no desenvolvimento da socialização em crianças e adolescentes, nomeadamente no que concerne ao papel da estrutura familiar e das relações pais-filhos. Assim, foi nosso objectivo verificar, por um lado, se a estrutura familiar seria por si só uma variável significativa para o desenvolvimento dos comportamentos sociais ou se, por outro lado, as relações pais filhos seriam melhores preditores da socialização dos filhos. Para o efeito, auscultaram-se 182 crianças e adolescentes a frequentarem o ensino básico, do 6º ao 9º ano de escolaridade, através de três questionários de auto-resposta que avaliaram aspectos sócio-demográficos, variáveis de socialização e relações pais-filhos. De um modo geral, os resultados obtidos permitem assumir que, mais do que a estrutura familiar por si só, será o modo como os elementos da família se relacionam que influenciará o desenvolvimento da socialização dos filhos. Acreditamos que tal conclusão poderá trazer importantes e úteis implicações no que ao desenvolvimento dos comportamentos sociais de crianças e adolescentes diz respeito, não apenas para a família, como para todas as instituições e profissionais que com ela lidam.

Palavras-chave: Família, Relações pais-filhos, Socialização.

 

ABSTRACT

The present study analyses the family's role in children and adolescents' socialization development, namely in what concerns the role of family structure and parent-child relations. Hence, our aim was to verify, on the one hand, if family structure alone would be a significant variable for the development of social behaviours or if, on the other hand, parent-child relations would best predict children's socialization. For that purpose, 182 children and adolescents attending school from the 6th to the 9th grades were asked to answer three self-report measures assessing sociodemographic aspects, socialization variables, and parent-child relations. Overall, results allow us to assume that, more than family structure by itself, it is the way family members relate to each other that will influence the development of the children's socialization. It is our belief that such conclusion may translate into important and useful implications regarding the development of social behaviours in childhood and adolescence, not only for families, but also for all institutions and professionals that deal with family matters.

Key-words: Family, Parent-child relations, Socialization.

 

INTRODUÇÃO

Na investigação apresentada, procurámos analisar o papel de algumas variáveis familiares no desenvolvimento da socialização. Deste modo, pretendeu-se analisar, por um lado, o papel da estrutura familiar e, por outro, o papel das relações pais-filhos nos comportamentos sociais de crianças e adolescentes. Tal temática de estudo advém do reconhecimento das mudanças que se têm vindo a verificar na sociedade e nas famílias, ou seja, o crescente número de divórcios e, consequentemente, o aumento no número de novas formas de família. De facto, são cada vez mais frequentes, na sequência de situações de divórcio, agregados familiares que deixam de englobar os dois progenitores e os seus filhos, passando os últimos a viver apenas com um progenitor (famílias monoparentais) ou com um casal em que apenas um dos elementos é seu progenitor (famílias reconstruídas).

Efectivamente, ao longo do tempo, o conceito de família tem vindo a sofrer variadas e profundas alterações no que concerne aos seus valores, modelos e funções (Pires, 2005) e, com estas, as experiências das crianças e adolescentes são, inevitavelmente afectadas. No caso de Portugal, embora as famílias tradicionais ainda se encontrem em maioria (75,2% dos adolescentes vivem com ambos os progenitores), desde os anos 70 que se tem vindo a verificar um aumento do número divórcios, bem como do número de nascimentos fora do casamento (Taborda Simões, Vale Dias, Formosinho, & Fonseca, 2007). Tais acontecimentos resultaram, assim, numa crescente quantidade de famílias monoparentais, organizadas, sobretudo, em torno da mãe (10,6%), ou seja, sistemas familiares em que o subsistema conjugal é inexistente. Ora, dentro deste tipo de estrutura, um número significativo de famílias possui dificuldades económicas e sociais, o que se reflecte numa importante vulnerabilidade social deste grupo (no que concerne a questões como a nutrição, saúde, actividades de lazer e educação). Para além do referido, um outro fenómeno tem vindo a notar-se com mais frequência no nosso país, decorrente do aumento dos divórcios. Referimo-nos ao surgimento de novas formas de famílias, ou seja, as famílias reconstruídas (Taborda Simões, Vale Dias, Formosinho, & Fonseca, 2007).

À luz dos dados apresentados podemos, então, reconhecer o surgimento de novos desafios a enfrentar pelas famílias portuguesas, não só no que diz respeito a aspectos sócio-económicos, mas também no que concerne às relações e aos papéis que se estabelecem no seio dos novos núcleos familiares. Com efeito, “as tarefas envolvidas na educação dos filhos são partilhadas não apenas pelos pais biológicos, mas também pelos seus novos parceiros, e as crianças habitualmente também adquirem novas relações de fraternidade originadas mais pela coabitação do que estritamente pelos laços biológicos” (Taborda Simões, Vale Dias, Formosinho, & Fonseca, 2007, p. 799). Deste modo, os adolescentes que vivem nestas novas formas de família enfrentam a necessidade de abertura a uma realidade distinta, assim como a novos laços e relações, confrontando-se, por isso, com uma maior diversidade de papéis, normas familiares e culturas.

Considerando as mudanças que se vão verificando na sociedade e na família portuguesas, será pertinente debruçarmo-nos sobre as especificidades subjacentes às novas formas de família e às consequências, em termos desenvolvimentais que decorrem da vivência numa estrutura familiar não tradicional. Dado que as novas formas de família acima referidas (monoparentais e famílias reconstruídas) têm como origem primordial situações de divórcio, será precisamente a questão do divórcio a principal situação a analisar na presente investigação.

O divórcio constitui uma “forma radical de transformação do sistema familiar na sequência de uma situação de crise que a família não consegue resolver [...] a situação de divórcio é uma sequência de acontecimentos que implicam uma transição na vida dos pais e dos filhos num contexto de crise que geralmente só estabilizará após 1-2 anos” (Menezes, 1990, p. 78). Assim, por definição, tal situação irá exigir, da parte de todos os elementos envolvidos, sobretudo no primeiro ou nos dois primeiros anos após o divórcio, a capacidade de lidar com os desafios decorrentes das alterações profundas na sua vida. Grych (2002, citado por Wong, McElwain, & Halberstadt, 2009, p. 453) recorda-nos que “a relação conjugal é central no sistema familiar. Uma relação conjugal comprometida e harmoniosa fornece aos pais um apoio que fomenta uma parentalidade positiva, enquanto elevados níveis de conflito no casamento, ambivalência e desinteresse afectam os recursos psicológicos e emocionais dos pais e interferem com a sua capacidade para responder adequadamente às emoções negativas dos seus filhos”. Neste sentido, “o problema não está no divórcio em si, mas no divórcio mal sucedido. Para as crianças, o que de facto importa é o modo como os pais são capazes ou não de gerir as dificuldades que se instalam no seu relacionamento antes e após a separação” (Taborda Simões & Ataíde, 2001, p. 241). É importante, porém, não perder de vista que numa situação de divórcio ou separação cada criança ou adolescente reage de modo distinto, podendo, nuns casos, verificar-se um impacto muito significativo no desenvolvimento sócio-emocional dos filhos, enquanto noutros não existirão efeitos particularmente adversos (Stadelmann, Perren, Groeben, & VonKlitzing, 2010).

Será relevante, portanto, entender se as mudanças na estrutura familiar poderão ter implicações no desenvolvimento da socialização de crianças e adolescentes, tornando-se, assim, igualmente importante compreender o papel de aspectos como a qualidade das relações pais-filhos enquanto agentes mediadores do eventual impacto destas mudanças estruturais no desenvolvimento dos filhos.

Assim, como quadro conceptual para compreender a infância e adolescência, adoptámos uma perspectiva desenvolvimentista, considerando a importância de um desenvolvimento inevitavelmente marcado por profundas e múltiplas transformações, particularmente no que à adolescência se refere, e das aquisições que caracterizam estas etapas do desenvolvimento humano (Taborda Simões, 2002).

A partir da psicologia do desenvolvimento, é, então, seguida uma concepção de socialização com pendor piagetiano, contemplando a noção de equilibração enquanto mecanismo de adaptação ao meio, presente desde o início do desenvolvimento dos sujeitos. Tal mecanismo, ao possibilitar uma regulação das aquisições que se vão realizando ao longo do desenvolvimento, permite o acesso a novas formas, cada vez mais complexas, de compreender e lidar com o ambiente em que os sujeitos vivem. O desenvolvimento humano é, para Piaget, provocado por acções que visam a redução do desequilíbrio entre o organismo e o meio físico e social, culminando na construção de um novo equilíbrio, com novas formas de organização da actividade cognitiva. Deste modo, o “desenvolvimento da criança – e, portanto, a sua socialização, que nele [desenvolvimento da criança] constitui um elemento essencial – [é visto] como um processo activo de adaptação descontínua a formas mentais e sociais cada vez mais complexas” (Dubar, 2002, p. 20).

Assim, é salientado o papel activo do sujeito nas suas interacções com o meio, resultando estas em formas progressivamente mais elaboradas de viver e actuar nos contextos sociais. Por outras palavras, as bases para o comportamento e desenvolvimento dos indivíduos serão adquiridas através das relações entre os sujeitos e os seus contextos, relações essas caracterizadas pela mutualidade de influências (Damon & Lerner, 2008). De facto, “desde o seu nascimento, a criança é imersa num banho sociocultural, cujo papel determinante ninguém pode pôr em causa. O desenvolvimento realiza-se numa rede inextricável de interacções no seio dos grupos nos quais a criança vive e que irão, com a idade, aumentar, diversificar-se e complexificar-se. É difícil, senão impossível, de perceber, em todos os domínios, as relações entre todos estes aspectos da socialização da criança” (Bideaud, Houdé, & Pedinielli, 1996, p. 423).

Efectivamente, “a integração, no decorrer da existência, de experiências variadas, devidamente interpretadas, num processo de construção progressiva, explica as mudanças observadas com o tempo e as diferenças que se manifestam entre indivíduos ou grupos. A importância do papel das instituições de socialização neste processo é consensual” (Duno et al., 1987, Harter, 1983, Marsh, 1984, 1990, citados por Fontaine, Campos, & Musitu, 1992, p. 69). Ora, uma das referidas instituições é precisamente a família, pelo que se assume a importância do reconhecimento do contributo das primeiras relações humanas, particularmente no seio da família, para um funcionamento social ajustado ao longo do desenvolvimento dos indivíduos, já que estas “contribuem para a elaboração dos seus primeiros esquemas sócio-afectivos dos quais resultam os protótipos das relações sociais” (Haro, 2000, p. 23). É por esse motivo que não poderão deixar de ser referidos os modelos de vinculação (Ainsworth, 1989; Bowlby, 1980) e de aprendizagem social (Bandura, 1989) que cremos constituírem quadros conceptuais indispensáveis para compreender a importância do papel da família no desenvolvimento sócio-afectivo da criança e, mais tarde, do adolescente.

O modelo de Bowlby e Ainsworth centra-se na questão das relações de vinculação, ou seja, as relações precoces estabelecidas entre o bebé e a(s) figura(s) de vinculação (o cuidador primário, habitualmente, a mãe), através das quais o primeiro irá satisfazer as suas necessidades físicas, mas também psicossociais. Considera-se uma vinculação segura aquela que se baseia na confiança do bebé, não só em relação à figura de vinculação, mas também em relação à sua própria capacidade de obter o que necessita, ou seja, de explorar livremente o meio circundante, sabendo que em caso de perigo existe uma base de segurança. Note-se que este tipo de relações precoces possuem uma forte influência na construção de expectativas sobre os outros, no desenvolvimento de estratégias de coping e na representação do self, podendo orientar as crenças, sentimentos e comportamentos do sujeito no futuro e noutras relações que este estabelecerá fora do contexto familiar. Com efeito, as trocas emocionais associadas às relações de vinculação na infância poderão ter um importante papel nos comportamentos pró-sociais, visto que a atenção, cuidado, cooperação e interacção social poderão ser generalizados da díade figura de vinculação-bebé para diversas outras situações sociais futuras, com que a criança em desenvolvimento se irá deparar (Zahn Waxler, 1991, citado por Saarni, Campos, Camras, & Witherington, 2008).

A teoria da aprendizagem social, por sua vez, preconiza que a criança aprende os comportamentos sociais através da observação e imitação de modelos, ou seja, observando figuras de referência (modelos, normalmente os seus pais e, mais tarde, o grupo de pares) e demonstrando as aprendizagens que realizou desempenhando os comportamentos observados quando os modelos não estão presentes. Note-se que subjacente a esta teoria não se encontra uma ideia de passividade por parte da criança. Pelo contrário, esta adopta um papel activo na sua aprendizagem dos comportamentos sociais pois é ela que escolhe os modelos e os comportamentos a observar e imitar de acordo com as suas percepções.

Tendo em consideração o quadro teórico apresentado, poder-se-á, então, reflectir sobre a importância do papel da família na aprendizagem de comportamentos sociais, aprendizagem, esta, que resulta de diversas interacções importantes entre a criança e os elementos significativos presentes ao longo do seu desenvolvimento. De facto, as estruturas cognitivas adquiridas através das experiências de cuidado no seio da família têm uma assinalável influência nas respostas emocionais e comportamentais da criança perante novas situações sociais (Stadelmann, Perren, Groeben, & VonKlitzing, 2010). Neste sentido, pretendemos analisar o papel exercido pelo tipo de estrutura familiar em que a criança/adolescente vive, assim como a qualidade das relações paisfilhos no desenvolvimento da socialização, supondo, à partida, que mais do que a composição do agregado familiar, seria a qualidade das relações entre os seus elementos a variável mais determinante para compreender os comportamentos sociais na infância e adolescência.

OBJECTIVOS

Partindo, como já mencionado, de uma perspectiva desenvolvimentista, olhamos a adolescência como etapa específica do desenvolvimento humano, marcada por importantes mudanças. Etapa, esta, em que a adaptação ao meio e o equilíbrio dos sujeitos é alcançado através de múltiplas e profundas transformações físicas, cognitivas, morais e sócio-afectivas, assim como no que à construção da identidade diz respeito. É deste modo que, ao longo da adolescência, os sujeitos vão adquirindo uma crescente autonomia a diversos níveis (Taborda Simões, 2002). Por tal razão, uma reflexão em torno da adolescência afigura-se, para nós, indissociável de dois aspectos: por um lado, do desenvolvimento da socialização que nesta etapa do desenvolvimento assume um papel de particular relevo; por outro, do papel da família “enquanto contexto de desenvolvimento, [que] providencia um conjunto de relações sociais e de experiências de aprendizagem que são determinantes no confronto com as situações cada vez mais complexas e desafiantes da vida do adolescente” (Menezes, 1990, p. 65). De facto, “do estudo da socialização podem advir relevantes contributos, à medida que nos permite apreender as continuidades e descontinuidades do processo de construção psicossocial do homem, da família, à escola e ao trabalho” (Gomes, 2000, p. 189).

Os objectivos da presente investigação encontram-se, portanto, associados a duas questões basilares: pretende-se averiguar a influência de diversos factores associados à família no desenvolvimento da socialização na fase final da infância e na adolescência, ao mesmo tempo que se procura compreender a relação entre o desenvolvimento da socialização, a estrutura familiar e as relações pais-filhos. Foram, assim, levantadas três hipóteses essenciais:

H1: A estrutura familiar em que os sujeitos vivem, por si só, não é uma variável significativa para o desenvolvimento da socialização. H2: A estrutura familiar em que os sujeitos vivem, por si só, é uma variável significativa para compreender as relações pais-filhos. H3: A qualidade das relações pais-filhos influencia o desenvolvimento da socialização.

METODOLOGIA

Participantes

Para a investigação apresentada, a recolha de dados foi realizada numa escola básica do 2º e 3º ciclos da cidade de Coimbra, tratando-se esta de uma amostra ocasional. A mesma é composta por 182 sujeitos, dos quais 46,2% são do sexo masculino e 53,8% são do sexo feminino, com idades compreendidas entre os 10 e os 19 anos (média=13 anos; d.p.=1,57). Na Tabela 1 é apresentada a distribuição da amostra segundo o nível sócio-económico, ano de escolaridade e agregado familiar.

 

 

Instrumentos

Para testar as hipóteses formuladas foram aplicados três questionários:

Questionário sócio-demográfico – Este instrumento, elaborado no âmbito da presente investigação, contém 13 questões relativas à caracterização dos sujeitos (sexo, idade, ano de escolaridade), da sua estrutura familiar (número de irmãos, agregado familiar, etc.), área de residência (urbano/rural, região geográfica) e nível sócio-económico (profissão dos pais, habilitações literárias dos pais)1.

Questionário Sobre as Relações Pais-Filhos – A adaptação portuguesa do Questionnaire des Relations Parents-Enfants (QRPE, Bastin & Delrez, 1976), é da autoria de Vaz Serra (1987). Trata-se de um questionário de auto-resposta que visa analisar o modo como os adolescentes e adultos percebem as suas relações com os pais. É constituído por 63 questões, cuja resposta poderá ser “Verdadeiro”, “Não sei” e “Não Verdadeiro”. A cotação permite obter quatro tipos de dados: uma nota geral sobre a atmosfera familiar (dividida em dois factores: Comunhão de ideias e sentimentos e Consistência/Inconsistência), uma nota relativa às relações com o pai (dividida em sete factores: Tolerância/Dominância, Aceitação/Rejeição, Apreciativa/Inferiorizante, Autonomia/Sobrepro tecção, Não conflituosa/conflituosa, Confiança/Desconfiança e Pai educador/Pai não educador), uma sobre as relações com a mãe (dividida, também, em sete factores: Tolerância/Dominância, Aceitação/Rejeição, Apreciativa/Inferiorizante, Consistência/Inconsistência, Confiança/Descon fiança, Não conflituosa/conflituosa e Mãe educadora/Mãe não educadora) e uma nota global, reflectindo a soma de todos os factores mencionados2.

Bateria de Socialização (BAS-3) – A Bateria de Socialização (BAS-3), é da autoria de Silva, Martorell e Clemente (1985), tendo sido adaptada para a população portuguesa por Ferreira e Rocha (2004). Este instrumento consiste num questionário de auto-resposta que procura medir dimensões relacionadas com o comportamento social de crianças e adolescentes, em particular, no que concerne às relações sociais entre pares. No total é composto por 75 itens, cujas respostas poderão ser “Sim” ou “Não”. Os seus resultados permitem obter dados relativos a cinco dimensões sociais. A dimensão “Consideração pelos outros” (Co) diz respeito à preocupação em relação aos outros, em especial pelos que têm problemas, sofrem rejeição ou são ignorados, estando, de algum modo, associada aos conceitos de altruísmo e empatia emocional. A dimensão “Auto-controlo nas relações sociais” (Ac), poderá ser entendida segundo dois pólos: um em que existe cumprimento e aceitação das normas sociais e regras que facilitam a convivência e o respeito mútuo, e outro caracterizado por comportamentos agressivos ou impositivos. Por outras palavras, é uma dimensão fortemente associada a questões de ajustamento social. A dimensão “Isolamento social” (Is) permite detectar um afastamento, passivo ou activo, em relação aos outros. A dimensão “Ansiedade social/Timidez” (At) identifica manifestações de ansiedade social passíveis de se relacionarem com a timidez. Finalmente, a dimensão “Liderança” (Li), avalia aspectos como a ascendência, popularidade, iniciativa, auto-confiança e disponibilidade para ajudar os outros. É possível, ainda, obter uma medida da “Sinceridade” (S).

Procedimentos

Depois de seleccionada a amostra e de obtidas as autorizações da direcção da escola e dos Encarregados de Educação para a participação dos sujeitos na investigação, as aplicações dos instrumentos acima referidos foram realizadas colectivamente, em contexto de sala de aula, tendo sido garantido o anonimato de todas as respostas. Tais condições de administração possibilitaram o controlo das condições de preenchimento dos instrumentos, nomeadamente a homogeneidade de condições de resposta e a privacidade das mesmas.

Para análise de dados, recorremos ao teste de Levene (homogeneidade das variâncias) e ao teste t de student de diferença de médias para amostras independentes, considerando um nível de significância de 0,05, para um intervalo de confiança de 95%, para averiguar a relação entre a variável “Estrutura Familiar” (categorizada em dois níveis: “Agregado Familiar Tradicional” e “Agregado Familiar Não Tradicional”3) e as diferentes variáveis de socialização (Co, Ac, Is, At e Li), bem como para verificar a relação entre a variável “Estrutura Familiar” e as variáveis relativas às relações pais-filhos (“Nota Total QRPE”, “Nota Total Pai”, “Nota Total Mãe” e “Nota Total Questões Gerais”). Por sua vez, para averiguar a influência das relações pais-filhos (tomando como variáveis independentes as diversas dimensões que compõem esta variável) nas variáveis de socialização (variáveis dependentes), foi realizada uma análise de regressão. Esta análise foi complementada, a posteriori, por uma análise semelhante, mas considerando como preditores os factores específicos de cada uma das variáveis das relações pais-filhos (“Nota Total QRPE”, “Nota Total Pai”, “Nota Total Mãe” e “Nota Total Questões Gerais”). Por outras palavras, sempre que se encontraram resultados significativos entre uma variável das relações pais-filhos e uma variável de socialização, procedeu-se a uma análise mais profunda para esclarecer o papel de cada factor específico da variável independente na predição da variável dependente.

RESULTADOS

Com base nas análises realizadas, os resultados obtidos possibilitaram a obtenção de dados de interesse e revelo para a reflexão sobre o papel das variáveis familiares no desenvolvimento dos comportamentos sociais na infância e adolescência.

A primeira hipótese foi confirmada, verificando-se assim que, isoladamente, a variável “Estrutura Familiar” não basta para explicar o desenvolvimento da socialização. O teste t de Student para amostras independentes não revelou, portanto, resultados significativos na análise da relação entre o agregado familiar e as diversas variáveis de socialização, à excepção da variável “Isolamento social” (t=-1,99; p=,048). Apenas nesta dimensão foram encontradas diferenças significativas entre os dois grupos comparados (Agregado Familiar Tradicional e Agregado Familiar Não Tradicional), sendo o valor da média superior no grupo “Não tradicional” (2,61) em relação ao grupo “Tradicional” (1,82).

 

 

Considerando os resultados obtidos, e no sentido de procurar compreender mais pormenorizadamente o efeito do agregado familiar na variável “Isolamento social”, procedeu-se a uma regressão linear (Tabela 3). Esta análise revelou que, apesar de significativa, apenas cerca de 2% da variância é explicada pela variável independente (R2=,02; p=,048).~

 

 

A segunda hipótese colocada, relativa à existência de diferenças na qualidade das relações paisfilhos consoante o agregado familiar, foi refutada, já que não foram obtidos resultados estatisticamente significativos no teste t de student para amostras independentes. Assim, não é possível assumir o efeito de diferentes agregados familiares nas relações entre pais e filhos.

 

 

Na análise de regressão linear múltipla das dimensões das relações pais-filhos nas diversas dimensões da socialização, a maioria dos modelos testados revelou-se significativa. Tal permite corroborar a terceira hipótese colocada, ou seja, que a qualidade das relações familiares constitui uma variável preditora do desenvolvimento da socialização. Como já mencionado, foram utilizadas, como variáveis independentes, as quatro notas totais obtidas no QRPE, tendo sido excluída deste grupo a variável “Nota Total QRPE”, uma vez que apresentava uma elevada colinearidade com as demais, facto expectável, visto que esta dimensão consiste no somatório das restantes.

Como se pode verificar, através da consulta da Tabela 5, os modelos de regressão testados permitem-nos assumir que as relações pais-filhos são, de um modo geral, preditores da sociali zação, em particular das variáveis “Consideração pelos outros” (R2=,11; p=,000), “Auto-controlo nas relações sociais” (R2=,18; p=,000) e “Isolamento social” (R2=12; p=,000). No caso da variável “Liderança”, o modelo de regressão não foi significativo (p=,27) e na variável “Ansiedade social/Timidez”, embora o modelo seja significativo (p=,02), nenhuma das variáveis das relações pais-filhos surge como seu preditor significativo. Por outras palavras, as relações pais-filhos poderão ser consideradas preditores de três das cinco variáveis da socialização analisadas. Note-se que as diferentes dimensões são explicadas por diferentes variáveis das relações pais-filhos. Efectivamente, a “Nota Total Pai” apresenta-se como preditor da variável “Consideração pelos outros” (t=2,73; p=,007), a “Nota Total Mãe” surge como preditor do “Auto-controlo nas relações sociais” (t=2,63; p=,009), enquanto a variável “Nota Total Questões Gerais” é preditor da dimensão “Isolamento social” (t=-22; p=,030).

 

 

Considerando os resultados obtidos, optou-se por realizar uma nova análise de regressão mais exaustiva, de modo a verificar quais os factores específicos que predizem cada uma das variáveis de socialização explicadas pelas relações com o pai, com a mãe ou pela atmosfera familiar. Assim, como se poderá consultar na Tabela 6, verificou-se que, das dimensões relativas às relações com o pai, foram a “Aceitação/Rejeição” (t=4,94; p=,000) e a “Confiança/Desconfiança” (t=-2,28; p=,024) as que contribuíram significativamente para explicar 19,7% da variância no factor de socialização “Consideração pelos outros” (R2=,20; p=,000). No que concerne ao “Auto-controlo nas relações sociais”, explicado pelas relações com a mãe, foram as dimensões “Tolerância/ /Dominância” (t=4,19; p=,000), “Aceitação/Rejeição” (t=2,53; p=,012) e “Consistência/ /Inconsistência” (t=3,05; p=,003) as que explicaram 22,9% da variância (R2=,23; p=,000). Por fim, no que concerne ao “Isolamento Social”, explicado pela “Nota Total Questões Gerais”, os resultados obtidos apontam para o facto de ambas as dimensões deste factor, “Comunhão de ideias e sentimentos” (t=-2,83; p=,005) e “Consistência/Inconsistência” (t=-2,53; p=,012), serem preditores da referida dimensão (R2=,09; p=,000).

 

 

DISCUSSÃO

Antes de nos debruçarmos mais particularmente sobre a discussão dos resultados obtidos, importa destacar que, de um modo geral, estes vão no sentido dos já encontrados em anteriores investigações realizadas nesta área, permitindo corroborar duas das três hipóteses colocadas.

Relativamente à primeira hipótese colocada, a investigação permitiu confirmar o facto de, por si só, a estrutura familiar não ser suficiente para explicar o desenvolvimento da socialização. Tal resultado possibilita, assim, concluir que a qualidade da socialização dos filhos não dependerá exclusivamente do agregado familiar em que vivem, ou seja, o facto de ter pais separados/divorciados não implica necessariamente problemas do ponto de vista da socialização, nem o facto de viver com ambos os pais significa a ausência de dificuldades nesta área. Todavia, e considerando as diferenças significativas verificadas entre os dois grupos na dimensão “Isolamento social” (embora em ambos os grupos os resultados alcançados estejam dentro da média), importará reflectir sobre a razão que justifica a tendência para um maior afastamento, passivo ou activo em relação aos outros, em sujeitos oriundos de agregados familiares não tradicionais, em comparação com os que vivem em agregados familiares tradicionais. Ora, tendo em conta que nenhuma outra dimensão de socialização apresentou tal comportamento, e considerando que a variável “Estrutura Familiar” explica apenas 2% da variância, poderemos, eventualmente, atribuir estes resultados à conjugação da variável “Estrutura Familiar” com outras, como, por exemplo, a atmosfera familiar, visto que se verificou na análise de regressão que a variável “Nota Total Questões Gerais” se apresentou como preditor da dimensão “Isolamento social”, explicando 12% da variância. Para além desta poderemos especular sobre o efeito de outras dimensões não analisadas no presente estudo, como, por exemplo, o nível sócio-económico dos sujeitos, o número de irmãos ou a sua posição na fratria.

A hipótese acerca da possibilidade de existirem diferenças entre as médias obtidas na qualidade das relações pais-filhos consoante o agregado familiar foi refutada, não sendo possível assumir um efeito desta variável no modo como os elementos que constituem a família se relacionam. Em consonância com este resultado, diversos autores confirmaram já a existência de poucas diferenças entre filhos de famílias tradicionais e filhos de famílias não tradicionais, considerando mais relevante a consideração das relações que se verificam no seio da família do que a estrutura familiar propriamente dita (McHale et al., 2003, Patterson 2006, Stevens, Golombok, Beveridge, & Avon, 2002, Stevenson, & Black, 1988, citados por Berenbaum, Martin, & Ruble, 2008). De facto, parece que “o traumatismo do divórcio vem menos do facto de ter pais separados que de ter pais em conflito” (Bastard et al., 1996, citados por Taborda-Simões & Ataíde, 2001, p. 241). Este resultado acaba por reforçar a hipótese anterior (já confirmada), pois, dado que as relações paisfilhos não se distinguem consoante a composição do agregado familiar, podemos assumir que nem de uma forma indirecta a socialização poderá ser explicada pela estrutura familiar.

No que concerne à terceira e última hipótese colocada, relativa ao papel das relações pais-filhos no desenvolvimento da socialização, verificou-se que, de facto, a qualidade das relações familiares constitui, por si só, uma variável preditora do desenvolvimento da socialização, uma vez que, três das cinco dimensões de socialização testadas (“Consideração pelos outros”, “Auto-controlo nas relações sociais” e “Isolamento social”) foram explicadas pelas diferentes dimensões do QRPE (“Nota Total Questões Gerais”, “Nota Total Pai” e “Nota Total Mãe”). Acerca destes resultados, emergem dois aspectos que convém sublinhar.

Em primeiro lugar, é de destacar o facto de diferentes dimensões das relações pais-filhos explicarem diferentes dimensões de socialização. Com efeito, a relação com o pai, em particular no que se refere à aceitação e ao grau de confiança existente na relação, surge como preditor da dimensão relativa à sensibilidade social, preocupação com os outros, altruísmo e empatia emocional (“Consideração pelos outros”). Assim, quanto maior a aceitação existente na relação com o pai, maior a consideração pelos outros. Inversamente, no que concerne à dimensão “Confiança/Desconfiança”, o resultado obtido apresenta se contrário ao que seria expectável, ou seja, quanto menor o valor obtido nesta dimensão, mais elevada será a consideração pelos outros. Tal resultado poderá, porém, dever se à natureza relativamente ambígua da única questão que avalia o referido aspecto: “o meu pai tratava me como a um homenzinho/mulherzinha”. No caso da relação com a mãe, esta parece explicar a dimensão relativa ao respeito pelas normas sociais, potenciadoras de uma convivência baseada no respeito mútuo, ou seja, “Auto-controlo nas relações sociais”, sobretudo nos aspectos particulares do grau de tolerância ou dominância, do nível de aceitação/rejeição e da consistência ou inconsistência relativamente à disciplina exercida. Assim, verificou-se que, quanto mais elevadas as dimensões referidas, mais elevado será o auto-controlo dos filhos nas relações sociais. Por fim, a atmosfera familiar surge como variável explicativa do “Isolamento social”, sendo que ambas as dimensões deste factor do QRPE (“Comunhão de ideias e sentimentos” e “Consistência/Inconsistência”) contribuem para explicar esta dimensão de socialização, ou seja, quanto maior a percepção de harmonia e bem-estar no seio da família e quanto maior a consistência revelada pelos dois progenitores, menor será a tendência para um afastamento em relação aos outros por parte dos filhos.

Verifica-se, portanto, um efeito diferenciado dos vários aspectos familiares nas diferentes dimensões do comportamento social dos sujeitos, confirmando-se que “diferentes membros da família – mãe, pai, filhos – se influenciam mutuamente” (Minuchin, 2002, citado por Parke & Brueil, 2008, p. 96) e que “a natureza das relações interpessoais, no contexto familiar, é um factor importante no desenvolvimento da criança, ainda que, a estrutura familiar não seja a de uma família nuclear” (Schaffer, 1990, citado por Pires, 2005). De destacar, ainda, o facto de, em todas as dimensões de socialização explicadas pelas relações com o pai ou pelas relações com a mãe, surgir sempre como preditor o factor “Aceitação/Rejeição” (quer como factor paterno, quer como factor materno), pelo que os aspectos relacionais relativos a uma boa comunicação, empatia e colaboração entre pais e filhos, parecem assumir uma particular relevância para um comportamento social mais ajustado, sobretudo no que diz respeito à empatia emocional, altruísmo, cuidado com os outros e à aceitação de normas sociais e regras promotoras do respeito mútuo. Efectivamente, “a experiência de aceitação parental incentivará na criança uma orientação para o futuro positiva e auto-confiante, baseada na crença de controle pessoal e permitindo um adiamento mais amplo das gratificações” (Trommsdorff, 1986, citado por Borges, 1997, p. 53).

Um segundo aspecto de referência prende-se com as variáveis não explicadas pelas relações pais-filhos: a “Ansiedade Social/Timidez” e a “Liderança”. Note-se, a este propósito, que ambas partilham a característica de se reportarem à participação dos sujeitos em grupos sociais extrafamiliares, como é o caso do grupo de pares, ou do contexto escolar. De facto, “as relações interpessoais extra-familiares contribuem significativamente para a competência individual e relacional na infância e na adolescência” (Collins, Maccoby, Steinberg, Hetherington, & Bornstein, 2000, citados por Collins & Steinberg, 2008, p. 551). Além disso, se “o comportamento social é muitas vezes moldado pelas disposições dos indivíduos envolvidos nas interacções […], reciprocamente, as relações sociais também poderão ter um efeito profundo na personalidade” (Jensen-Campbell, Knack, & Rex-Lear, 2009, p. 506). Assim, estas duas dimensões encontramse, também, associadas a características individuais de cariz disposicional. Neste sentido, estudos estatísticos realizados no âmbito da construção da BAS-3 (Silva, Martorell, & Clemente, 1985) revelaram a existência de uma correlação significativa elevada entre a dimensão “Ansiedade social/Timidez” e a escala de Neuroticismo do EPQ-J (Eysenck & Eysenck, 1981), e uma correlação negativa ligeira entre a mesma dimensão e a escala de Extroversão, tendo-se também identificado uma correlação positiva entre a dimensão “Liderança” e a escala de Extroversão do EPQ-J.

CONCLUSÕES

É inequívoco que “as famílias são continuamente confrontadas por desafios, mudanças e oportunidades” e que as “diversas mudanças na sociedade têm produzido alterações nas relações familiares” (Parke, & Buriel, 2008, p. 113). Por tal motivo, o estudo das questões estruturais e relacionais no seio das novas formas de famílias assume uma importância crescente e assinalável, já que possibilita uma compreensão mais clara das implicações dos novos desafios colocados às famílias ao longo do desenvolvimento dos seus filhos. Através desta investigação é, então, possível retirar algumas conclusões de interesse, quer a nível teórico, quer do ponto de vista prático.

Em primeiro lugar, foi possível verificar, na amostra estudada, que a estrutura familiar, por si só, não basta para compreender o modo como se desenvolvem os comportamentos sociais das crianças e adolescentes. O facto de se viver no seio de uma família tradicional não constitui, por isso, um factor protector para o desenvolvimento da socialização, nem a vivência num agregado familiar não tradicional representa um factor de risco. Não foram, também, encontradas diferenças significativas entre sujeitos de agregados familiares tradicionais e não tradicionais no que concerne à qualidade das relações pais-filhos, indicando, novamente, que, mais do que aspectos estruturais são os aspectos relacionais que efectivamente contribuem para um funcionamento ajustado dos sujeitos e das suas famílias.

Confirmou-se, portanto, que será a qualidade das relações pais-filhos que explica uma parte do desenvolvimento da socialização, sendo que diferentes componentes relacionais no seio da família (relação com o pai, relação com a mãe, atmosfera familiar em geral) explicam diferentes dimensões da socialização, ficando de parte, contudo, as referentes à participação em grupos extra-familiares e fortemente associadas a traços de personalidade (ansiedade social/timidez e liderança). Destacase, assim, o papel fundamental das relações entre pais e filhos no ajustamento social dos filhos, sobretudo em aspectos relativos à sua empatia emocional, altruísmo, cuidado com os outros e à aceitação de normas sociais e regras promotoras do respeito mútuo.

Tais conclusões vão ao encontro das já adiantadas por diversos autores (Ahrons, 2007; Hetherington, Cox, & Cox, 1982; Kelly, 2007; Schneider, 1993; Stadelmann, Perren, Groeben, & VonKlitzing, 2010; Taborda Simões, & Ataíde, 2001), ou seja, independentemente das características da estrutura familiar, é o modo como os elementos se relacionam, no seio da família, que irá influir no desenvolvimento dos filhos e, neste caso em particular, no desenvolvimento dos comportamentos sociais.

Tais resultados poderão contribuir para a desmistificação de diversas ideias comummente aceites por grande parte dos elementos em contacto com crianças e adolescentes (tais como a família, o grupo de pares, a escola, entidades recreativas, etc.), promovendo uma compreensão mais alargada do papel da família no desenvolvimento dos comportamentos sociais dos seus filhos. Efectivamente, “o reconhecimento da família como parceira de outras instituições, tais como os pares, escolas, media, instituições religiosas e políticas governamentais que, no seu todo, influenciam o desenvolvimento da criança, tem expandido significativamente a nossa visão do papel da família no processo de socialização e sugere que a família – directa ou indirectamente – poderá ter um impacto maior nos resultados da criança do que anteriormente se poderia pensar” (Parke & Buriel, 2008, p. 128).

Deste modo, será de grande relevância salientar, junto dos progenitores que estejam a ponderar uma situação de divórcio/separação ou que já se encontrem divorciados/separados, que uma nova estrutura familiar não implica a deterioração das relações pais-filhos nem tampouco limitações no desenvolvimento do comportamento social dos filhos. Efectivamente, o mais relevante é o modo como o casal lida com as alterações na vida e na estrutura familiar, procurando ao máximo evitar elevados níveis de conflitualidade, antes, durante e após o divórcio, já que, muitas vezes, é o conflito parental, e não as mudanças devidas a um divórcio, o principal responsável pela deterioração das relações pais-filhos (Grych & Fincham, 1990). Para um desenvolvimento ajustado dos comportamentos sociais dos filhos, mais do que a coabitação, importa o estabelecimento de boas relações entre os vários elementos da família e, sobretudo, entre os progenitores e a criança/adolescente. Efectivamente, “o divórcio é muitas vezes uma alternativa melhor em relação à manutenção de uma família intacta mas com elevados níveis de stress e infeliz” (Dacey & Travers, 2002, pp. 311-312).

Será, portanto, benéfico que instâncias que lidam com as famílias reforcem a importância da colaboração e do estabelecimento de relações com o mínimo de conflitualidade, em nome da preservação de boas relações entre pais e filhos e de um desenvolvimento social ajustado dos últimos. Neste sentido, “as intervenções devem estar vocacionadas para ensinar aos pais métodos para, de uma forma construtiva, resolverem os seus conflitos” (Kim, Jackson, Conrad, & Hunter, 2008, p. 748). Acresce, ainda, a importância de reforçar que o agregado familiar da criança ou do adolescente não deverá ser motivo para assumir à partida uma limitação ou uma vantagem do ponto de vista do desenvolvimento dos comportamentos sociais. Deve-se, portanto, evitar a ideia de que, por ter pais divorciados/separados, uma criança ou adolescente terá um funcionamento menos ajustado em situações sociais ou que terá uma relação deteriorada com os seus progenitores.

São de apontar, todavia, algumas limitações a esta investigação. Em primeiro lugar, destacamse as relativas à amostra utilizada, ou seja, o facto de a amostra ser de natureza ocasional, o que constitui uma incerteza quanto à possibilidade de generalização dos resultados para a população em geral. Note-se, neste âmbito, que apesar de ocasional, as análises descritivas efectuadas revelam que a amostra reflecte, em parte, as características da população portuguesa, em particular no que diz respeito ao sexo (masculino=46,2%; feminino=53,8%), nível sócio-económico (baixo=29,1%; médio=44,0%; elevado=26,9%) e tipo de agregado familiar (tradicional=76,4%; não tradicional=23,6%). Não obstante, e apesar de parecer ilustrar a realidade portuguesa (Taborda Simões, Vale Dias, Formosinho, & Fonseca, 2007), a amostra revela um desequilíbrio acentuado entre a quantidade de sujeitos que viviam em agregados familiares tradicionais e não tradicionais, não permitindo comparações entre dois grupos com um número semelhante de sujeitos, como seria desejável.

No que concerne às variáveis analisadas, são de destacar alguns aspectos que poderão ser aprofundados em investigações futuras, já que diversas variáveis recolhidas não foram objecto de análise na sua interacção com as dimensões que foram alvo de investigação. Referimo-nos, especificamente, a factores como o género, a idade, o número de irmãos, o nível sócio-económico e o tempo decorrido após o divórcio, que poderiam contribuir para uma compreensão complementar, mais completa e detalhada dos resultados obtidos.

Poder-se-á também apontar uma limitação relativa à natureza dos resultados obtidos, uma vez que estes foram obtidos exclusivamente através da recolha de questionários de auto-resposta, ou seja, constituem uma avaliação subjectiva dos sujeitos em relação a si próprios.

Seria, por isso, interessante, replicar este estudo com uma amostra mais extensa e equilibrada em termos da quantidade de sujeitos que compõem cada grupo, procedendo à análise das diferenças entre os vários subsistemas familiares não tradicionais existentes, averiguando se existem diferenças nas variáveis estudadas, entre agregados familiares monoparentais, reconstruídos e outros tipos de estrutura. Seria também relevante considerar algumas variáveis que ficaram por explorar, de forma a entender se, e de que modo, dimensões como o género, a idade, o tempo decorrido após o divórcio, o número de irmãos e a posição dos sujeitos na fratria contribuiriam para explicar e compreender melhor os resultados encontrados nesta investigação. Poderia revelar-se igualmente proveitosa a aplicação de outras metodologias de avaliação das variáveis em estudo, para além dos questionários de auto-resposta utilizados, recorrendo, por exemplo, à observação directa e à análise da percepção dos pais, dos educadores/professores e dos irmãos, quer através de questionários, quer através de entrevistas.

Finalmente, e no sentido de realizar um estudo mais exaustivo, poder-se-ia recorrer à análise dos diferentes subsistemas relacionais no seio da família, uma vez que, “a relação conjugal, a relação mãe-filho e a relação pai-filho requerem análises distintas” (Parke et al., 2001, citados por Parke & Buriel, 2008, p. 96) que poderiam promover uma compreensão mais completa dos aspectos estruturais e relacionais que contribuem para o desenvolvimento dos comportamentos sociais dos filhos, quer nos agregados familiares tradicionais, quer nos agregados familiares não tradicionais. Seria, portanto, interessante analisar o impacto de mais variáveis nos fenómenos apresentados, em particular, o papel das relações entre cônjuges, relações entre irmãos, redes sociais de suporte, estilos parentais, rendimento escolar e características individuais.

 

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Correspondência

A correspondência relativa a este artigo deverá ser enviada para: Alice Morgado, Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Coimbra, Rua do Colégio Novo, Apartado 6153, 3001-802 Coimbra. E-mail: alicemmorgado@gmail.com

 

NOTAS

1Para efeitos de categorização das últimas variáveis (urbano/rural, região geográfica e nível sócio-económico), foi tido como referência o estudo de Simões (1994).

2 Quanto mais alto for o valor obtido, melhor será a atmosfera criada.

3 Na categoria “Agregado Familiar Não Tradicional” foram incluídas famílias monoparentais, reconstruídas e outras.

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